A REVOLTA DOS DECIBÉIS

O Mundo Não Tinha Forma

Joniel
Microphonia
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3 min readMay 11, 2020

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Marinha 287, André “Dinho” Lissonger, 2013.

Nos movíamos pela paisagem líquida. Tínhamos mais braços do que Shiva. Na memória é tudo como o filme Scanner Darkly. Sentimentos, certezas, sensações, tudo fluido e intercambiante. Deus também derretia. Ia assumindo outras formas. O sol escaldante cuidava de misturar o resto. Na memória nada é exato.

Era uma fita. Era Django Reinhardt. Bird e Diz — Miles debaixo da asa. Chet Baker despontava. Consumido toda a discografia da Trama encalhada no Paes Mendonça. Cama de Gato, Grupo D’Alma, Heraldo do Monte, o Chama de Hélio Delmiro (também brilhante com Sarah Vaughn). Cheguei com atraso em tudo na consciência da música. O Led Zeppelin e The Smiths já haviam acabado. Ian Curtis e Cliff Burton já eram póstumos. Os discos emprestados raramente retornavam. Mas tudo era líquido. Na memória tudo é turbilhão.

E então um anjo deixou cair na minha mão o Amplified Heart do Everything But The Girl. Meu coração acelerou, amplificado. Outro anjo me presenteou com um dreadnought. Um terceiro me agraciou com a ternura de um furacão disfarçado de brisa. Acho que era um outono quente. Os ipês se desfazendo, as ausências no chão.

Falei com meu Dinho:

— Tenho uma viola nova!

— Venha, bora fazer um som!

Na mesma tarde estávamos em algum lugar de Itapuã, debulhando progressões xamanísticas de Jimmy Page do álbum III. Imigrant Song. That’s the way. Rain Song. Thank you. Nada de grunhidos ou sétimas dominantes.

Ele me mostrou um sketch. Uma levada praieira linda e já apontando uma melodia — ele tem esse talento de achar o lirismo no meio do palheiro das notas do acorde. Fizemos uns ajustes, colocamos uma ponte. Fui pra casa com a levada na cabeça. Possuído. A letra veio num só golpe de caneta Papermate Futura (o melhor instrumento de escrita e desenho até então):

Nós aqui de papo pro ar

Lá fora o mundo inteiro caminhando pro fim

Te vejo no vigésimo andar

Aqui é tão pequeno pra esses peixes que o mar

Tão cedo carrega tão longe da praia

Vejo-te à luz do sol

Beijo tuas cores

Roubo o cinza do céu

Essas vozes ao redor

Elas vagam com o vento

Por dentro pelo centro

De mais uma cidade

Que desperta pra noite

Nos escondemos ao fim da tarde

A lua nos procurou

Ontem não fomos pro céu

É mais um pôr-de-sol

Que beija a balaustrada

Sob um samba de adeus

Ando pela Barra’n’Blue

Eu sei você me vê no seu retrovisor

Bêbada fumaça cega

Passeia entre nós

Cruel como o tempo

Ele recebeu a letra. Era sob medida — não tinha o que pensar. O nascimento é uma felicidade.

Foi o começo de muitos fins de tarde. Os amados acordes em nona encontraram um planeta habitável. Conversas etéreas dissipando-se nos anéis com sabor de cravo. Amores exorcizados à contraluz das velas das embarcações. Cores mutantes do crepúsculo do porto que acabavam por denunciar o colar de pérolas da Baía. Tudo fazia sentido. O resto era accessório. O mundo finalmente tomava forma.

A forma da canção.

Joniel Franco para o Microphonia

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