COZINHA DO CÃO

O Rinoceronte de Fellini

Gustavo Rios
Microphonia
Published in
7 min readNov 26, 2020

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“E La Nave Va” — Federico Fellini, 1983.

“Pluralitas non est ponenda sine neccesitate”

(Pluralidades não devem ser postas sem necessidade)

Guilherme de Ockham

A citação acima pode ser atribuída a um inglês chamado Guilherme de Ockham. Para alguns, esse franciscano, que nasceu num vilarejo de mesmo nome (Ockham) entre 1280 e 1300, tinha ideias pouco convencionais para a turma da igreja que queria manter o poder a todo custo.

Filósofo e teólogo, o Guilherme defendia, entre uma infinidade de outras coisas, que o verdadeiro conhecimento só surgiria com a ajuda da razão. Ele meio que separou a tal razão da fé (sem perdê-la, contudo), separando também a filosofia de teologia.

Suas teorias tinham como base a ideia de que só a vivência/experiência vinda dos sentidos humanos nos faz conhecer a origem (ou causa) das coisas.

O seu método mais famoso é o chamado “a navalha de Ockham”. Um lance que ajuda a questionar muita coisa, tipo a agente Scully da série “Arquivo X”. Segundo pesquisadores, tal princípio valoriza a simplicidade na construção de qualquer teoria. Ou na resolução de questões e problemas. A “navalha” é uma forma de investigação em que, quando a pessoa estiver diante de um problema com várias explicações, a mais provável, baseada na lógica, em fatos científicos e em elementos reais e simples, tende a ser a correta.

Guilherme de Ockham (fonte: aminoapps)

Estudiosos afirmam que Aristóteles já havia dito algo parecido. E, ao que parece, o Guilherme nunca usou esse nome simpático (navalha) para denominar tal método. Mas esse é outro papo.

Sou do tipo que adora quando fatos são esclarecidos, dissecados, e a humanidade progride. Quando a ciência (a das pipetas e as das placas de Petri) e a tecnologia evoluem juntas, damos um grande passo à frente.

Obviamente, quando digo isso, falo da cura de doenças e similares e não da nova arma hi- tech do Putin, uma espécie de drone com ogivas, muito menos dos discursos canalhas do seu suposto arquirrival, o Trump — isso sem falar nos robozinhos do calhorda Bolsonaro. Todavia, e já entrando na tal viagem-papo-cabeça, acredito também que esse olhar científico demais, enrijecido e minucioso pra tudo, deve ter lá seu quinhão de melancolia. Deve ser um troço chato ao extremo. Um tédio.

Apesar de saber que devemos lutar contra a mentira e contra tudo que trava a evolução humana, não gosto de imaginar o mundo sem o místico, o mítico e o fabuloso. E aqui posso tentar alçar um voo mais alto para criar uma teoria bem amalucada: a diferença entre a “mentira que fere” e a “mentira que enleva”.

Aristóteles (fonte: wikipedia)

Existe aquele tipo de mentira que é extremamente nociva. Que serve para subjugar, enganar e que nada acrescenta às nossas vidas. Além de nos prejudicar e corroer nossa fé no homem, que já não é lá grande coisa. Atualmente temos exemplos de sobra; é só lembrar o tipo de gente que toma conta de nossa política.

Das “fake news” aos discursos salafrários, homicidas e toscos desse que muitos consideram presidente dessa joça, a lista só aumenta. E acho uma grande perda de tempo tentar abrir uma frente de discussão aqui, considerando que muitos estudiosos de respeito e gabarito já fizeram isso. Com grande propriedade.

Dentro dessa minha viagem, gestada num domingo de tédio, sol, clausura forçada, filmes bacanas e cervejas, essa seria a mentira que engana. Nociva, portanto.

Do outro lado, temos aquele tipo de “mentira” que muitas vezes nos põem de frente com verdades, profundas verdades. Como exemplo, lembro que algumas fábulas e lendas têm seu encanto justamente por alimentarem nossas vidas, trazendo dentro de si mensagens, algumas das tais verdades, uns motes bacanas para reflexão e outras possibilidades. A vida se torna menos sacal desse jeito, acho.

Durante o tempo que lecionei gastronomia prática e teórica, numa viagem que fiz para Belém do Pará como cozinheiro aprendiz, não foi difícil me encantar com as lendas que cercavam a mandioca. A história da menina Mani que morreu, sendo enterrada na própria oca e que, tempos depois, nesse mesmo local, umedecido pelas lágrimas de todos, havia crescido uma planta diferente — no caso, a mandioca (a “oca de Mani; a Mani Oca) — me foi de grande valia nas aulas que dei.

Claro, nessas aulas eu deveria ensinar o manejo com as facas. Aquele malabarismo todo, o lance meio samurai que o povaréu adora ver nos realities de gastronomia. Deveria também fazer uns bolos de puba, incrementar um belo cozido, essas coisas.

Nesse meio tempo, alguns alunos cochilavam, enquanto outros comiam. Porém, era fácil perceber o interesse de todos quando eu contava e recontava a lenda.

Era um lance meio mágico. Ainda lembro bem.

Não sou tipo de cara que curte o poder dos cristais, nem viagens místicas. Nunca tive lá muito tesão por gnomos. E nunca esperei ser curado da tireoide por algum toque mágico bem no meio do gogó — ainda prefiro o velho e eficiente “Puran-T4-de-100”. Todavia, mesmo posando de cético, não gostaria de viver num mundo em que o ser humano não possa curtir os tais cristais e os gnomos.

Mesmo não sendo um sujeito que lê horóscopo, me recuso a aceitar um mundo onde esse tipo de liberdade não possa existir e coexistir numa boa com empirismos, métodos científicos, filosofia esclarecedora, comprimidos de 100 microgramas e vacinas que salvam vidas. Pois são essas coisinhas que nos conduzem também à verdade.

Além de nos manter vivos, friso.

Os sonhos e tudo aquilo que transpõe a tal lógica pode nos revelar coisas impressionantes sobre nós mesmos e sobre nossa relação com a vida. Com a plenitude da vida.

O que dizer, por exemplo, sobre os diversos povos indígenas que logo cedo pela manhã se reúnem ao redor do fogo, dividindo uma cuia de mate, para contar seus sonhos uns aos outros e, a partir daí, decidirem as ações do dia? Costume que, segundo Ailton Krenak, seria uma maneira de “trazer conexões do mundo dos sonhos para o amanhecer”.

Câmara Cascudo (fonte: Senado Federal)

Voltando um pouco à questão da gastronomia, assunto que tanto me encantou durante anos, lembro que em meus estudos sobre o tema me deparei com Câmara Cascudo. Esse antropólogo e historiador brazuca, autor do grande livro “História da Alimentação no Brasil”, usou e abusou da pesquisa séria e fundamentada para escrever o livro. Porém, Câmara realizou seu trabalho sem perder o encanto pela descoberta — seu texto era fluído, meio poético até. Suas palavras me soavam como alguém que conversasse comigo.

Era forma embelezando o conteúdo. Havia ciência e arte naquilo.

Com isso, creio que a fantasia e a arte nos fortalecem como indivíduos. Mas ser adepto da ciência fria e da vontade de querer reduzir tudo a teorias e resoluções, pode ser um lance chato. E essa ideia inspirada pelo Guilherme de Occan me fez lembrar do Fellini. O filme que revi nesse meu domingo de cervejas, sol e tédio.

Imaginem que estamos assistindoE La Nave Va”. Agora imaginem que ao vermos a cena onde um rinoceronte está apaixonado, uma bióloga chegasse ao nosso ouvido e nos dissesse, com aquele jeitão pragmático e boçal, que, diante da ciência, “Rinocerontes da espécie Rhinoceros Unicornis não podem se apaixonar.” Seria muito ruim e constrangedor pra gente como nós perder a estribeira e cogitar homicídio.

Poster do filme E La Nave Va (fonte: vertentesdocinema.com)

Não estou defendendo aqui a burrice e a ignorância, podem passar a navalha nisso aí (ou mesmo o facão). Para mim, a terra continua redonda e azul, pra fazer justiça ao Gagarin, e o Olavo continua sendo um idiota (não consegui passar da página 20 de seu livro também idiota). Só estou querendo explicar que podemos ver belezas em absurdos, nas mentiras e nas farsas. Podemos nos deixar levar por uma lenda, respeitá-la pela carga cultural nela contida. Replicar, reinventar, recontar, mentir e ser feliz.

Querer um mundo mais simpático, em que eu possa compor uns rocks rurais e, quem sabe, cultivar um bigode bacana tal qual o do Belchior, não é o pior dos pecados. Viver num lugar onde as mentiras que nos trucidam sejam esclarecidas e as belas sejam mantidas e estimuladas, me parece uma boa saída.

Acreditar que um rinoceronte possa deixar de comer com saudades. E que ele também possa sair ileso dum navio, num pequeno barco de madeira, tendo ao fundo uma lua artificial, tudo isso enquanto o bichano navega solene num imenso e azul mar de plástico, me encanta. E me parece um lugar legal pra se viver com os filhos de “cuca legal”.

Um mundo bem longe daquela corja que insiste em nos matar com suas mentiras. As do tipo que nos destroem por dentro, cada dia mais um pouco. Sem rinocerontes doentes de amor. Nem oceanos de plástico, azuis e infinitos. Bem ao modo do grande mentiroso que o Federico foi.

Gustavo Rios para o Microphonia.

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Gustavo Rios
Microphonia

Escritor baiano. Participou de coletâneas, sendo “Soteropolitanos” a mais recente. Também é autor do livro “Rapsódia Bruta”, entre outros.