BANDA DESENHADA

Os Velhos Causos e a “Era das Lives”

André Lissonger
Microphonia
Published in
4 min readApr 27, 2020

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Cartão Postal — Tarsila do Amaral, 1929.

Nas férias escolares da nossa infância, na velha Guanabara, nossos pais nos levavam da capital para o interior do Estado — Piabetá, Mongaba e Magé/RJ.

As atividades mais interessantes daquelas férias sempre foram: tomar banhos de rio, de cachoeira, de chuva, correr das de granizo, fazer passeios de trem, ou no volkswagen cor de abóbora do meu avô Raul, comer frutas tiradas do pé, pegar ovos de galinha no quintal, ver minha avó Nadir comandar aquelas grandes cozinhas, jogar bola na várzea, ou de gude, botão, triângulo, soltar pipa ou pião, ler gibis e, sobretudo… ouvir, pela noite, os causos contados pelos mais velhos, agregados e visitas, nas varandas.

Na sala ou na varanda da casa de Piabetá/RJ, ou na velha varanda do belíssimo casarão eclético (cor terracota, de influência mexicana) da sede do sítio de Mongaba/RJ, meus avós, pais, tio(s), peões, comadres, compadres, correligionários, incluindo sapos, grilos e vaga-lumes, uniam-se em torno do aconchego das mais incríveis noturnas searas folclóricas e quixotescas.

A TV colorida adquirida recentemente, para assistir a Copa do Mundo de 70, vivia quase sempre desligada. Os causos eram o ritual de conservação e atualização daquele lugar no mundo.

Mas antes que imaginem que escrevo alguma espécie de autobiografia, ou que me ocorrem lapsos “em busca da infância perdida”, é que estas memórias afetivas (re)atravessaram minha visão de mundo sobre as formas sociais nestes novos tempos.

Bastante diferente daqueles tempos, vivenciamos atualmente uma acelerada (re)significação das relações interpessoais — sociais, familiares, de vizinhança, com a comunidade, o bairro, a cidade, o mundo. E, aparentemente, despercebido no bojo dessas transformações, um irreversível processo de banalização.

Nesse sentido, duas das mudanças mais efetivas se encontram e se unem nas novas formas digitais e virtuais de narcisismos e de (auto)isolamento.

Por um lado, encontramos uma sobreposição excessiva e atravessada de diversos tipos de desejos egoístas — econômicos, políticos, estéticos, corporais etc. Manifestações que emergem através da hiper exposição pessoal e coletiva na rede global viabilizada pelos atuais meios tecnológicos. Muitos procuram inventar-se como “novos mitos”. Porém, não passam de espécies de mini-mitos pessoais novíssimos narcisos — novos ícones/índices e seus coletivos formados por seguidores e haters.

Por outro lado, temos a questão: até onde é justo que o ser humano venha a sentir-se incomodado com o isolamento social e o distanciamento corpóreo, obrigatórios por medidas sanitárias contra a expansão de uma pandemia?

Desde as duas últimas décadas, deste milênio, vemos crescer as formas de isolamento social. Jovens aprisionados voluntariemente pelo vício em vídeo games, aumento dos canais de streaming e a consolidação das redes sociais digitais. Casais, famílias inteiras, grupos de colegas de trabalho, da escola ou de amigos sentados nas mesas dos restaurantes, na sala de casa, na mesma velha varanda, pouco conversam entre si. Estão concentrados em suas luminosas interfaces eletrônicas e digitais.

A atual “Era das Lives” expõe ainda mais freneticamente estas duas condições.

E mesmo com todas as úteis funções que as “lives” nos proporcionam, elas ainda mais reverberam os narcisismos e o isolamento mundial, pois se inserem avassaladoramente em uma efêmera realidade, onde as antigas relações interpessoais e com o mundo, dissolveram-se em outros valores.

Uma realidade onde as “lives” estão carregadas de altas concentrações de necessidades e diversos novos tipos de desejos sociais, mas também de nostalgia, impotência, saudade, melancolia e distante frieza. Uma realidade na qual “as velhas”, porém reais, histórias pessoais viraram uma liquidação de #TBTs, nas quintas-feiras. Onde as novas “stories” pessoais e coletivas duram um fragmento de segundo ao deslizar dos dedos (e ainda assim, misturados com os de outrem). Onde os intermitentes coachares de uma rã ou os crique-criques de um grilo duram apenas 140 (hoje, já 280?) caracteres de uma tuitada.

O papel dos velhos causos das nossas antigas redes familiares e de amizade, dentro das reflexões dos dias de hoje, reside em um convite a vivenciarmos outras formas de aproximação e convívio social, onde as relações interpessoais sejam menos banalizadas.

Na frenética expansão e sobreposição de milhares de tipos de “lives” neste período, diante do bombardeio midiático e informacional que já vivemos, talvez seja mais interessante que elas nos proporcionem formas mais criativas, mais engrandecedoras, de expressão.

Onde, talvez, até a naturalidade ocasional da vida caseira, dos cães latindo, das crianças se “intrometendo” nas transmissões, sejam as reais demonstrações da vida… e não do encenamento da live.

Onde até o “vazamento do áudio” vindo distante das conversas dos familiares na varanda não se considere “ruído externo”. E sim, talvez, mais um velho causo a se ouvir.

André Lissonger para o Microphonia.

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André Lissonger
Microphonia

Microphonia editor and reporter . Architecture . Urban planning Professor . Rock music . Urban sketchers . Art