CASA DA MÚSICA

Rebeldes Beduínos: o Pop do Norte da África

Magano
Microphonia
Published in
3 min readJun 4, 2020

--

Numa recente live do MicrophoniaROCK E ÁFRICA: CONTRAFLUXOS CONTINENTAIS — , mencionei a música rock/pop do norte da África, com o convidado Cadinho Almeida, baixista, produtor musical da cena rock de Salvador. Numa playlist que havia me enviado, fruto de pesquisa cuidadosa, contendo músicas do rock tradicional e contemporâneo do continente africano, pude escutar artistas do afro rock, funk e soul, produzidos na Nigéria, Gana, Benim, principalmente. Guitarras, bateria, baixo, percussão e voz, soam diferente do tradicional rock ocidental, e apesar de muitas letras em inglês, a marca da rebeldia vem muito das cicatrizes de sociedades, que haviam conquistado independência recentemente.

Embalado pela playlist, mergulhei na música pop fusion de países do norte da África, como Argélia e Marrocos, cujos expoentes cativaram gerações de ouvintes franco argelinos e franco marroquinos, vivendo majoritariamente em Paris, e tendo que enfrentar o preconceito e a discriminação devido à suas origens africanas, nas ruas, escolas, espaços de trabalho e de celebração musical. Era o final dos anos 70, início dos 80, e esses artistas foram influenciados, além do rock, já em modulação, também pelo pop moderno e música eletrônica. A fórmula musical da rebeldia agora incluía a mistura desses gêneros musicais com a música tradicional argelina e marroquina. Escolhi focar nesse texto em três artistas que foram precursores de músicas de protesto e influenciaram gerações posteriores.

O cantor Rachid Taha, falecido em 2018, talvez tenha sido o primeiro e/ou mais rebelde, com sua música inovadora, que trazia elementos do rock, música eletrônica, amalgamados aos sons tradicionais argelinos, cantando voz árabe marcante, e as letras sempre politizadas e afirmativas para a comunidade franco argelina.

Cheb Khaled ou simplesmente Khaled, também argelino, é bem conhecido mundialmente, e aqui no Brasil sua música de maior sucesso foi “El Arbi” (Um Árabe). O ritmo de suas músicas é primordialmente dançante e a mensagem de afirmação da identidade argelina, vai mais em forma de celebração, numa espécie de convite a formar uma egrégora. Khaled é considerado o rei do Raï, gênero musical tradicional da Argélia, que data dos início dos anos 1900. O Raï, lá pelo final dos anos 70, início dos 80, tornou-se muito popular, através artistas que incorporaram sons pop modernos aos tradicionais da Argélia, tornou-se um ritmo bem mais dançante, e Khaled um dos que mais ajudou a popularizarização.

O terceiro artista, e mais contemporâneo que os dois anteriores, é Aziz Sahmaoui, do Marrocos, junto com seu grupo, University of Gnawa. A faixa acima é do último disco dele de 2018, uma produção primorosa. Criado em Marraquexe (prefiro a escrita Marrakech), cresceu ouvindo a música do povo Gnawa, cujos ancestrais eram africanos escravizados levados através do deserto do Saara. Aziz muda-se para Paris e lá funda o excelente grupo, de muito sucesso, Orchestre National de Barbès. Nesse grupo já aconteciam as fusões de reggae, chanson francesa e influências musicais do norte da África. Agora em carreira solo. Aziz tem sido um dos maiores expoentes da fusão da tradicional música marroquina com ritmos pop, reggae, jazz-fusion e a sua bela e suave voz é um destaque, além do n’goni, um instrumento de cordas tradicional do Mali.

Num salto pra Bahia de Moraes Moreira, lá de Ituaçú, passando por Salvador, depois musicando do Rio, lembro do norte da África na sua música e letra, embebidas de tradição da cultura nordestina, de violeiros, sanfoneiros e histórias da formação do sertanejo, do canto aboiador dos vaqueiros. Na letra de um dos hinos do Carnaval da Bahia, “Chão da Praça”, que é do seu parceiro cearense Fausto Nilo, com música de Moraes, há uma passagem na qual ele canta “eu era menino, menino / um beduíno com ouvido de mercador”. Existe aí um fio de memória da ocupação da Península Ibérica pelos árabes Mouros (711–1492), e então, durante a invasão portuguesa no Brasil em 1500, tratada por alguns livros didáticos de História como Descobrimento, vieram também elementos musicais desse contato dos portugueses com esse povo oriúndo do norte da África. E é por essas, e outras, que a nossa música popular brasileira tem muitas matrizes afro. Para maiores detalhes, informação e conhecimento, leiam a recente entrevista do maestro Letieres Leite no site soteropolitano de música elcabong.com.br

Lucio Magano para o Microphonia.

--

--

Magano
Microphonia

Psicólogo, doutorando, guitarrista; produção e pesquisa no @radioafricabrasil da Educadora FM 107.5 ;Colaborador e editor no @microphonia_