OUTROS TONS

Revolução dos Bichos à Moda Pindorama

Gilberto Filho
Microphonia
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3 min readMay 30, 2020

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Great Footed Hawk — Robert Havell, John James Audubon, 1827.

A assembleia persistia noite adentro no celeiro acalorado. Uma cacofonia de urros, silvos e grunhidos se misturava a estalos de cascos e batidas nervosas de asas. Há tempos os ânimos se acirravam, tornando o clima da fazenda insuportável. A nova gestão atribuía as desgraças aos anos de roubalheira promovidos pelos porcos, não permitindo qualquer contestação. A fome, porém, teimava em romper o silêncio.

O momento mais aguardado, enfim, chegou quando a palavra foi dada à Sua Excelência Sra. Brócoli, uma velha coruja à qual era atribuída a vigilância da lei.

— Excelentíssimo Senhor Comandante Potroasno; Nobilíssimo Chefe Legislativo Ovino Maya; prezados confrades de todas as espécies - o tom grave de sua voz provocou uma rara atenção da bicharada.

— Dado o efervescente interesse coletivo pela matéria, por ora posta, e em face da iminente obliteração de nossos princípios mais elementares e subjacentes, diga-se, às relações democráticas, externei a vênia para que os autos sejam indeferidos em desfavor dos litigantes.

Os participantes se entreolharam confusos, sem saber ao certo qual decisão foi tomada. As orelhas murchavam sem compreender a fala tão rebuscada da sábia ave, responsável pelo julgamento mais importante da Fazenda Guariroba.

— …e, não havendo óbices legais, arquive-se — declarou, encerrando seu juízo ao tempo em que seguiu, poleiro acima, com a costumeira pompa.

Naquele instante podia-se ouvir o vento a farfalhar os ramos dos cedros. Afinal, qual foi a decisão? A resposta, traduzida na universal expressão de um sorriso, estava estampada na cara do burro vitorioso. Um murmurinho crescente prenunciou o alarde enfurecido do marreco:

— Ele ganhou de novo! Marmelada! Isso é marmelada!

E todos vociferaram como se fossem tomados por mil demônios. Porcos dispararam aos patos: “Fascistas não passarão!”; bois ruminaram seu velho bordão: “Mito! Mito! Jamais será vencido!” Dividida, a bicharada acirrava a luta fratricida.

Bicadas, mordidas e coices atravessavam a noite sangrenta mutilando os corpos. Só os cães, ainda que numerosos, mantinham-se impassíveis ao lado de seu líder, gordos como estavam. Quanto às ovelhas, dadas a legislar em causa própria, nem se viam mais.

Entregues à própria sorte, os animais, por vezes, hesitavam como se não reconhecessem seus inimigos. Mas logo um novo zurro seria proferido daquela boca maldita para reacender as hostilidades. Acabaram por se digladiar sobre corpos, sem que os cães - contra os quais não há lutar - fossem importunados.

Após tamanha refrega não houve galo para anunciar a aurora, e então o sol não trouxe a manhã. Desfigurados, saíram dos escombros do celeiro, um a um, em marcha exausta através da bruma densa que descera sobre a Guariroba.

Os que ainda tinham olhos, ou que tinham condições de usá-los, avistaram pela janela do casarão sede os burros e os homens, celebrando o mesmo festim, no centro do qual, gargalhava a besta assombrosa. E, numa tardia sincronia, os bichos balbuciaram: “Ele não!”

Gilberto Filho para o Microphonia.

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