CASA DO SOM

Samba Punk, Back in Black: Salve o Almirante Negro!

Magano
Microphonia
Published in
4 min readMay 2, 2020

--

O regime militar, vigente no país de 1964 a 1985, foi um pé no saco da música. Se hoje você desce até o chão, dança em bares, vai a shows mainstream, alternativos, cult, e, por alguma revolta com a história política recente, pede intervenção militar, seria bom se informar sobre esse período. E analisar como seriam os efeitos diretos e indiretos na sua vida. Durante esse período nada democrático, os compositores de música popular — inclua aí mpb, brega, rock, samba, pra citar alguns — foram alvo do Departamento de Censura, e, obrigatoriamente, todas as músicas “suspeitas” tinham suas letras revisadas. Se fosse hoje, talvez só a música gospel escaparia desse escrutínio.

Muitas vezes, os compositores tinham que modificar títulos, frases, expressões e palavras, classificadas como críticas ou de protesto contra o regime. Isso não era um pedido de revisão, era uma condição imposta para que artistas tivessem sua composição liberada pela censura dos órgãos do regime militar. Registre aí: censura. Pois, movimentos do atual governo e seguidores já levaram a polícia militar a interromper apresentações musicais nas ruas de São Paulo e Recife. Houve também a investigação pela Polícia Federal, do festival punk Facada Fest, em Belém, após pedido do ex-Ministro da Justiça, Sérgio Moro, que considerou o cartaz abaixo, com sátiras ao presidente, como “apologia a crime, além de ofensivo”.

Cartaz do artista Paulo Victor Magno para o Facada Fest.

Pois é, como dizemos por aí quando sabemos de uma situação difícil, recorrente e sem muita alternativa: é punk! Era punk para artistas comunicarem nas letras suas críticas ao governo e, ao mesmo tempo, escapar da censura. Uma estratégia era misturar elementos de samba em suas músicas, uma vez que esse gênero musical era amplamente aceito e percebido como carecendo de características políticas, embora isso não fosse completamente verdade para todas as expressões do samba. Os ritmos alegres do samba, juntamente com as letras incorporadas a significados duvidosos, ironia e menções alegóricas de uma sociedade que vivia sob repressão, constituíram uma estratégia muito eficaz para resistir e lutar contra a ditadura.

Transnacional desde os anos 60, o samba era um gênero musical oficialmente promovido pelo regime militar como expressão cultural, original, de um país mestiço, e se tornou até mesmo estratégia na Guerra Fria contra o comunismo. Devido ao seu status sociocultural estabelecido, o samba era uma arma, dispositivo rítmico para manifestar opiniões e disfarçar denúncias contra a violenta repressão da ditadura.

Em 1974, o compositor Aldir Blanc, parceiro do cantor João Bosco, foi “convidado” a comparecer ao Departamento de Censura, para prestar esclarecimentos sobre os trechos da música intitulada “O Almirante Negro”. A música, um samba antológico na voz e violão de João Bosco, que narrava o episódio da Revolta da Chibata, ocorrido em 1910, na Baía de Guanabara, sob o revolucionário comando do marinheiro negro, João Cândido Felisberto. O motivo da revolta? Castigos físicos sofridos pelo que era considerado indisciplina — centenas de chibatadas nas costas — semelhantes aos da escravidão, abolida há apenas doze anos, em 1888.

Tanto o título quanto a letra da música são uma homenagem ao líder da revolta, que liderou a tripulação de dois navios de guerra no combate ao racismo, castigos físicos e humilhações contra os negros que serviam na Marinha do Brasil, no início do século XX. A revolta aconteceu de 22 a 27 de novembro de 1910, no Rio de Janeiro, na época, a capital federal do Brasil.

Posteriormente, o título da música foi alterado para “O Mestre-Sala dos Mares”, como ficou conhecida. E, no refrão, temos “Salve o Navegante Negro”, enquanto que a original era “Salve o Almirante Negro”. A letra contém uma forte narrativa poética de mais um episódio da história do nosso país, caracterizado por racismo, autoritarismo e violência. Foi punk!

Dê o play e confira o samba! Abaixo temos a letra original, com as palavras censuradas, inclusive o título, e a letra que foi gravada, com as substituições.

Versão original da letra (coluna da esquerda) e a liberada pela censura (coluna da direita).

Magano para o Microphonia.

--

--

Magano
Microphonia

Psicólogo, doutorando, guitarrista; produção e pesquisa no @radioafricabrasil da Educadora FM 107.5 ;Colaborador e editor no @microphonia_