OUTROS TONS

Tango Solo

Gilberto Filho
Microphonia
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3 min readApr 19, 2020

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Astor Piazzolla

Após a siesta, ele põe um disco na vitrola e senta os dedos na velha Remington. O tango lhe inspira a escrever uma matéria que, logo mais, estará impressa no jornal. Sem que se dê conta, compõe a trilha sonora que me seguiu até os vinte e poucos anos. Graças a meu pai ouvi mais tango do que a maioria dos argentinos. Som esquisito era aquele, eu pensava resignado, enquanto a pulga do rock mordia a minha orelha, reclamando a vitrola.

Meu velho é kardecista, acredita ter sido um portenho em outra encarnação, e, não fosse por algum karma incompreendido, teria nascido por lá de novo. Sua atração pela música o levou a ter a maior discografia imaginável, e até a biografar para editoras de discos. Mas impagável mesmo era a sonoplastia de nossos vídeos de férias, recheados de La Cumparsita, enquanto a gente comia acarajé ou tomava banho de mar. Era muito non sense: “Seu Gilberto meteu tango em tudo!”

Cena do filme “Tango” (Carlos Saura, 1998).

Corta. O ano é 2019. Eu, com cara que carimba postais, e que por descuido abriu o set list que chegou, fitei estupefato. “Quem diabos ouve isso?” A ousadia de um aluno de canto estava na escolha para sua apresentação. Por una cabeza, um clássico do Gardel. Respiro. Recordo. Ouço. Ainda é em fá sustenido saporra.

Vem o ensaio do Conservatório. Um aluno vai tocar violão num sertanejo; outra vai cantar gospel. As pulguinhas que acumulei na orelha nesses anos de estrada cochicham os clichês de MPB, pop, axé e tudo o mais. Entra aluno, sai aluno, e eis que, lá pelo fim, chega o elemento. Ousadia e letra na ponta da língua, mas nada dos músicos se acertarem. Entonces el santo bajó. Meto arranjo, explico a célula pro batera, regulo o tecladista. Em cinco minutos, tá pronta. Como é que eu sei isso?

Chega o dia. Teatro cheio de pais, mães e tias babonas. Uma garota sardenta se esforça no piano, sem acompanhamento. Aproveito os minutos na coxia para corrigir a pronúncia do rapaz: “É tristessa, tá?, espanhol não fala zê.” Som de aplausos, a garota sai aliviada. Vamos.

Três. Quatro! Fá sustenido. O trem da canção não para fora da estação, tem que seguir, ainda que assombrado. Falo por dentro: “Entra a voz.” Faço sinal pro batera: “Dinâmica, viado!” O tecladista rende a nota. “Staccato, pô!” O guitarra pesca ao meu lado. Tem que casar as notas. “Cresce no refrão!” — grito por dentro, naquela torcida telepática que só quem tá no palco sabe. O garoto brilha. Por una cabeeeeza!

Solto os graves do Yamaha e corro feito zagueiro pra fazer gol de cabeça. “Xá comigo saporra!” Fraseei de improviso, igualzinho aqueles discos me ensinaram. Meu guitarra me sorriu latindo — o “aauu” é um código nosso. “Gostou, né?” A banda cresce, o garoto também. Fechou refrão. Tome fá! Fim.

Aplausos acalorados, gente de pé, o escambau. São pro garoto, eu sei, mas respiro realizado.

Saquei, tá no sangue. Um tango argentino me vai bem melhor que um blues. Só precisava mesmo um empurrão do destino para descarregar o Piazzolla que há em mim. É, pai, como o provérbio dos hermanos profetiza: Pulgas nunca faltam para cachorro magro.

Gilberto Filho para o Microphonia.

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