COZINHA DO CÃO

Um Blues Para o Meu Bairro

Gustavo Rios
Microphonia
Published in
8 min readSep 26, 2020

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Prum cara que cresceu sob o tacão de ferro do catolicismo, escutar Robert Jonhson era como pecar. Afinal, havia a lenda ao redor daquilo, a tal encruzilhada. Ainda hoje lembro da tarde de cores amenas. O sujeito de dezessete anos e cabelos longos com uns Cd’s embaixo do braço correndo pra casa.

Na época, eu morava no bairro chamado Resgate, em Salvador. Um lugar de prédios baixos que margeavam uma rua estreita, vibrante, inesquecível e sem saída: a vida da gente sempre desembocava no final de linha.

RestGate Blues (Foto:Nti Uirá)

Havia medo e euforia. O pós-adolescente que ainda curtia histórias em quadrinhos, numa época em que homens usando cuecas coloridas para fora das calças podiam salvar o mundo, finalmente conheceria a lenda.

Aquilo me pegou em cheio. E ainda hoje, incapaz que sou de definir claramente o tipo de som, o timbre certeiro, ou mesmo o que seria exatamente um simples poema de 12 compassos, me comovi com a voz que parecia sair de uma caverna, ou mesmo do além — ou as duas coisas, juntas. Era como se o Robert Leroy Johnson tivesse retornado ao mundo dos vivos pra cantar e tocar seu instrumento. O milagre vindo numa velha fita BASF, num bolachão encontrado num sebo, ou mesmo num CD (o meu caso).

Foi um dos meus primeiros contatos com aquilo que chamamos eternidade, depois dos livros. O entendimento que fala sobre os que nunca morrem. Como o dono da voz que saía daquela caverna, o seu violão batido, seco, melódico, marcante.

Na ocasião, eu nada sabia sobre a estranha natureza daquele som. Meu contato não passara de algumas músicas ouvidas esporadicamente. E o nome. O mesmo nome registrado num diário, lá pelos idos de 1862, pela então professora Charlotte Forten. Uma negra nascida livre no Norte dos Estados Unidos que dava aulas para escravos na Carolina do Sul.

Perturbada pelos gritos vindos dos bairros de escravos, ela escreveu: “Voltei da igreja com o Blues. Joguei-me sobre meu leito e pela primeira vez, desde que cheguei aqui, me senti muito triste e muito miserável”.

Segundo relatos, foi a primeira vez que alguém deu o nome pra aquilo. A primeira vez, a palavra Blues, associada a um profundo sentimento de tristeza. O mesmo Blues que eu escutei naquela noite de sexta.

Mais ou menos nessa época, no prédio em frente, um amigo de infância estava na casa dos pais. Estava de férias, ou algo do tipo. Integrante do Grupamento de Fuzileiros Navais de Salvador, Zel, que passara a infância dividindo comigo a paixão pelos quadrinhos de herois, mudara. Ele crescera, usava as roupas camufladas e flanava pelos nossos quarteirões, numa boa.

Mas não era somente isso. Seu gosto musical havia se modificado um tanto, acho que por causa de suas viagens com a tropa, de uns relacionamentos incertos e dos anos que temperam e esmerilham o melhor que existe em cada um de nós.

O fato é que Zel andava curtindo rock and roll e coisas do gênero. E foi em sua casa, escorado na janela de seu quarto térreo, que pela primeira vez escutei Howlin Wolf.

Por isso, não digo que fiquei surpreso quando o vi tocando harmônica e sendo a voz de uma banda. O cara que compartilhou comigo sonhos em que voávamos sobre metrópoles arrasadas, com nossas capas vermelhas e as cuecas fora das calças, aparecia em festivais e em bares como vocalista de uma das mais legais bandas de Blues que conheço: a RestGate Blues.

Composta pelo Wyll (o meu amigo Zel, na voz e na harmônica), Átila Caribé (guitarra e vocais), Uirá Tiago (bateria e vocais) e Rayan Ribeiro (baixo e vocais), a RestGate Blues vem se apresentando e dando as caras desde 2002. Seu nome é um trocadilho bacana com o Resgate. O mesmo lugar em que eu e Jr. Wyll crescemos. O lugar em que a banda se apresentou pela primeira vez.

Segundo os próprios integrantes, a RestGate Blues usa como base o estilo chamado “Blues do Delta do Mississipi” e o também chamado estilo “Chicago Blues”. Grosso modo, tais denominações servem para dar um norte à proposta dos caras — ainda que, ao pé da letra, depois de umas cervejas, você esqueça isso e resolva somente curtir o show desse poderoso quarteto.

Numa pesquisa rápida e rasteira, por que não admitir, tais denominações surgiram da necessidade de organizar as diferentes formas de se entender e de se tocar um bom Blues. Resumidamente, percebi que tal divisão “geográfica” defende a seguinte ideia: o “Delta” foi onde os primeiros registros fonográficos foram realizados, considerado por alguns como a origem de tudo. Dessa forma, arrisco dizer que o Blues vindo de lá era o alicerce, o ritmo essencial, digamos. A coisa funcionava na base da voz e do violão, e aqui estou falando de um artista dialogando com o instrumento, geralmente com a alma em jogo, não de alguém cantando “Dia Branco” num barzinho de merda.

Já no chamado “Chicago Blues” a coisa progrediu, com o blues tocado no “Delta do Mississipi” migrando, se tornando um pouco amplificado, por assim dizer. Nesse estilo, o som foi inserido num contexto de banda, incluindo aí a bateria, o baixo e a harmônica que meu grande amigo aprecia e toca num outro cenário.

Tal didatismo, fundamental pra leigos como eu, só fez aumentar a minha admiração pelo gênero: lendo sobre isso, gosto de imaginar aqueles caras cruzando estradas sem fim, com seus instrumentos, indo de um lugar a outro. Temperando e forjando o som com novidades e influências.

Entretanto, dizer que a RestGate Blues ignora outra vertentes é errar feio. O som dos caras vai mais longe. É respeitoso com as origens e com as diversas nuances que o gênero musical agregou. Prova disso é o EP lançado no final de 2019 pela Trinca de Selos.

Com uma capa magistral (me lembrou o Mathias Schultheiss dos tempos da lendária Revista Animal; mas esse é um outro papo), obra do artista baiano Caique Pituba, as cinco músicas do primeiro EP da RestGate Blues mostram o grande trabalho desses talentosos músicos. A “gang”, termo que eles parecem adorar, tem um grande trabalho circulando por aí.

De cara, “Vivendo Blues”, a primeira, é uma celebração à vida. E aqui, queridos, entendam a palavra vida no maior alcance possível: quando se faz as escolhas primordiais, pagando o preço e seguindo a alma. Aquele olhar pra dentro do que somos.

Bastante autoral, a canção brota, rompe o chão e se dirige ao alto, com a pegada rock and roll que, no frigir dos ovos, é mais uma das crias do Blues. A voz rasgada e marcante de Jr. Wyll marca o tom e o clima, segue em frente e celebra. Acompanhada de forma magistral pelos seus comparsas, “Vivendo Blues” é basicamente um dia na vida dum cara, contada numa letra simples e tocante: Mas tem que ser desse jeito/Se quiser viver na terra/Todo mundo tem sua cruz/Eu aprendi desde moleque/Deus também escreve blues.

A discrição fundamental da bateria dá o chão e o trilho. É de onde um baixo surge mantendo tudo no eixo, cortado vez ou outra pelo som da harmônica e pela guitarra. O piano, executado com moral e pompa pelo músico Zito Moura, se mantém firme, no lugar exato. Vibrando e aumentando a potência e o ritmo da faixa. Além de dar o toque meio “roquenrol” que citei acima.

E eles seguem convictos. O improviso na hora certa, os solos de cada um dos integrantes nos elevando; a letra ecoando em nossos velhos corações: Deixei muitas cicatrizes/Umas boas outras más/Mas se depender de mim/Hoje vou viver em paz/Que atire a primeira pedra/Quem andou só direitinho/Quem não cede e nem seduz/Quem não quer ser ser humano/Nunca entenderá um blues.

Digamos que é um excelente começo.

Em seguida, a composição feita por Wysel Jr. e Maurício Goulart, “Easy Night Woman”, nos traz um som mais dançante e suingado — leigo que sou, arrisco dizer que pesquei algo de Luther Allison. Alguma coisa do estilo funk-blues, outro que a banda chama pra si. Numa boa.

De temática bem “blueseira” — o sujeito que caminha pela noite buscando um pouco de amor -, destaco na faixa o solo de guitarra que, mesmo que amplie as possibilidades da música, corrobora e mantém o propósito. A coesão que segura a banda em suas escolhas se mostra acertada. E Átila, o guitarrista, bem que poderia voar mais alto: ele tem moral pra tanto. Porém, digno de um grupo que se entende, Átila escolhe seguir o fluxo, sabendo ser o protagonista exato no momento exato.

“I’m a Reptile”, a seguinte, se inicia lenta e um tanto sorrateira. Coisa de animais de sangue frio e camuflagens, essas coisas. Um baixo que não define pra onde vai, sedutor e matreiro, cresce devagar para se encontrar com os outros instrumentos, incluindo a guitarra que surpreende sob o efeito de um Wah Wah. Quando a “cozinha” entra (a clássica formação baixo-bateria), a gente finalmente percebe que está entregue. Tudo isso enquanto a banda sustenta o trajeto e a magia do instante, brincando conosco e experimentando sem se perder no caminho.

Já a quarta música, “I’m Sorry, Blues”, produzida por Victor Jessy, é um blues do tipo classicão: aqui prevalece a base “simples” e mais conhecida, digamos. Necessária para percebermos o feeling (no sentido de intuição e intensidade) de cada integrante da banda, com destaque para o vocal, que ganha espaço para destilar a mensagem, a composição trata de dor e perda com uma perspectiva bastante particular, se compararmos com uma das noções que ajuda a definir o Blues não como música somente, mas como sentimento — aquela ideia do Blues como catarse do sofrimento de um povo.

Em “I’m Sorry, Blues” o enfoque é pessoal. Mas não menos interessante: My mother gone/my father too/I’m alone, ‘cause/I have no more you/What can I do?/Please babe say me, what can I do?/’Cause every place on my way make me keep/But can make me cry too.

Já a última faixa, “Menos Um, Amor” desponta acelerada, bem humorada, malandra e cheia de ritmo. Coisa pra se divertir e seguir noite adentro, sem olhar as horas. Com cervejas, amigos e algum caso mal resolvido. Desses que nos tiram o sono e justificam mancadas dignas de nota e, muitas vezes, de esquecimento na manhã seguinte.

Pra encerrar, creio que a prevalência em todo o EP de tons graves trouxe a unidade necessária à obra, reforçando o estilo da banda, sem pirotecnias que poderiam estragar o trabalho. Todas as faixas soam meio cruas e um tanto abafadas. Como se estivéssemos num desses Clubs saturados de gente, suor, algaravia e vida.

Dessa forma, posso dizer sem vacilos que a RestGate Blues é uma grande banda. Assim como digo que o Blues, essa força que arrebatou a senhorita Charlotte num dia qualquer, na distante Carolina do Sul, continua sendo pra mim o melhor dos pecados.

Eu ainda escuto aquela voz. O homem, a caverna e um violão. Uma alma em chamas atravessando as vicinais do tempo.

Gustavo Rios para o Microphonia.

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Gustavo Rios
Microphonia

Escritor baiano. Participou de coletâneas, sendo “Soteropolitanos” a mais recente. Também é autor do livro “Rapsódia Bruta”, entre outros.