GINGER HEAD

Vaia, Vexame e Rock and Roll

Rogerio Rios
Microphonia
Published in
5 min readMay 9, 2020

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No início dos anos 90, não haviam muitas bandas de rock na Boca do Rio, bairro popular, mas nada glamouroso da capital baiana. Três grupos de rock era, provavelmente, tudo o que tínhamos por lá. Estávamos pegando jacaré¹ na marola em que a Bahia esperançosamente surfava. A Rádio TransAmérica estava consolidada em sua programação rocker e outras emissoras começavam a tentar pegar parte desse filão, como a Aratu FM e a Rádio Cidade. Alguns discos foram produzidos nessa década com bandas autorais baianas e ouvíamos suas músicas em plena rádio! Aquilo nos servia de incentivo e nos dava uma sensação, uma expectativa de que algo grande estava para acontecer no cenário.

A pretexto de contextualização, vamos falar um pouco das três bandas que citei acima: a primeira delas era a Tubarões Humanos, que tinha um cantor gago, que escrevia muito bem, mas gaguejava até cantando. Eram respeitados pela qualidade de suas letras e pelo som original, que era o reflexo de nossa realidade no bairro. Abaixo, um trecho de uma de suas canções, que não esqueci, desde a primeira vez que ouvi.

''Eles vêm armados
Guitarra, baixo e bateria
pra enloquecer o ambiente
Com o rock da periferia…''
(Gago/Tubarões Humanos)

Já a segunda banda tinha atributos muito peculiares. Batizada de Esperma Apodrecido, ela era autoproclamada como a verdadeira e única banda punk da Bahia. Eram numerosos, andavam em bando, usavam coletes customizados com o seu logotipo e tinham em seus códigos algo muito influenciado pelo visual do filme Selvagens da Noite. Com a diferença de que não havia nem metrô e nem outros grupos punks rivais. Aliás, esqueçam aquele papo de tocar todo o repertório com apenas três acordes. Eles eram tão punk, que nunca tocaram acorde algum. Não se tem notícia de nenhuma apresentação deles, mas o seu vocalista, que hoje é pastor, garante que tocaram muito e que se eu nunca fui a qualquer de suas apresentações é porque eu não era desse mitiê. Então, tá.

Por fim, havia uma terceira banda de rock, que teve origem num festival itinerante chamado de Boca de Brasa, promovido pela Fundação Gregório de Mattos, onde os jovens poderiam se apresentar pela primeira vez. Naquele espaço, valia poesia, teatro, piadas e, claro… bandas de rock!

Movidos pela adrenalina de experimentar a oportunidade de tocar para algumas centenas de espectadores, eu e Fábio, um amigo de infância que estava fazendo aulas de violão clássico, nos inscrevemos no festival ali mesmo, em um desses eventos ao ar livre. Ele empunhou uma guitarra da marca Tonante, desregulada, que fora emprestada de última hora e eu me apossei de um microfone amador, que me remetia àqueles microfones de feirante, inferiores aos que são utilizados hoje em dia pelo carro do ovo. Apesar de relutantes, a emoção falou mais alto e subimos pra dar o nosso recado.

O problema é que quando a emoção grita, não conseguimos ouvir mais nada!

Fábio, certamente, não percebeu o quanto a sua guitarra estava desafinada e eu parecia estar perdido, vociferando a primeira (e única) canção, enquanto uma microfonia coadjuvante roubava a cena e o papel principal.

Dizem que a nossa memória costuma colocar um tipo de verniz em tudo o que vivemos como uma forma de proteção à nossa integridade emocional. Assim, nos lembramos do passado de forma um pouco mais bonita do que ele realmente foi. Eu duvido muito dessa teoria, pois ainda lembro com precisão do constrangimento de ser vaiado fervorosamente em uníssono, sem entender, por longos segundos, de que éramos o alvo daquela insatisfação efusiva, que certamente teria sido um duro golpe em nossa autoestima, não fosse o pânico seguinte, causado por agressões verbais e objetos voadores, que traçavam a sua trajetória em nossa direção.

Ainda acometidos pelo vexame causado pelo reconhecimento de que a nossa estréia artística não teria saído como planejada, resolvemos que aquela seria considerada como uma experiência positiva. Afinal, não dava pra descer mais baixo do que aquilo. Só poderíamos melhorar! Assim, batizamos a nossa iniciativa de Pyoris (parecia ser o nome mais apropriado) e quase que imediatamente procuramos outros músicos malucos pelas nossas redondezas que estivessem a fim de fazer barulho, de se arriscar nesse terreno inglório.

Não vou me delongar sobre o que aconteceu durante aquele intenso e curto período de dois anos, em que cinco garotos estavam escrevendo, compondo e ensaiando com um mínimo de recursos técnicos, mas com uma vontade hercúlea de fazer parte de um movimento maior, mesmo que tocando para plateias ora vazias, ora insalubres. Estávamos vivendo 100% a vida underground e aceitando alegremente os termos dela. Sem garantias.

Antes de toda e qualquer apresentação de nossa banda, eu ainda era assombrado pelo horror da lembrança das vaias, da vergonha e da humilhação de nossa primeira aparição pública. Mas aquilo, felizmente, nunca mais se repetiu e o prazer indescritível de se expressar pela música suplanta a mais pertinaz das inseguranças.

Pra finalizar numa boa nota, vou deixar um tiquinho de uma de nossas letras aqui embaixo, como forma de um até breve:

Você que me pisou em coro
Que me jogou na lama
Nem pode ver que engoli o choro
Voltei da morte, sobrevivi ao drama

Não é vingança nem rancor
O que impulsiona a minha dança

Mandei o seu fantasma pro limbo
A esperança do novo dia raiar
Pra ter você de volta sorrindo
A cada acorde, cada despertar

(Rogério Rios/Pyoris — 1988, aos 17 anos)

¹ Jacaré: atividade lúdica que consistia em usar o próprio corpo para ''surfar''as ondas na praia.

Rogério Rios para o Microphonia.

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Rogerio Rios
Microphonia

Ilustrador Publicitário, Redator de HQ, Cantor do Kabessas de Gengibre, Cervejeiro Praticante, devoto à arte, adorador da cultura e adepto à consciência.