Só tinha pra menino

A desigualdade de gênero no esporte começa no começo

Glauber Morais
MIDIAPUNTA
4 min readApr 4, 2018

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Rafaela queria jogar futebol. A chegada de um projeto social à Cidade de Deus era a chance da menina de cinco anos.

“Quando eu cheguei lá pra procurar um esporte tinha a opção de futebol, dança e judô. E na hora em que meu pai falou as três opções eu falei: ‘quero fazer futebol’…eu não pude fazer futebol porque não tinha pra menina, só tinha pra menino”.

O jeito foi trocar o campinho pelos tatames. 20 anos depois, a criança cresceu e “ganhou” sobrenome: é Rafaela Silva, primeira e até o momento única judoca brasileira campeã olímpica e mundial.

Rafaela conhece bem o significado do vai lá e faz. Campeã do Mundial júnior aos 16, estreou em jogos olímpicos aos 20. A derrota em Londres 2012 ficou marcada pela enxurrada de insultos racistas sofridos pela atleta nas redes sociais.

O roteiro do filme da vida da brasileira reservava a glória quatro anos mais tarde. A inédita medalha de ouro veio no Rio, em casa. Não vimos pedidos de desculpas.

Vimos a superação de uma brasileira que não se cala diante do preconceito. A resposta vem na medalha no peito, ou na denúncia do racismo institucional sofrido por ela e outros tantos “Silvas”, negros e negras vítimas de abusos contra liberdades individuais durante a intervenção militar na Segurança Pública do Rio.

O que ela não esquece é o primeiro contato com o esporte. Como não levava desaforo pra casa e brigava na rua, o judô foi a opção. “Não sabia nem o que era judô, mas eles me abrigaram, eles aceitavam meninos e meninas”, lembrou esta semana durante evento em Salvador sobre políticas públicas e projetos esportivos para ampliar a participação de meninas e mulheres no esporte.

Rafaela fala sobre iniciação no esporte (Fotos: 1. Foto: Roberto Castro/Brasil2016 / 2. Elói Corrêa/GOVBA)

O recado é reto. A desigualdade no esporte começa já na iniciação. Tem o pra menino e tem o pra menina. E aí o caso em particular não é regra. Acaso? Talvez. Foco, determinação e talento provavelmente fariam de Rafaela uma atleta independente de modalidade.

Mas e as outras meninas da comunidade que sonhavam jogar futebol e acabaram nas aulas de dança? Ou escolheram o judô e ficaram pelo caminho por não terem quimono ou simplesmente por não se identificarem?

E as milhares de garotas que crescem longe do esporte justamente porque ouvem desde cedo que o que elas realmente gostam é coisa de menino? O momento da iniciação vira frustração. O que deveria ser lúdico, desinteressante, chato.

A prática do futebol misto entre meninos e meninas na infância não só é recomendado pela FIFA, como é tido como um dos fatores que contribuem para o desenvolvimento do futebol e do sucesso de escolas como as dos EUA e da Alemanha, donas de cinco das sete copas do mundo femininas.

“Permitir que meninos e meninas joguem juntos contribui para a emancipação dos dois gêneros, melhora a tolerância e promove o respeito mútuo. Ao brincar com os meninos, as meninas ganham uma imagem mais positiva de si mesmas, aumentam sua autoconfiança e tornam-se mais conscientes de suas habilidades”. — (The characteristics of children and the educational approach, FIFA).

A desigualdade reflete no papel social do esporte na vida de jovens e crianças e também na das pouquíssimas mulheres que chegam ao mercado profissional.

As atletas ganham até 40% menos que o mínimo recebido pelos homens. Com dados de pesquisa realizada ano passado pelo Sporting Intelligence, a diferença entre salários, patrocínios e investimentos no esporte na comparação entre gêneros é o mote da campanha #InequalityBalls :

Parceria entre EspnW, Penalty e Netshoes, o projeto tem renda obtida com a venda de bolas especiais revertida para a Think Olga. Criada em 2013, a ONG feminista desenvolve projetos como o Olga Esporte Clube, que promove o empoderamento de mulheres por meio do resgate do prazer pelo esporte.

O prazer que Rafaela Silva transpira conquistando o mundo no dojô é o mesmo de quem queria jogar e vibra ao colecionar figurinhas do mundial de futebol. É claro que ela já completou o álbum. Jamais duvide de uma menina.

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Glauber Morais
MIDIAPUNTA

Jornalista| Editor de Conteúdo| Adepto do Fruta, pan y café