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A voz por trás da pauta — parte 2

Na sequência da reportagem, a falta de pluralidade nas redações e o cenário cearense da Comunicação

Equipe Mídium
Mídium - Comunicação em Movimento

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O Especial Subversão está pautado em três verbos. O Viver é um deles. A voz silenciada se torna ativa pelo ato de existir e conquista espaços para ser ouvida. Esta é a segunda parte da primeira reportagem do Viver.

Um dos princípios do jornalismo é contemplar a diversidade e singularidade da sociedade, por meio dos assuntos pautados e da pluralidade de fontes e profissionais jornalistas. A pouca representatividade ainda ressoa. Enquanto jornalistas, o ato de tentar e conseguir ser o profissional que se almeja passa a ser um feito de insurgência. Uma luta contínua para se erguer em meio a um corpo social historicamente construído para negar e reprimir a existência de quem não pertence ao padrão determinado.

No Ceará, a construção do Jornalismo foi tão oligárquica quanto no resto do Brasil, promovida por uma elite que escrevia de si para pessoas de um mesmo grupo ouvirem. A falta de representatividade não é restrita às redações e também se faz presente nas instituições. A Associação Cearense de Imprensa (ACI), por exemplo, fundada em 1925, exemplifica essa carência. A instituição, em seus 94 anos de história, possuiu quinze presidentes brancos e, entre estes, apenas uma mulher.

Essa falta de representatividade ecoa em diversos setores da sociedade, e ao analisar os perfis de jornalistas cearenses, questões étnicas ainda são visivelmente díspares. Além disso, as questões de gênero não são contempladas nas pesquisas que investigam o perfil dos jornalistas no estado. Em sua criação, o jornalismo era acessível, em geral, para quem pertencia ao padrão. Os tempos mudaram e essa realidade não pode ser mais a mesma.

Em um estado tão diverso, por que uma redação tão homogênea?

Recentemente, deram cor às fotografias do consagrado romancista e jornalista Machado de Assis. Durante séculos as fotos foram convertidas em imagens e personificações do autor como um homem branco. As alusões e homenagens ao autor negaram sua identidade negra. Esse é o contexto brasileiro, no qual figuras que subvertiam dentro do sistema apenas por existir, tem características essenciais de seu ser apagadas.

O diálogo entre as diferentes realidades e vivências é necessário. A instrução e a conversa agregam à compreensão coletiva, e são essenciais para a desconstrução de preconceitos e estereótipos. É nesse sentido que Bruno de Castro se ressignifica como comunicador, e assim nasce o Ceará Criolo.

“A gente nasce primeiro na expectativa do outro. Quem me disse primeiro que eu era negro foram as outras pessoas e isso é muito curioso porque geralmente acontece também com a sexualidade. Ao contrário de outras pessoas que eu convivo que são negras, essa questão da etnia, da cor da pele nunca foi um problema pra mim, porque em casa nunca foi um problema também. Não existe o peso de ser negro em casa como existe o peso de ser negro na rua ou numa loja, em que o segurança acha que a qualquer momento a gente vai roubar uma coisa.

Obviamente, quando eu for me lembrar, eu vou ter perpassado por uma série de situações as quais a questão da pele era muito latente e evidente, e eu não percebia. Mas, efetivamente falando, quando eu me olhei no espelho e me reconheci como negro foi há menos de 1 ano, quando eu e meus amigos jornalistas e publicitários nos juntamos para criar o Ceará Criolo. Foi a partir dali que eu me construí como sujeito negro, morador de periferia e homossexual. Nós sentamos e pensamos no coletivo, não queríamos que ele fosse mais um portal que dissemina estereótipos e coisas negativas da população negra, o que a mídia tradicional faz. Então a gente nasceu com essa proposta muito clara de questionar o que tá sendo colocado e propor uma outra coisa diferente do que tá lá. Por isso buscamos não fazer nada somente a partir de nossa perspectiva; ouvimos diferentes visões sobre uma mesma coisa e eu acho que essa multiplicidade de olhares nos permite ter mais chance de enxergar o problema.

Ainda não veio o reconhecimento de eu ser um referencial como homem negro que ocupa esses espaços e tem essa voz. E eu acho que nem vai vir, porque o mercado não enxerga esse tipo de característica e não enxerga desde o princípio. Quando você aprendia a escrever jornalisticamente uma matéria, o professor não condicionava “olha, você tem que se atentar às minorias, têm que contemplar o máximo de diversidade no seu texto”. Isso não era discutido na minha época de estudante, e quando eu fui pro mercado eu percebi que na prática isso era muito menos discutido e ainda não existe uma preocupação efetiva. Quando eu digo efetiva, eu digo no sentido sistematizado “vamos pensar essa pauta, vamos pensar o que, vamos ouvir quem”.

“Você não humaniza uma matéria colocando uma pessoa qualquer, [depende de] que tipo de pessoa se coloca pra falar”

“Bruno de Castro é jornalista e um dos criadores do portal Ceará Criolo | Imagem: Equipe Mídium/ Cindy Damasceno”

Por esses motivos, eu digo que muito provavelmente esse reconhecimento ainda não veio. Porque, embora eu saiba que eu estou numa posição extremamente privilegiada dentro do espectro de pessoas negras por ter tido uma educação básica muito boa, o meu pai tinha e ainda tem na cabeça dele a ideia de que a educação pode salvar o mundo e eu sou muito grato a ele. Mas eu sei que a realidade não é assim, e tenho a consciência de que eu tô a quilômetros de distância de dizer que eu tenho algum reconhecimento, ainda existe uma resistência muito grande à população negra, aos profissionais negros: as pessoas desacreditam.

É muito claro e evidente. Quando você recebe uma pauta e não consegue desenvolver, você é taxado de incompetente. Mas se der essa mesma pauta para um sujeito branco e ele não conseguir desenvolver, é porque o governo do estado não deu a informação certa. Estou dando um exemplo apenas, mas isso acontece, e acontece porque a gente tem pouquíssimos profissionais negros nessa área. Na televisão, por exemplo, não tem nenhum apresentador negro. Por quê? E a gente não enxerga isso e não se questiona por que se tem no imaginário popular que o lugar de negro é na periferia e não nos holofotes.

“O que eu tô querendo dizer é que a gente tá a léguas de distância do ideal que era ter uma redação equiparada de homem e mulheres, de héteros, gays, bissexuais e ter uma diversidade de pessoas e consequentemente uma diversidade de pautas”

Se você tiver sempre o mesmo tipo de pessoas, o produto final vai ser sempre o mesmo. Por que só têm notícias sobre gays no dia do orgulho LGBTQI+? Por que vai ter um caderno especial sobre questões raciais só no dia da consciência negra? E no resto do ano, num tem preto não? Esse tipo de coisa faz pensar que só existe negro, gay, lésbica, transexual nesses dias, mas e no resto do ano, não tem? A população negra não é somente os massacres que, em geral, as empresas de comunicação retratam. E isso só reforça o estereótipo cruel de que o negro não tem outra serventia. Um preto preso com trinta quilos de drogas é um bandido, um branco preso com trinta quilos de droga é um indivíduo com problemas familiares. E isso é muito grave.

Quando a gente resolveu criar o Ceará Criolo, eu passei a condicionar minha visão de comunicador, passei a me questionar sobre essas questões. Por exemplo, lá na prefeitura de Caucaia, onde eu trabalho, eu peguei a agenda e fui olhar cada órgão e não encontrei a Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial. Numa cidade que comporta um terço da população indígena do estado e 11 comunidades quilombolas.

Eu me percebo com uma série de preconceitos sobre mim, sobre meu povo. Então, se eu — que sofro na pele, literalmente, o racismo — tenho atitudes racistas, quem dirá uma pessoa branca cheia de privilégios nascida no Cocó, que nunca precisou andar de ônibus. Essa pessoa não tem nem noção do que é preconceito e eu tenho, e ainda assim eu tenho umas posturas preconceituosas do ponto de vista étnico e tento desconstruí-las.

“Defender e representar essa causa não é um favor, é uma obrigação como comunicador e cidadão”

Quando você me garante uma vaga no mercado de trabalho, você não está me fazendo um favor, você está reconhecendo o meu trabalho. Quando você paga o mesmo salário que os outros, isso não é uma esmola, é um direito meu. E me respeite por isso. Eu credito nessa resistência, e nesse preconceito pela falta de conhecimento das pessoas. Aliás, eu prefiro achar que é por isso e partir do pressuposto utópico da comunicação, em que eu apresentando a realidade elas vão mudar, do que achar que eu tô lidando com uma realidade que já está perdida. Até porque se a gente achar que já tá tudo perdido eu vou fazer o que, então? Eu acredito no poder da educação, assim como meu pai, que ela é a única a ser capaz de mudar o status quo da sociedade”.

Em um país onde mais da metade da população é negra, apenas 5% dos jornalistas se reconhecem como tal. Permanecer nesse espaço é símbolo de resistência e, sobretudo, subversão de um sistema excludente. Sâmia Martins conta um pouco de sua experiência como comunicadora negra — e sobre a importância de se afirmar como tal.

Enquanto negam espaço, nós ampliamos caminhos. Enquanto uns seguem a maré do silêncio, caminhamos contra o vento e falamos. Nos comprometemos em quebrar quaisquer padrões que tentem nos impor. Enquanto uns são fantoches, nós não aceitamos o controle. Enquanto o retrocesso ameaça, a Comunicação evolui. Nos movimentamos. Subvertemos.

Na primeira matéria do Especial Subversão demos espaço às vozes e às vivências de jornalistas brasileiros que, por meio de seus corpos e trabalhos, fogem das referências da comunicação no Brasil.

Acompanhe nossas próximas matérias.

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