VIVER #1

A voz por trás da pauta — parte 1

A Comunicação é construída por várias vozes, mas quais delas são interrompidas quando há um padrão na área da comunicação?

Equipe Mídium
Mídium - Comunicação em Movimento

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O Especial Subversão está pautado em três verbos. O Viver é um deles. A voz silenciada se torna ativa pelo ato de existir e conquista espaços para ser ouvida. Hoje, somos e estamos depois de muitos que lutaram. Existimos juntos com aqueles que querem nos eliminar. Mas só por VIVER já somos subversão.

Do desejo de informar e ser informado, nasce o Jornalismo. Com a invenção da imprensa por Gutemberg e o enriquecimento cultural e intelectual dos Movimentos Renascentista e Iluminista, a atividade foi impulsionada e popularizada.

No Brasil, o jornalismo só foi introduzido com a vinda da Família Real portuguesa em 1808. O primeiro jornal impresso no país, a Gazeta do Rio de Janeiro, foi publicado pela Imprensa Régia e era limitado à aristocracia portuguesa e seus descendentes nascidos no Brasil.

O início do século XX trouxe inovações técnicas e um maior público para os periódicos. Teve início a construção dos grandes veículos e conglomerados de comunicação, mais uma vez nas mãos da elite econômica e intelectual. Em geral, homens brancos dominavam a imprensa, determinavam o conteúdo que circularia na sociedade e, por consequência, o que entraria para o debate. Ironicamente, montavam também as edições produzidas especialmente para o público feminino.

No Brasil, o jornalismo surgiu restrito aos europeus e seus descendentes. Com o tempo, a produção e a distribuição dos produtos jornalísticos tornaram-se mais acessíveis, mas ainda se restringiam aos brasileiros de classes abastadas. Os criadores e consumidores de conteúdo compreenderam a série de privilégios que a informação carrega. O jornalismo passou a ser mercadoria, status e ferramenta de poder. A modernização técnica e social expandiu progressivamente o acesso dos meios material e intelectual, mas o perfil por trás da pauta oscila entre permanências e rupturas.

O perfil analisado de profissionais já difere do padrão que predominou durante séculos nos ambientes de trabalho. Entretanto, quanto à diversidade étnica, há visivelmente uma carência, pois ainda há majoritariamente indivíduos brancos nas redações.

A falta de pluralidade nesses locais é ainda mais sensível em questões de identidade de gênero, e faltam dados que contemplem essas ausências. É desse mercado de trabalho que Monstra quis escapar. Ex atuante em comunicação e artista por natureza e escolha, Monstra compartilhou sua vivência dialogando sobre a representatividade e propondo a ressignificação da comunicação.

“Para mim sempre foi muito difícil vislumbrar um caminho dentro do mercado de trabalho do jornalismo. Hoje em dia, acho que é um pouco mais possível, mas não acho que seja muito fácil ainda. E eu escolhi desistir desses espaços na área da comunicação, investir em mim, e investir em outras possibilidades.

Eu estava no começo dos meus processos de descoberta de identidade de gênero, então minhas relações com as pessoas não eram tranquilas, e era um ambiente que me consumia muito. Para mim não fazia sentido estar ali. E quando vi a oportunidade de ir para um outro ambiente, que era o ambiente do teatro, eu fui.Eu fui investir onde eu senti que a minha potência ia ser melhor utilizada. E aí eu mergulhei de vez no teatro, e não me arrependo nenhum pouco.

Eu entrei no curso de Comunicação da UFC antes das cotas, e era péssimo. As pessoas que estavam no curso eram outras, era um ambiente muito masculino e muito tóxico. Esse foi o ambiente que eu entrei. E foi um processo, e eu sinto que eu tive minha importância também. No sentido de tentar empurrar algumas barreiras sabe. Do que era possível fazer aqui dentro. Mas teve um momento que não me coube mais, eu acho. Chegaram outras barreiras que eu não tive mais força pra empurrar sozinha.

E também me sentia muito sozinha aqui dentro. Eu acho que hoje em dia o perfil de alunos tem mudado muito e acho que isso tem sido incrível. Porque têm cada vez mais pessoas negras, LGBTQI+, corpos completamente diferentes dos que costumavam ocupar esse espaço há dez anos atrás.

E eu acho que isso faz toda a diferença em relação a como a dinâmica em sala de aula e na coordenação se estabelecem, em como as pessoas se organizam para pensar a grade curricular. Eu acho que, com tudo isso, existe uma pressão maior do corpo de alunos para que alguns eventos aconteçam, para que algumas coisas sejam pautadas. Para que a gente consiga fazer eventos e chamar outras pessoas, que não são os mesmos homens brancos que vem pra cá pra falar sobre jornalismo. Porque eles são homens, eles são brancos, eles trabalham na imprensa há 30 anos. Era só esse tipo de gente que era chamado para falar em evento para falar sobre jornalismo aqui, entende?

“O que eu sou é um processo de investigação. Estou me investigando todos os dias pra tentar descobrir o que eu estou sendo naquele momento, e sempre me permitir que isso mude” — Monstra | Imagem: Equipe Mídium/ Pedro Victor Lacerda

Até quando a gente vai ficar escutando as mesmas pessoas falando das mesmas experiências? A gente precisa ouvir outras pessoas, a gente precisa reconhecer que outras experiências são possíveis. E isso também acho que fala um pouco sobre representatividade. E acho que é um papel fundamental no estudante de comunicação é buscar novos olhares, novas perspectivas e novas vozes. Cadê o pensamento crítico implicado naquele processo do fazer comunicativo? Cadê a sede de buscar outros discursos, de potencializar outros discursos?

“E principalmente em tempos como a gente vive hoje, nossa, esse ano especificamente, as estruturas precisam ser balançadas. As outras vozes elas precisam ser impulsionadas”

Hoje em dia eu acho que a gente tem ganhado muito, pelo que eu tenho observado dos eventos, em relação a isso. Há outras pessoas chegando e mostrando outras realidades possíveis pras pessoas que tão aqui.

A minha experiência é de um profundo engajamento tanto no mercado de trabalho, quanto nos projetos de extensão da universidade. E esse ano foi a primeira vez que me chamaram pra fazer uma fala, dentro de um ambiente universitário, sobre o meu trabalho. A primeira vez. Eu trabalho enquanto artista há uns 4 ou 5 anos. Eu trabalho enquanto comunicadora há uns 8 ou 9 anos. Esse ano foi a primeira vez que me chamaram para falar sobre o meu trabalho.

É sobre como a gente volta a ocupar esses espaços. Isso reflete muito nas minhas escolhas, reflete muito em eu não estar trabalhando atualmente, formalmente com comunicação.

“E o que é trabalhar com comunicação, o que é a comunicação né?”

A minha última experiência com comunicação efetivamente foi minha melhor experiência, de longe. Passei um ano e meio trabalhando como assessora de comunicação de um parlamentar lá na câmara municipal. Acompanhei o mandato e era muito interessante para mim, porque tinham pautas que eu acreditava e me envolvia muito.. Era um trabalho muito mais real, muito mais palpável, muito menos produto, era a comunicação com o objetivo de melhoria social. E eu via um sentido no trabalho que eu tava fazendo, e fui muito feliz na época que trabalhei lá, muito feliz.

Depois que eu saí desse trabalho passei um tempo fora. Toda vez que ia fazer uma entrevista de emprego, sempre pensava que ia ter que ir com uma calça jeans e com uma blusa mais fechada, e não ir com tanta maquiagem. E eu começava a me sentir muito mal e já chegava péssima nas entrevistas de emprego. E mesmo assim não chegava ao ponto de me adaptar. Eu nem me adaptava ao que eles queriam de mim nem conseguia me sentir bem naquela situação, porque eu tava tentando me adaptar.

“Porque sei que para estar lá, teria que abdicar de uma série de coisas que pra mim hoje são essenciais para existir como existo. Em relação a como falo, como me porto, como me visto, como faço minha maquiagem, entende? Então sei que esses espaços não me abarcam. E eles não abarcam uma série de corpos”

Acho que, aos poucos, algumas outras pessoas e alguns outros corpos estão conseguindo entrar nesses espaços, empurrar algumas coisas. Mas não sei até que ponto é possível a gente ficar empurrando barreiras.

Acredito mais na criação de novos espaços de produção de comunicação, do que necessariamente na reforma dos que a gente já existem. Porque acho que, querendo ou não, foram espaços criados para serem espaços de completa normatividade. Então eu acredito muito mais na criação. E acho que a internet entra como ponto chave, para uma possibilidade de outras formas de pensar e fazer comunicação. E eu acho que isso tem acontecido incrivelmente bem, tem casos de muito sucesso.

Cada pessoinha tem a sua função no mundo, eu entendi que a minha função no mundo não é reformar esses espaços, é revolucionar eles. Mas eu não coloco essa reforma num plano de inferioridade, porque eu acho que ela é completamente necessária. Até que a gente consiga revolucionar esses espaços, eles precisam pelo menos serem reformados. Porque talvez a revolução não aconteça hoje ou amanhã, ou na próxima semana ou ainda esse ano. Talvez ela aconteça daqui a um bom tempo, e até lá, a gente precisa tá vivendo. E a gente não pode viver pensando só no amanhã, a gente tem que pensar também no hoje, no agora”.

“Não estamos aqui para manter essas estruturas tão opressoras, estamos aqui para reformar e revolucionar”

As dificuldades de corpos dissidentes dentro do sistema vão além de números e estatísticas. Há histórias e pessoas que subvertem em suas vivências apenas em ser. Bemfica de Oliva compartilha um pouco de suas experiências como pessoa comunicadora e trans, e a importância de reconhecer sua identidade.

A falta de representatividade atinge diferentes grupos e minorias, e, por consequência, pode gerar ou dar espaço a diferentes preconceitos que, muitas vezes, se manifestam de modo velado, sucinto. Na próxima reportagem da matéria “A voz por trás da pauta” teremos a experiência de Sâmia Martins e Bruno de Castro como comunicadores negros e suas representações na área da comunicação.

Acompanhe nossas próximas matérias.

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Um movimento de experiências em comunicação, integrado por estudantes de Jornalismo da UFC. Assine nossa newsletter: http://tinyletter.com/midium