Ciência desbotada

Os recorrentes cortes de investimento na ciência precarizam a pesquisa no Ceará, afetando a realidade de estudantes e professores

Equipe Mídium
Mídium - Comunicação em Movimento
8 min readMay 19, 2018

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Por Beatriz Rabelo, Clarice Nascimento e Marcela Tosi

O Brasil é o 13° país do mundo em número de publicações acadêmicas, apresentando resultados de pesquisas que crescem anualmente, assim aponta o relatório Pesquisa no Brasil. Produzido pela equipe de analistas de dados da Clarivate Analytics para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), o relatório evidencia que artigos brasileiros estão atualmente entre os mais citados no mundo.

Outra constatação revelada pelo documento é que dentre as 20 universidades que mais produzem conhecimento científico relevante no país todas são públicas.

Única instituição cearense neste ranking de desempenho, a Universidade Federal do Ceará (UFC) ocupa a 12ª posição quando é considerado o número de citações dos seus trabalhos científicos por outros pesquisadores. No cenário de pesquisa científica, a UFC reafirma sua importância em caráter nacional. Em 1993, a “Fotosensores Tecnologia” foi desenvolvida dentro do Parque de Desenvolvimento Tecnológico da universidade e logo foi exportada para outros estados brasileiros.

Além dessa descoberta, a Universidade também é conhecida pela criação do colete para motocicletas, do biodiesel e, mais recentemente, do uso da pele de tilápia na medicina para o tratamento de queimaduras.

Entretanto, os recentes cortes federais têm limitado o intercâmbio de pesquisadores, que contribuem tanto para a troca de conhecimento científico quanto para a realização de experiências em laboratórios mais equipados. Além disso, segundo pesquisadores, os cortes reduzem a compra e a manutenção de equipamentos pelos Centros de Tecnologia, Saúde e Humanidades da Universidade, fator que pode resultar em pesquisas menos precisas e aprofundadas.

Cortes nos investimentos

Os investimentos em pesquisa no Brasil são feitos majoritariamente pelo Governo Federal via Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). O Ministério é o responsável por dezenas de unidades de pesquisa em todo o país, laboratórios em universidades e bolsas de estudo cedidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Dados recentes apresentados pelo presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), Marcos Cintra, revelam que para cada unidade de moeda investida em Ciência e Tecnologia cerca de 3 a 4 unidades são geradas na forma de desenvolvimento econômico e social em qualquer país. Ainda assim, estão sendo feitos cortes significativos nos investimentos federais para a área.

Equipe Mídium/ Marcela Tosi

A gestão Michel Temer assumiu o país com a promessa de ajustar o gasto público e colocar sob controle o déficit crescente no orçamento federal. Com isso, a trajetória de queda das verbas federais para pesquisa, que se acentua desde 2015, atingiu níveis ainda mais baixos. A Lei Orçamentária Anual de 2017 previa recursos da ordem de R$ 5 bilhões, uma queda brusca em relação a 2015, quando respondiam por R$ 8,4 bilhões. Em março de 2017, o governo contingenciou cerca de 44% do orçamento ligado à ciência, diminuindo o investimento de R$ 5 bilhões para R$ 2,8 bilhões.

Os cortes foram notícia no mundo inteiro. Ganhadores do Nobel enviaram um documento por e-mail ao gabinete da Presidência em setembro de 2017, afirmando que a ciência estava ameaçada diante dos cortes. Um artigo publicado na revista científica britânica “Nature” indicava que a medida colocava em risco o futuro do país na área, ameaçando inclusive investimentos feitos pelo governo anteriormente, como é o caso do acelerador de partículas síncrotron Sirius, em construção em Campinas, no interior paulista. Os cientistas brasileiros, liderados pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), reagiram promovendo em todo país Marchas pela Ciência.

Pesquisadores também brigam para elevar o patamar da ciência e da tecnologia, para que ela fortaleça o desenvolvimento do país. Imagem: Bruno Santos/ Folhapress

Em 2018, o orçamento nacional de Ciência e Tecnologia começou sendo 25% menor do que em 2017 e, em fevereiro, foi anunciada a possibilidade de encolher mais 10%. A verba para investimento em bolsas e pesquisas será reduzida de R$ 4,5 bilhões para R$ 4 bilhões, aproximadamente, de acordo com cálculos do MCTIC.

Os impactos dos cortes no Ceará

Andrey Chaves, doutor e professor de física da UFC, vê o surgimento de uma nova pesquisa como o resultado de um conhecimento herdado de cientistas de distintas épocas, que dedicaram anos de suas vidas para registrar em livros e artigos científicos as descobertas que inspiraram jovens de gerações futuras. É da ramificação de fatos já consolidados, assim como do diálogo entre pesquisadores de diversas partes do mundo, que se pode descobrir o tema de uma nova pesquisa.

Andrey realiza estudos em seu escritório no Bloco da Física da Universidade Federal do Ceará | Foto: Equipe Mídium/Beatriz Rabelo

No entanto, a redução das verbas dificultou auxílios que antes eram facilmente concedidos para os professores da universidade. A realização de congressos internacionais, assim como viagens para o exterior, tornou-se bastante limitada, dificultando a elaboração da pesquisa no meio acadêmico. Andrey percebe a troca constante de informações como fator de extrema necessidade durante o processo.

“Não acredito que se consiga fazer ciência isolado. Os cortes vão gerar problemas para o Brasil em relação ao atraso que teremos quando as pessoas já tiverem descoberto coisas fora e ainda estivermos engatinhando naquele tema. Não poderá haver a troca de conhecimento e pesquisas. Então, talvez o resto do mundo se desenvolva em teorias mais novas e, quando formos tentar, já estaremos atrasados.”

Para Geanne Matos de Andrade, farmacêutica e coordenadora da área de Pesquisa e Pós-Graduação da UFC, é preciso ter a compreensão de que anos são dedicados para a criação de uma pesquisa. Isso, em sua concepção, ainda não é reconhecido por grande parte da sociedade. “Se você faz uma pesquisa básica começando agora, ela terá resultado daqui há vinte anos. Poucas coisas têm esse imediatismo, mas às vezes as pessoas não veem isso.”, relata Geanne.

Geanne Matos, coordenadora de pesquisa e pós-graduação da Universidade Federal do Ceará, alerta para os impactos negativos que os cortes de investimentos federais podem trazer | Foto: Equipe Mídium/Beatriz Rabelo

Porém, a perspectiva atual da ciência na UFC é bastante preocupante, principalmente, quando inserida no quadro de interiorização de unidades para Quixadá e Sobral. Geanne declara que é pequeno o número de 200 bolsas de iniciação científica para uma universidade com o porte da UFC, uma vez que há universidades menores, como a Universidade Federal do Pará, que disponibiliza uma média de 600 bolsas. “Se não fosse as agências de fomento, a CNPq, CAPES e FUNCAP, contribuindo com mais da metade das bolsas, seria muito pouco”, afirma.

Além disso, a coordenadora conta casos de professores de mestrado e doutorado que compram instrumentos e reagentes químicos com o próprio dinheiro, que diminuem o número de estudantes para conseguir manter o funcionamento de uma pesquisa de qualidade e que se inscrevem em editais para conseguir máquinas novas, uma vez que a universidade não possui verba para suprir a demanda de todos os laboratórios.

Ao fazer uma retrospectiva, Geanne percebe a Universidade com estruturas melhores do que quando ingressou como estudante de mestrado. A UFC cresceu nos últimos quinze anos, chegando a estar, em 2016, entre as 10 melhores universidades do Brasil, e se tornou referência principalmente no Norte e Nordeste. Apesar dessa melhora, a doutora acredita que, em se tratando da perspectiva da ciência no Brasil, a qualidade vai cair muito.

“Acho que se não tivermos um retrocesso dos 20 anos que avançamos, iremos parar. Vamos sofrer muito, agora já tem laboratórios praticamente parados.”

Na visão dos estudantes, a UFC tem um bom amparo estrutural e material em alguns laboratórios, como o de Física. Entretanto, a complicação para iniciar uma pesquisa se dá, principalmente, em relação às bolsas de mestrado e doutorado oferecidas pela universidade, como afirma a estudante de doutorado em Ciências Farmacêuticas, Laura Vidal.

Para ela, a oferta de bolsas é consideravelmente baixa em relação à quantidade de estudantes que buscam fazer uma pós-graduação e, apesar de existir uma realocação de bolsas entre alunos que entram e se formam no curso, ainda não chega a contemplar todos os que procuram. Isso pode prejudicar o andamento de pesquisas, em especial aquelas que exigem mais tempo e atenção por parte do estudante.

“Sem bolsa, não tem como uma pessoa ficar no laboratório manhã, tarde e noite sem ter nenhuma fonte de dinheiro para necessidades básicas, como alimentação e transporte. É preocupante porque para ter pesquisa, é preciso ter incentivo.”

Wellington Castro exemplifica a questão do corte de investimento sob a perspectiva da estrutura funcional do laboratório. Ele compõe, juntamente com Laura, um grupo de doutorandos orientados pelo professor de Física Alejandro Loyola. Segundo Wellington, existe um instrumento da parte experimental da pesquisa, o espectrômetro T64000, que quebrou e continua sem conserto há algum tempo. A saída, neste caso, foi utilizar um equipamento alternativo, o LabRAM. Os dois são equipamentos que fazem trabalhos de medição semelhantes, porém, o T64000 é mais preciso com os resultados.

A dificuldade, então, não é só em termos de compra de equipamentos, mas também de manutenção destes. No caso do T64000, uma peça encontra-se danificada e, por conta do orçamento reduzido, a substituição é cada vez mais adiada. Em termos gerais, Yara Santiago, farmacêutica que também participa do grupo, analisa que existe um erro nesta história:

“A UFC financia a compra do equipamento, mas não ajuda na manutenção deste. A calibração do aparelho é tão importante quanto tê-lo, pois garante que este funcione da maneira para qual ele foi arquitetado.”

A perspectiva dos três estudantes em relação à pesquisa no Brasil gira em torno do pesquisador não ser reconhecido como um profissional. Assim, para eles, como o Brasil não tem perfil de um país com forte investimento em pesquisas, a vida do estudante se complica sem ter uma bolsa para se manter e, com essa redução de investimentos, as dificuldades do trabalho do pesquisador aumentam.

Ainda assim, os estudantes buscam valorizar a importância da pesquisa, em termos de modernização e reconstrução do país. Yara comenta que a reestruturação do Japão na época da Segunda Guerra Mundial, após os bombardeamentos em Hiroshima e Nagasaki, só foi possível graças à ciência e à tecnologia investidas pelo governo. Segundo ela, “o que impulsiona um país é a ciência, a pesquisa e o desenvolvimento. Esse caso mostra como é possível perceber que a ciência e a tecnologia podem elevar um país. Assim, se você cortar os investimentos de algo tão precioso, fica bem mais difícil.”

A pesquisa resiste

Apesar do cenário de cortes, existem iniciativas que procuram evidenciar as descobertas científicas realizadas nos laboratórios das universidades públicas e a sua importância para a sociedade. Em nível local, o site Agência UFC, subdivide os temas em quatro: saúde, sociedade e cultura, ciências e tecnologia. Cada uma dessas editorias se propõe a trazer pesquisas e descobertas que contribuem para o desenvolvimento dessas áreas no país

Além desse, o UFC Informa, perfil de Instagram institucional da Universidade Federal do Ceará, é outro espaço alimentado constantemente com notícias de novas pesquisas, promoção de eventos e destaques profissionais de professores e estudantes. O informativo promove, também, as hashtags #MovimentoUFC e #AUniversidadeNãoPodeParar, criadas com o objetivo de defender a universidade pública diante desse momento desafiador de cortes e contingenciamentos no orçamento.

Recentemente, a Rádio Universitária anunciou a estreia de um novo programa de divulgação científica, o SBPC no Ar: a Ciência nas Ondas do Rádio, que irá ao ar a partir de segunda-feira, 21 de maio.

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