A dança não é apenas um elemento que reflete as ideias sociais, mas também pode ser um elemento na desconstrução e na reconstrução | Imagem: Raquel Pimentel

Corpos questionadores em movimento

As perspectivas do gênero sob o olhar da dança

Equipe Mídium
Mídium - Comunicação em Movimento
6 min readAug 28, 2018

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A dança está presente na Terra há tanto tempo quanto a vida humana, e surgiu com a função de fazer o ser humano se comunicar. Por ser social, a humanidade sempre sentiu a necessidade de se comunicar com seus semelhantes ou com suas divindades. Já que não dominava a linguagem oral para se comunicar, o ser humano utilizava seu próprio corpo como mecanismo de expressão e manifestação, podendo transmitir notícias, ideias e sentimentos através desses movimentos.

O corpo é um tema bastante discutido no mundo contemporâneo, se estabelecendo como objeto de estudo frequente no campo das ciências humanas e sociais. Uma das áreas de pesquisa que abrange formas de interação entre corpo, sociedade e história é a dança. Ela é considerada um campo da arte, por ser capaz de expressar signos, manifestar vivências e tratar de sentimentos e emoções. A dança é ainda um esporte quando a atividade é de alta intensidade, exercida de forma regular e repetida.

Ainda no campo das subjetividades da dança, sabe o que mais é ligado à ideia de sentimentos e emoções? A feminilidade. Desde cedo, meninas são condicionadas a falar e agir de forma mais delicada, mais afetuosa, mais “feminina”. Assim, a estética corporal proporcionada pela dança parece mais própria de uma suposta essência natural da mulher e imprópria para a afirmação de uma masculinidade viril relativa aos homens. Cada vez mais, corpos se movimentam e se afirmam para mostrar que não é bem assim.

Dança tem gênero?

“Acordo todo dia pensando em dançar. Eu passei tanto tempo sem poder fazer isso que agora aproveito da melhor forma possível”, afirma Moacir | Imagem: Reprodução/Acervo pessoal do entrevistado

As imposições de gênero trazem dificuldades e obstáculos sociais enfrentados pelo homem que queira dançar, pois esta problemática vai além do fato da feminilidade, ela também adentra o âmbito da sexualidade. O homem que dança é visto preconceituosamente como aquele que nega sua virilidade e que, portanto, está negando também a heterossexualidade. Moacir Nepomuceno, estudante de Fisioterapia e bailarino, lembra do quanto foi difícil para ele começar a dançar, já que a prática havia sido proibida por seu pai, com o argumento conservador de que “apenas homens gays dançavam”. Entretanto, Moacir afirma que esse desestímulo o motivou mais a continuar melhorando e buscando seu sonho de dançar, além de procurar debater o assunto dentro e fora da universidade.

“As pessoas têm que se desvincular dessa ideia de dança ser apenas algo feminino. Ainda existe um medo, um machismo dentro deles (dos homens) de mostrar feminilidade. Eles esquecem que em cima do palco eles se tornam um ser que é personagem e não mais a pessoa que realmente é”

Por sua natureza, a dança e o mundo da arte oferecem um espaço saudável para que as pessoas se libertem e expressem sua sensibilidade estética e emocional, e independente de seu gênero, possam tratar de suas angústias e vontades. Nesse contexto, o primeiro contato que crianças e adolescentes têm com a dança é no ambiente escolar, como em apresentações culturais e nas aulas de educação física. Porém, é justamente nesse ambiente que surgem as primeiras representações dos papéis de gênero.

Acerca disso, o professor do curso de Educação Física e coordenador do projeto Oré Anacã, Marcos Campos, comenta que existe uma estruturação que diz que a dança é voltada para as meninas e que deve ser trabalhada separadamente da educação física. Se isso existe, não é só por conta do sistema escolar, mas porque “a escola reflete a sociedade”. Segundo ele, as noções de o que é permitido a cada gênero são projetadas aos mais novos pela própria família e são rechaçadas no ambiente escolar, pelos colegas, diretores e pelos próprios educadores físicos.

O movimento acadêmico da dança

De acordo com as pesquisas de Marcos para o mestrado, entre 1952 e 1977, na Escola de Dança da UFMG, existiam dois currículos, um feminino e um masculino, nos quais a dança só era posta para as mulheres. “Então se os professores homens não aprendiam dança, obviamente eles não levavam isso pras suas aulas em turmas masculinas”, comenta o professor.

O professor aponta que a dança é um apenas um ponto da discussão de gênero | Imagem: Reprodução/Acervo pessoal do entrevistado

Todavia, Marcos acredita que compreender esses processos culturais e históricos sob a concepção da discussão de gênero, não só o masculino e o feminino, é ter uma perspectiva de mudanças, de uma desconstrução ou reconstrução do que está posto. A exemplo disso, a própria Universidade pode ser um espaço para essa desconstrução, como a evolução histórica dos projetos de dança no curso de Educação Física da Universidade Federal do Ceará, com cerca de sete projetos com presença de homens e mulheres.

“O que eu faço hoje é uma construção a partir da minha vivência pessoal, de alguém que não teve direito a dança na sua formação inicial e que, ao ter contato com isso, foi entender o porque que não teve”

Dentro desse ambiente universitário está Jéssica Santos. A estudante de Dança comenta que se interessou por esta arte quando acompanhava uma amiga nos ensaios de uma companhia. O interesse foi crescendo dentro da escola, em virtude dos eventos culturais, até que ela escolheu trilhar esse caminho da Universidade.

Atuante no estilo Femme Style e coordenadora do projeto homônimo, Jéssica iniciou sua pesquisa acadêmica tomando como base a quantidade de homens que se interessam por esse tipo de dança que é, teoricamente, voltado para as mulheres. Para isso, ela está cada vez mais presente em grupos de estudos para discutir a respeito do que é o feminino estabelecido por esse estilo.

“Eu comecei pensar que estava faltando mulheres e queria fortalecer a mulher nessa dança, e agora estou me questionando em momento que passou a ser muito habitada por homens aqui no Brasil”

O Femme Style é conhecido por utilizar elementos e movimentos ligados à feminilidade | Imagem: Reprodução/Acervo pessoal da entrevistada

Nessa pesquisa, a estudante entrou nas questões de gênero quando se deparou com homens que praticam e dão aula de Femme Style, em especial Stiletto e Heels que utilizam saltos altos. Segundo ela, muitos deles se questionam se, por serem homens, estariam dando aulas de Femme Style ou não. Além disso, nas competições de dança dessa modalidade, Jéssica comenta que existe um preconceito a respeito de um homem estar dançando com saltos altos, em virtude da concepção inicial do estilo.

“Eu tenho tentado discutir a respeito disso, o que é exatamente essa dança Femme Style, se ela é apenas para mulher. E se ela é pra mulher, por que tem tanto homem dançando?”

Além disso, Jéssica comenta que, quando iniciou o projeto na Universidade Federal do Ceará, os homens participantes conversavam com ela sobre como as aulas foram um ponto de partida para ajudá-los a se aceitar melhor, principalmente no que diz respeito à sexualidade. É por meio desse projetos e dos alunos participantes que a estudante pesquisa mais a fundo sobre as questões de gênero na dança.

Consciência e corpo ligados

Dessa forma, compreender o que é o gênero, como se constrói e como impacta na vida social leva-nos a uma discussão maior: por qual finalidade construímos categorias? Por que produzimos um modelo ideal de pessoa? Tudo isso gera uma ânsia, em cada um de nós, em se encaixar num padrão.

É necessário, a partir dessa compreensão, entender que nem todos conseguirão — tampouco precisam — se categorizar como masculino ou feminino. Existe, na sociedade, uma diversidade de masculinos e de femininos que não devem ser descartados por referenciais produzidos no passado.

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