Crescer pelos espaços e vivências

O amadurecimento na universidade também constrói-se em espaços que vão além das salas de aula

Beatriz Rabelo
Mídium - Comunicação em Movimento
6 min readMay 31, 2018

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O Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará — o CH — localiza-se no coração do bairro Benfica, com vidas que constroem cotidianamente um espaço cada vez mais especial e singular. Para aqueles que percorrem os distintos caminhos do CH, é sabido que seus muros amarelos guardam histórias que perpassam os anos. As construções de tijolo e cal presenciaram lutas estudantis, ocupações e resistências, coloriram-se com as tintas que pintam os corpos e as almas dos estudantes recém-aprovados e até hoje mantêm ocultos os segredos e as leituras trocadas aos sussurros, em um tempo em que o caminhar sem documento se fazia perigoso.

O CH é dividido em três áreas. Entre a esquina da Avenida da Universidade e a da Av. 13 de Maio, pode-se encontrar tanto o CH1, de um lado, quanto o CH2, do outro. O primeiro contém os cursos de graduação em Letras e Pedagogia, assim como as casas de cultura, a biblioteca setorial do CH, a diretoria e alguns programas de pós-graduação. O segundo abriga o curso de História, o de Psicologia, o de Biblioteconomia e o de Jornalismo, embora este pertença ao Instituto de Cultura e Arte (ICA), cuja sede fica no Campus do Pici. O CH3, que se encontra um quarteirão afastado dos outros núcleos, abarca as Ciências Sociais e alguns setores administrativos da Universidade.

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Nestas áreas, são construídos espaços de convivência para moradores do Benfica, doutores e, inclusive, estudantes secundaristas, com os cursos preparatórios para o vestibular. Nesses ambientes, elementos costumeiramente vistos como insignificantes constroem o imaginário do local nas mentes e nos corações dos frequentes transeuntes. É o cheiro forte dos cafés da Avenida da Universidade que preenchem a fome dos intervalos, as árvores que adquirem uma tonalidade amarelada a cada fim de tarde, as músicas tocadas de modo despretensioso e os burburinhos das conversas tranquilas. Seus auditórios enchem-se com sessões semanais de exibição de filmes, discussões, eventos e palestras, evidenciando que o espaço é ocupado em uma diversidade de formas.

Heranças de uma formação política

A universidade é, para muitos, espaço de crescimento e tempo de descoberta de um novo eu. Durante o final da década de 1970, o professor doutor Francisco José Pinheiro, 63 anos, então graduando de História pela UFC, contribuiu para a reconstrução do Diretório Central dos Estudantes da União Nacional dos Estudantes (UNE) e participou de grupos de leitura sobre o pensamento de esquerda. Para ele, esses espaços além da sala de aula foram muito importantes para sua formação enquanto pessoa, aluno e pesquisador.

Francisco Pinheiro, em seu escritório, afirma sobre como a participação no movimento estudantil contribuiu para sua formação | Foto: Equipe Mídium/Beatriz Rabelo

“Na nossa época, era proibido ler Paulo Freire, Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Lenin. E nós lemos todos esses autores em grupos de estudo”, conta. Francisco e seus colegas realizavam debates de leitura dos textos clássicos, rodas de discussões e seminários, que procuravam manter um tamanho reduzido a fim de evitar a prisão. Utilizaram, também, da universidade como um local de lazer por acreditarem na importância desses espaços para integração dos estudantes.

“Mas eu diria que o espaço mais importante para a minha formação, para além dos grupos de estudo, foram os debates do movimento estudantil”

Aprendizado na resistência

No final do ano de 2016, a Universidade Federal do Ceará fez-se morada dos estudantes que protestaram contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, tendo cerca de 26 espaços de cursos ocupados. A PEC 241, do Governo Temer, propôs uma reformulação nos gastos públicos por meio de corte e congelamento de investimentos, de modo que saúde e educação foram áreas diretamente afetadas com essa medida.

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Davi frequentemente pode ser encontrado no segundo andar da “Torrinha” do CHII, lugar onde ocorrem discussões sobre a situação estrutural e acadêmica do curso | Foto: Equipe Mídium/Beatriz Rabelo

Para Davi Lima, 20, que compôs a comissão de estrutura do movimento Ocupa Psicologia, em 2016, no Centro de Humanidades II, a situação com a PEC 241 foi o estopim para a mobilização. No entanto, diversas outras demandas previamente percebidas pelos estudantes também foram inseridas nessa luta, carregando uma pluralidade de causas e bandeiras. “Acho que o mais interessante disso é que foi um movimento muito espontâneo”, afirma ao explicar a ausência de liderança ao longo do processo de ocupação.

Foi principalmente após tomar a universidade como palco dessas lutas de resistência, com a ocupação e o fechamento da Avenida da Universidade, que “o curso tornou-se mais politizado” e consciente de diversas problemáticas sociais. Davi percebe que a ocupação não foi efetiva para a derrubada da Emenda Constitucional, mas, ao analisar a situação por uma perspectiva micropolítica, observa maior engajamento dos estudantes quanto à construção da universidade e de seus distintos espaços.

“Na ocupação, eu me engrandeci como pessoa, muito mais do que eu poderia aprender na vida.”

O estudante percebe a importância de estar em sala de aula, estudando as teorias e os aspectos mais técnicos, porque acredita que isso lhe dá ferramentas para acessar esses outros espaços com uma perspectiva mais crítica. Entretanto, para ele, “a prática mesmo se dá somente no campo”. É saindo do engessado modelo acadêmico que é possível adentrar na extensão e, por conseguinte, no aprendizado que as vivências trazem para a construção humana e profissional.

Ambiente que engrandece

Thaís Cardoso, 21 anos, entrou no curso de Letras com sua rotina já pré-determinada: iria para universidade, assistiria a suas aulas obrigatórias e voltaria para casa. Entretanto, os espaços do Centro de Humanidades foram pouco a pouco tornando-se ocupados para atividades que iam além da sala de aula. Agora, estuda pelas manhãs no CH1, em seguida espera por sua amiga no CH2, almoça pelo Benfica e, em alguns dias da semana, participa do grupo de extensão da professora e ativista feminista Lola Aronovich, sobre discussão de gênero.

Thaís percebe os espaços de extensão como de bastante importância para os estudantes, por ser um local em que aprende coisas que não são colocadas em sala de aula| Foto: Equipe Mídium/Beatriz Rabelo

“Os cursos de extensão são um conhecimento por fora que eu não tenho na sala de aula. Em sala de aula, nunca vamos ter um filme como tarefa de casa, para depois discutirmos o gênero dentro dele, entender como a mulher é vista”

A estudante também modificou sua maneira de posicionar-se frente às discussões políticas. Thaís não se interessa pelos debates de conjuntura política, costumeiramente levantados pelo Centro Acadêmico (CA) do curso de Letras, característica que mantém desde o período escolar. “Eu não sou muito ligada nessas coisas [política]. Eu sei o que está acontecendo, mas eu não costumo me posicionar. Sempre fui assim”, explica.

Durante seus primeiros semestres no curso, aproximou-se do CA a fim de compreender suas afinidades e modos de se estruturar, no entanto, optou por manter-se afastada, embora esteja aberta para ver os diferentes posicionamentos e optar por aquele com que mais concorda.

“Como eu já vi a luta de perto, eu consigo desenvolver melhor um posicionamento, mas mesmo assim eu não me manifesto. É uma discussão que me dá preguiça. Mas a universidade mudou a minha forma de me posicionar. Antes eu nem posicionava, não escutava nem um lado, nem o outro”

O Centro de Humanidades da UFC ainda se faz palco do amadurecimento político de diversos indivíduos que o frequentam. Seja por debates em sala de aula, rodas de conversas em bosques e pátios ou mesmo por exibição de vídeos em suas paredes, a Universidade ecoa diferentes discursos e vozes, que procuram fugir de conceitos lugar-comum, assim como trazer uma nova concepção sobre temas pré-concebidos, construindo um crescimento que se dá através da ocupação de seus muitos espaços.

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Beatriz Rabelo
Mídium - Comunicação em Movimento

“O terror sai das sombras, atua e volta à escuridão”. 19, estudante de jornalismo.