As vestimentas usadas nos rituais do Candomblé representam as origens da religião de matriz africana e dependendo da oferenda, também representam os orixás. Foto: Pedro Ivo Carvalho

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DES-ESTIGMATIZAR: Desconstruindo pré-conceitos

Utilizando a informação como sua maior ferramenta, projeto busca desmistificar ideias e julgamentos acerca de temas estigmatizados

Equipe Mídium
Mídium - Comunicação em Movimento
11 min readJan 22, 2019

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Por Cristina Soares, Guilherme Gomes e Júlia Duarte

No último dia 12, a exposição “Orixás” do fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger foi aberta ao público no Museu de Fotografia de Fortaleza. Contando um pouco mais sobre a cultura afro-brasileira através de artigos, livros e um total de 65 fotos, Verger apresenta ao público um pouco de sua história, além de toda a vivência, costumes e a religião candomblé praticada pelos povos Iorubás e seus descendentes. A exposição retrata histórias que vão desde a África Ocidental até a Bahia, onde o fotógrafo passou a maior parte de sua vida.

“Orixás” pode ser considerada uma excelente opção para aqueles que buscam conhecer um pouco mais sobre a cultura afro-brasileira e sobre o candomblé, que acaba por se enquadrar dentre as religiões consideradas estigmatizadas por grande parte da sociedade. Apesar da histórica e diversa miscigenação do povo brasileiro, deparar-se com costumes e crenças diferentes do cristianismo ainda é motivo para estranhamento e julgamentos.

O projeto Des-estigmatizar, criado pelos estudantes de jornalismo Cristina Soares, Guilherme Gomes e Júlia Duarte, entra em cena com o intuito de apresentar algumas religiões e doutrinas que existem e resistem mesmo com pré-julgamentos e pré-conceitos estagnados na mente da população brasileira desde muito tempo; seja pela mídia com suas representações cinematográficas e caricatas ou por interpretações errôneas que são difundidas como certas. São elas: o candomblé, o espiritismo e a wicca.

ESTIGMAS: Mais do que apenas cicatrizes

Tratando-se de estigma, a palavra em questão refere-se às cicatrizes causadas por ferimentos. Já em seu sentido figurado, estigma se configura como algo indigno, ruim, desonroso ou com má reputação. Acredita-se que a palavra ganhou esse significado ainda na Grécia Antiga, devido a prática de marcar com ferro quente os braços e ombros de criminosos ou escravos. Quando se via o estigma em suas peles, já era possível identificar: o indivíduo tinha uma má reputação ou cometeu algum crime.

Trazendo para o sentido sociológico, temos o estigma social, caracterizado por um indivíduo ou grupo que segue o oposto das normas culturais e tradicionais estabelecidas por uma sociedade. Portanto, tudo que fugir do que se considera um “padrão” é tido como um estigma. Até hoje negros, homossexuais, pacientes com transtorno psiquiátrico e membros de algumas doutrinas religiosas são tidos como tal. Eles carregam cicatrizes, mas que crime exatamente são acusados de cometer?

Por meio de entrevistas, fotos, comparações com produtos da mídia e vídeos, o Des-estigmatizar propõe combater os preconceitos da maneira mais justa e simples possível: com informação. As fake news também não podem permanecer no plano religioso.

CANDOMBLÉ

Em 2015, Kailane Campos, que na época tinha 11 anos, foi atingida com uma pedra na cabeça quando saía de um culto por usar as vestimentas da sua religião: o Candomblé. Na onda desumana que o país vive (dessa vez, abertamente desumana) e nos anos cheios de incertezas que temos pela frente, mais do que nunca, é importante estar disposto a conhecer o outro para evitar qualquer pré-conceito, repulsa e violência. Esse ciclo vicioso, que tem como base a ignorância, só tem a possibilidade de se findar com a educação no seu sentido mais amplo.

Os africanos tiveram suas raízes podadas do continente mãe e submetidos ao cativeiro da escravidão. No Brasil, essa situação perdurou durante quase 400 anos. Um medo comum entre as gerações de negros escravizados que nasceram em terras desconhecidas era o de serem enganados pela memória. Em meio ao convívio diário com a dor, pensar sobre a situação que foram colocados era um grito de saudade, mas acima de tudo, de resistência.

Ao passo que os padres jesuítas catequizavam a colônia e colocavam o catolicismo como religião oficial da província Brasil, os negros africanos escravizados foram proibidos de exercer livremente suas crenças — na verdade, o palavra liberdade e todos os seus sinônimos lhes foram usurpados. O caminho encontrado por eles para perpetuar as doutrinas de cada tribo foi a aproximação com os santos da Igreja Católica. Dessa prática, nasceu o Candomblé.

O Candomblé, como espaço para prática religiosa, cria forma no estado da Bahia em meados do século XVIII. É monoteísta, acredita na existência do ser supremo Olorum e em seus enviados, os Orixás. No Brasil, o Candomblé e a Umbanda são pejorativamente chamados de macumba, mas se diferem em diversos aspectos. O principal é que hoje boa parte dos candomblecistas são contra o sincretismo, usado como mecanismo para salvaguardar a memória com figuras do cristianismo, e desejam retornar às raízes africanas. Em contrapartida os umbandistas enxergam essa mistura com nuances mais positivas.

A presença de danças e ritmos oriundos dos instrumentos de percussão são elementos essenciais nos terreiros de Candomblé. É comum que as mulheres raspem os cabelos nos rituais de iniciatórios, também chamados de Feituras de Santo. Foto: Emílio Navarino

Os Orixás, a representação mais conhecida do senso comum sobre a religião, são muitas vezes confundidos ou relacionados com os demônios levantados por outras crenças de origem cristã. É o caso de Exu, a entidade que representa a comunicação, a paciência, a ordem e da disciplina. Historicamente, os orixás representam os nomes das famílias e das tribos, que hoje são inexistentes na África. São entidades que representam a força e a energia da natureza. Eles possuem um papel importantíssimo nos rituais religiosos por serem incorporados pelo praticantes mais experientes.

O transe é o ritual estigmatizado como macumba, feitiçaria ou magia negra, mas na verdade, em muitas outras regiões também há rituais similares. Éden Barbosa, adepto da religião há 14 anos, mestrando em Políticas Públicas e Sociedade e pesquisador sobre as Práticas Educativas Digitais no Candomblé, comenta que “O transe está presente em várias religiões, não é exclusivo de matriz africana. Até na Índia e na própria renovação carismática existem situações de transe que eles denominam como orar em línguas, estar em contato com o Espírito Santo.”

Os rituais são cheios de músicas com o uso de instrumentos de percussão, principalmente, tambores, cânticos, danças e oferendas aos Orixás. As cores das roupas usadas se diferenciam de acordo com os gostos de cada Orixá. Normalmente, essas práticas acontecem em rodas de terreiro e são dirigidas pelo pai (babalorixá) ou mãe de santo (iyalorixá). Geralmente, os adeptos do Candomblé levam 7 anos para concluir a iniciação dentro dos preceitos. O Kelê e o Resguardo, são práticas comuns para os iniciados ao Candomblé. O Kelê é um colar que representa a existência do orixá na pessoa e o Resguardo afeta na rotina e deve ser evitado fumar, ingerir bebida alcoólica e tomar banho de mar.

“Se for estudado [a formação das religiões] à luz da ciência, são similares. Todas são hierárquicas, o ato de iniciação, de se tornar padre. Os sacramentos são formas iniciatórias. Está tudo conectado, estamos todos juntos.” comenta Éden, comparando o Candomblé com o Catolicismo.

O adereço usado na cabeça possui um forte significado na representação dos orixás. É comum as entidades Iemanjá, Nanã, Oxalá, Oxumarê, Oxum, Obá e muitos outros. São diferenciados pelos detalhes e pela cor da roupa. Foto: Pedro Henriques

A verdade é que nada é tão individual como as nossas expressões de religiosidade (ou até a falta delas). A liberdade para poder acreditar no que se deseja acreditar, a liberdade nos sentidos mais puros da palavra, não pode mais ser amordaçada. Anos de escravidão, maus tratos, falsas promessas meritocráticas, pedras, tiros, ameaças (quase sempre tudo ao mesmo tempo) não calaram a fé de quem deseja se reconectar as suas origens e lutar pelo seu direito de existir. Eles nos tiraram Mestre Moa, exímio capoeirista e praticante do Candomblé, que foi brutalmente assassinado a facadas em Salvador por desavenças políticas e por tudo que representava, mas nunca tirarão nossa fé.

WICCA

A pena de morte mais comum durante a “caça às bruxas” era a fogueira. Catherine Cauchés, aqui como outra grafia, e suas duas filhas, Guillemine Gilbert (à esquerda) e Perotine Massey (à direita) foram perseguidas e condenadas sob o crime de heresia. Portine era esposa de um ministro protestante e estava grávida.Todos foram queimados vivos, inclusive o bebê. Foto: Reprodução Google

Apagada e negada até hoje, a história da bruxaria, da qual a religião Wicca faz parte, cresceu e se desenvolveu em um contexto pré-cristão muito antigo. Com origem na formação dos reinos europeu, ela mistura ritos celtas e práticas pagãs, que foram absorvidas e, em alguns aspectos, se assemelha com o que a Wicca prega hoje, como a celebração e marco dos ciclos da vida e das festividades sazonais relacionadas com a terra.

Alex Sanders, fundador da Alexandrina Wicca, uma das vertente existentes, afirma que essa seria a mais antiga “religião natural”. Considerada, assim, Neopagã, os ensinamentos se baseiam na existência do sobrenatural e na crença no Deus e na Deusa, a figura masculina e feminina, em conexão com a natureza. Ainda que os princípios da religião sejam baseados primordialmente na harmonia com a terra e com as pessoas, por que se tem uma visão deturpada e mirabolante da Wicca?

A resposta é quase tão antiga quanto o surgimento da bruxaria em si: fazendo-se necessário apagar e condenar “subversivos”- o termo usado aqui não se refere a usurpadores de bens, mas sim os que ousavam seguir e buscar seus próprios ideais bem como liberdade, social e política- ideias errôneas, que continuam até os dias atuais, fundamentados em preceitos do cristianismo geraram em larga escala a perseguição de adeptos. O fruto mais brutal é explícito na sanguinária caça às bruxas na época da inquisição católica.

Tidas como “adoradoras do Satã” e associadas a rituais de sacrifício de crianças e de animais, as bruxas deixaram de ser parteiras e curandeiras, que utilizavam poções naturais e cânticos para cura, até então aceitas pelos membros católicos, para serem mortas em fogueiras.

Qualquer um que fosse acusado de bruxaria, sabia que a morte era a única sentença. Poucos voltavam do julgamento. Na realidade, poucas seria o mais certo. O sexo feminino foi, em todo esse período, o mais afetado e o mais oprimido. Muito além de só praticar bruxaria, para as mulheres, apenas desafiar os costumes, levantar a voz ou lutar pelo que acreditava, podia acarretar ser enforcada ou queimada viva.

Hipátia foi a primeira mulher documentada como matemática A também filósofa grega ensinava, além disso, astronomia e filosofia. Joana d’Arc’, heroína francesa e chefe militar da Guerra dos Cem Anos, mesmo sendo extremamente católica, foi acusada de heresia. Ambas, por sonhavam em serem independentes, desejarem ser mais que a sociedade esperava delas, foram acusadas de desobedecerem a Igreja e tiveram mortes brutais. Ambas chamadas de bruxas. Juntas, elas entram na estimativa, segundo estudos mais recentes, das 40.000 a 50.000 pessoas que morreram acusadas de bruxaria.

Mesmo que a perseguição explícita e instituída por leis tenha sido esquecida nos últimos séculos, a repressão continua, perpetuada pelo imaginário popular reforçado por livros, filmes e séries que persistem em propagar conceitos e percepções erradas de quem são bruxas e como elas vivem. Se todas somos ensinadas a perfeição das princesas, ser a bruxa é o pior pesadelo. Elas são sinônimos de tudo que deve ser rejeitado. Mulheres independentes, mulheres fortes, mulheres que acreditam na sua força e na força da natureza.

Women’s International Terrorist Conspiracy from Hell (WITCH) — Nome de vários grupos feministas relacionados, mas independentes, ativos nos Estados Unidos como parte do movimento de libertação das mulheres durante o final dos anos 60. IMAGEM: Reprodução/ Tumblr

Praticante e estudiosa Wicca há 6 anos, Kim Silva desmistifica a principal associação quando se pensa em bruxas. “Primeiro que a Wicca e a bruxaria natural não tem nada a ver com o demônio, as bruxas nem mesmo acreditam em demônio.” Ela explica também que a Wicca eclética, outra versão da mesma religião, é feita para bruxas sem coven, que seria a reunião ou aglomeração de bruxos para rituais religiosos, e que cada coven tem suas regras e ressalta “Na wicca tradicional tem muitas regras. Tem uma hierarquia e rituais. Não posso falar por todos porque variam de coven para coven, mas na bruxaria temos uma regra “faça o que desejar sem a ninguém prejudicar”, o respeito a natureza e a todo tipo de vida é a primeira regra.

Além disso, Kim conta que “quando eu falo que sou relacionada à bruxaria tem aqueles que fazem piada e riem e tem aqueles que colocam a mão na minha cabeça para me exorcizar.”

Mesmo depois de séculos, estereótipos persistem pelo não conhecimento. Eles persistem por ser mais fácil julgar que entender o que se diferencia do “tradicional”. O problema é que não se diferencia totalmente. Pregar respeito e amor aos seres vivos é o que a maioria das religiões repetem em seus sermões. É o que os covens celebram. Não conhecer apaga as luzes da empatia. E afasta. E mata. Porque ser chamada de bruxa mata. Fabiane Maria de Jesus foi, em 2014, brutalmente assassinada por seus vizinhos após um boato de que praticava “magia negra.” Ser bruxo ou bruxa é um desafio, mas eles vivem e resistem.

ESPIRITISMO

“Vocês estão procurando os tambores, né?”, questionou Françoise Marie, coordenadora do Centro Espírita Lar dos Humildes, localizado na Vila Peri, para a equipe durante a visita. A primeira coisa a se reparar no local é a presença de crianças de diversas idades. Sendo considerado também um centro de apoio social, Marie conta que as salas são divididas por idade, e que as crianças recebem ensinamentos recreativos voltados para os valores da família e amigos, sem deixar de lado os valores espíritas. Em uma das aulas assistidas para crianças entre 8 e 10 anos, a atividade proposta era a de criar frases de conhecimentos espíritas com palavras espalhadas pelo chão e justificar o porquê de estarem corretas.

Com o objetivo de desmistificar o senso comum sobre as casas onde ocorrem as práticas da Doutrina Espírita, visitamos o Centro Lar dos Humildes, em Fortaleza — CE. EDIÇÃO E IMAGENS: Cristina Soares /// Cenas dos filmes: Chico Xavier e Nosso Lar, TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Segundo Marie, o Espiritismo trata-se de uma doutrina religiosa, diferente de uma religião propriamente dita, por não possuir dogmas ou rituais. De caráter científico, religioso e filosófico (com muita influência da Maiêutica Socrática), o Espiritismo busca responder perguntas que muitas vezes o catolicismo não é capaz de explicar, começando pelo propósito de cada um no plano terrestre baseando-se no viés de que há vida após a morte.

Ainda segundo ela, algo muito forte e defendido na doutrina é a questão do livre-arbítrio, onde o indivíduo é livre para tomar suas próprias decisões sem se preocupar com proibições, embora esteja consciente de que haverá consequências do que fizer mais para frente. Quando questionada a respeito de hábitos defendidos pelo espiritismo, Marie afirmou que o fundamental é o ato de fazer o bem, para que seja possível colher o bem no outro plano espiritual. As práticas que comprovam sua fala são as ações voluntárias de distribuir sopas e cestas básicas à pessoas carentes, e também a importância de levantar a discussão sobre o combate à depressão, uso de drogas e ao suicídio para os jovens e adultos.

Filiado à Federação Espírita Brasileira (FEB), em Brasília, o Centro Lar dos Humildes toma as devidas precauções durante o Auxílio Espiritual para as práticas do “passe”, que consiste numa transfusão de energias e um momento de rezas na intenção de purificar as energias do paciente e reequilibrar os chakras que garantem seu bem-estar. Para isso, a prática é realizada de forma fechada, permitindo apenas a presença daqueles que já finalizaram o ESDE (Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita), a fim de evitar problemas de mediunidade àqueles que não possuem a devida preparação.

Sabendo-se que a doutrina espírita ainda sofre diversos preconceitos e julgamentos, a coordenadora ainda relatou um episódio em que um grupo de jovens evangélicos estavam impedindo a entrada de pessoas no Centro Espírita e que, após convidá-los para uma visita, conseguiu convencê-los a mudar suas opiniões. Também conta que sua filha, que estudava em um colégio religioso, perdeu grande parte de suas amizades após dizer em sala que seguia a doutrina espírita.

Em um momento mais pessoal, Françoise Marie também revelou à equipe que o espiritismo lhe proporcionou um enorme conforto após o falecimento de seu filho Eduardo, de quatro anos. Por acreditar que há vida após a morte e possuir estudos e treinamentos acerca da mediunidade, Marie afirma que enquanto o restante da família sofria de um luto e um pesar imenso, ela conseguia se manter calma por ter a certeza de que o filho estava bem.

“Minha mãe dizia uma coisa que eu levo pra vida toda, ela dizia assim: ‘minha filha, se nós pudéssemos aceitar a vida como ela é e as pessoas como elas são, nós viveríamos muito melhor’.

“E é assim que a gente tenta viver aqui, é aceitando as pessoas como elas são e a vida como ela é.”

O projeto Des-estigmatizar foi criado para as disciplinas de Fotojornalismo e Introdução às Práticas Jornalísticas no Módulo de Webjornalismo, buscando trazer pautas que mais do que nunca se mostram importantes de serem debatidas e serem vistas. Você pode encontrá-lo no Tumblr e também no Medium.

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