O grafiteiro e aerografista KSIM uniu sua personagem à temática sobre os 50 anos de maio de 1968 durante o Maloca 2018, no Centro Dragão do Mar de Cultura e Arte | Imagem: Reprodução/Pedro Humberto

Entre o spray e o muro, há uma cidade que fala

Grafites, stencils e lambes transformam Fortaleza e nossas relações com ela

Equipe Mídium
Mídium - Comunicação em Movimento
8 min readMay 8, 2018

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Por Guilherme Gomes, Marcela Tosi, Mariana Lemos e William Barros

Grafite [substantivo masculino]

rabisco ou desenho simplificado, ou iniciais do autor, feitos, geralmente com aerossol de tinta, nas paredes, muros, monumentos etc., de uma cidade; grafito.

Nova York dos anos 1970. Palavras e desenhos em muros, paredes e metrôs tomam a cidade. A palavra italiana graffito, que significa arranhado ou rabiscado, é incorporada ao inglês no plural, graffiti, para designar uma arte urbana com forte sentido de intervenção na cena pública. Desde então, as intervenções artísticas realizadas em espaços urbanos rompem com lugares convencionais de arte, gerando mudanças nas relações das pessoas com seus trajetos cotidianos.

Paralelo ao movimento nova iorquino, o grafite no Brasil teve início no final da década de 70, período marcado pela transição do governo ditatorial cívico-militar à democracia. Presente em todo o período da Ditadura, a resistência popular adentrou as principais manifestações artísticas, e o grafite, mesmo que recém introduzido no país, também foi plataforma de críticas ao regime. As primeiras intervenções se deram em São Paulo e rapidamente a prática foi difundida para as diversas regiões brasileiras.

Outra forma de manifestação urbana é a utilização de stencil nos muros das cidades. O stencil é uma folha recortada, feita de papel, plástico ou metal, usada como molde para produzir letras ou desenhos aplicando tinta através do corte na folha. Acredita-se que surgiu na China, no ano 105 a.C, para otimizar a reprodução de artesanatos. Nas intervenções urbanas, seu uso viabiliza que um mesmo desenho ou frase seja difundido facilmente por várias regiões. Os lambe-lambes (ou simplesmente lambes) também vêm ganhando as ruas. Frases e desenhos reproduzidos por impressão, serigrafia ou até xilogravura e posteriormente colados migraram de suas origens publicitárias e são uma nova linguagem ocupando a cidade.

O Centro Dragão do Mar é um dos pólos de arte e cultura em Fortaleza. Anualmente, o centro cultural promove o Maloca, que na edição de 2018 teve como tema “As barricadas abriram caminho: 50 anos de maio de 68”. Artistas convidados ampliaram o número de intervenções urbanas no espaço unindo questões do presente e do passado | Imagens: Equipe Mídium/ Cindy Damasceno e Marcela Tosi

Por muito tempo, devido ao teor transgressor que a arte urbana detém, sua autoria era mantida em anonimato e sua produção era feita de forma isolada e discreta. O ideal de transformar a cidade em um lugar para livre expressão, sem a limitação de espaços e mensagens, dando voz a parcelas marginalizadas da sociedade, tornou essa arte, desde o início, uma expressão proibida e mal-vista por boa parte da população. Narah Adjane, 20, é artista urbana e idealizadora do Projeto Ruela, que realiza percursos coletivos para intervenções urbanas no Conjunto Ceará . Ela conta que, “geralmente, o problema é você estar lá, é seu corpo, ali, fazendo alguma coisa, intervindo, mudando o espaço. Aquilo incomoda muito as pessoas. Mas depois quando elas veem o que você tá fazendo, se aproximam”.

Atualmente, mesmo que o preconceito persista e a utilização de alguns espaços seja questionada, as intervenções urbanas têm maior aceitação. A quebra dos estigmas discriminatórios se deu, principalmente, pela conscientização sobre o significado das práticas e pelo reconhecimento do ato de intervir como forma de livre expressão. Hoje é comum que os grafites tenham autoria explícita e os artistas, além de trabalharem nas intervenções durante o dia, de forma pública, divulgam suas obras e ganham reconhecimento.

A arte urbana brasileira tornou-se referência mundial. Os Gêmeos, Nina Pandolfo, Kobra, Tereza Dequinta, Alex Senna, Siss, Crânio e tantos outros levam a arte brasileira para todos os continentes, seja em muros, galerias, castelos ou capas de singles. Fortaleza, a quinta capital do país, também exibe intervenções urbanas em boa parte de seus muros e paredes. As obras têm diversos propósitos, como a reprodução de sátiras, a criação puramente estética e a imersão da arte no cotidiano caótico urbano. “Vai dar certo” e “Buzina não educa, mas tange jumento” são frases gravadas com stencil bastante encontradas nos muros alencarinos.

Da esquerda para a direita, de cima para baixo. 01 a 03 — Em seu Instagram, Felipe Yarzon publica fotos de alguns seus stencils e os comentários elogiando o diálogo com a cidade são frequentes. 04 — “Vai dá certo”, um dos stencils mais famosos em Fortaleza, é um projeto de Jemison Sousa. 05 e 06 — O Acidum Project é formado pelo casal Tereza Dequinta e Robézio Marqs, são deles alguns dos murais icônicos a capital, como o “Eva”, na Avenida Domingos Olímpio, e o “Iracemas”, no Mercado Central | Imagens: Reprodução

Felipe Yarzon, publicitário e artista urbano, mantém uma relação bem próxima entre suas duas ocupações. A experiência de 12 anos como redator e a facilidade de escrever o ajudam na produção das intervenções.

“Eu acho que o que mais me motivou foi que eu consegui encontrar nisso a liberdade que eu não tinha na minha profissão. Aproveito o que eu não consigo fazer nas propagandas e tento fazer nos muros”, conta.

A experiência profissional também é fundamental para Felipe discernir quais conteúdos são interessantes para suas obras. Na sua intervenção mais famosa, “Sinal fechou? Lembra do cheiro dela”, o artista tenta dialogar com motoristas e passageiros parados nos semáforos, onde o tempo de espera se torna momento para lembrança de alguém especial. Para Yarzon, ainda que o alcance de seus stencils pareça pequeno, o ato de intervir é recompensador pela forma de expressão independente que possibilita.

Mesmo que a forma como as práticas artísticas se dão tenha se transformado, o ideal de transgressão e representatividade permanece. Narah também faz parte do Coletivo Diaba4, formado por estudantes de Artes Visuais, e sai pela cidade com outras mulheres fazendo intervenções. Não são raras as situações de assédio enfrentadas nas ruas e nos ambientes com outros grafiteiros. Há pouco dias, ela e uma amiga ouviram gritos de “suas prostitutas, vão trabalhar!” enquanto faziam um stencil no Benfica. Ao mesmo tempo, a presença feminina se intensifica e traz importantes pautas:

“É a questão do empoderamento e vai se ramificando para todas as questões, principalmente para a questão da rua, que é um espaço muito hostil para a mulher, de várias formas. Só o fato de você ser mulher e estar na rua é um ato político. Grafitar na rua, principalmente quando tem um teor político, uma mensagem ácida e forte, é ainda mais político. Tenho visto um movimento muito forte das meninas. Acho isso muito bacana.”

A jovem também destaca a importância de promover ações que aproximem as pessoas das artes urbanas. Com o projeto que coordena, ela percebe que os preconceitos vão sendo quebrados aos poucos e logo quem entendia o grafite como vandalismo “vai pegando o jet, vai fazendo, vai gostando e você sente que era tudo que a pessoa precisava, alguém que dissesse que aquilo pode”.

Surgido como projeto de conclusão de curso da artista visual Narah Adjne, 20, o Projeto Ruela vem transformando o Conjunto Ceará e já tem ambições de continuar mesmo depois do fim da sua graduação | Imagens: Projeto Ruela

No grafite, também é possível demarcar o cumprimento da missão da arte em converter-se como canal de expressão para a humanidade no mundo contemporâneo, já que dá voz aos grupos sociais, posicionamentos políticos, pensamentos, registros inspirados na vida íntima do autor, etc. É justamente devido a este caráter expressivo que a intervenção artística é considerada inata ao homem e à composição das sociedades ao longo da história.

Felipe Figueroa, artista urbano chileno, vê a arte como fundamental para o mundo. “Não se pode entender uma sociedade coletiva sem arte. Um grupo social se forma e logo nasce a espiritualidade, nasce a arte, nasce a cultura. Não existe uma sociedade que não as tenha. É como os deuses ou a Mitologia”, analisa.

O co-fundador da Oficina La Mancha — projeto que utiliza o ensino da arte para desenvolver criatividade e habilidades emocionais em crianças e adolescentes — vai mais longe ao tratar das contribuições da arte ao espaço urbano. Para ele, “uma cidade que tem arte é uma cidade que está viva, uma cidade que te fala.

Quanto às possíveis interpretações e aos diversos olhares aos quais sua obra está submetida, Figueroa é enfático: “Não lido. Eu pinto. Meu trabalho é pintar e deixar que a ideia saia. Não é meu trabalho impor às pessoas o que devem deduzir.”

O grafite também está presente nos campi da Universidade Federal do Ceará (UFC) | Imagens: Equipe Mídium/ Catalina Leite e Thayná Facó

KSIM, grafiteiro e aerografista, tem uma visão otimista quando se trata da aceitação pública da arte urbana e de seu trabalho. Contando sobre a época em que começou a grafitar, há cerca de 20 anos, repara que não havia material especializado e que grande parte da produção era feita de maneira improvisada. Diferentemente, nos dias atuais há lojas especializadas e também mais pessoas interessadas em aprender — como as que frequentam as oficinas de grafite ministradas por ele no Centro Cultural do Bom Jardim e no Conjunto Ceará. Para KSIM, a internet foi ferramenta essencial no crescimento da cena grafiteira, com a criação de fóruns sobre hip hop e arte urbana, e também devido à facilidade de se conectar com pessoas do mundo todo para troca de experiências.

Suas artes, apesar de serem seu veículo expressivo, geralmente são pensadas com o intuito de gerar interpretações diferentes para cada pessoa, preferindo não as intitular para não sugerir um ponto de vista. Outra prática de intervenção urbana discutida por KSIM e que carrega um teor ainda mais negativo do que o grafite foi a pichação:

“A pichação é uma arte, para começo de história. Já tive e tenho contato com a galera da pichação. Já cheguei a pichar uma vez, […] mas não considero nem um rolê oficial. Eu pratico um tipo de pichação, de vandalismo, que é só de caneta mesmo, de bolso. Meu corre mesmo oficial é o grafite. Mas cada um no seu”, diz.

Embora também surjam com a proposta semelhante de ocupar, de expressar e de problematizar, as pichações são vistas com olhares condenatórios. Sendo alvo de uma discussão controversa envolvendo os limites da liberdade de expressão, da necessidade institucional de criminalização e da definição de marginalidade, o picho e seus desdobramentos se tornam protagonistas em uma análise indispensável no desenrolar da próxima matéria do Mídium.

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Um movimento de experiências em comunicação, integrado por estudantes de Jornalismo da UFC. Assine nossa newsletter: http://tinyletter.com/midium