O futebol feminino no Ceará

Paixão que respira e resiste

Equipe Mídium
Mídium - Comunicação em Movimento
6 min readOct 31, 2017

--

Por Cindy Damasceno, Ingrid Campos e Zeca Lemos

Com a aprovação da criação do comitê de futebol feminino pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) no último dia 17, acredita-se que a modalidade deu um grande passo à frente. Com discussões sobre gestão do comitê, campeonatos, capacitação de técnicos e investimento em categorias de base, a CBF inicia um novo momento para a modalidade no Brasil: o do reconhecimento. No entanto, iniciativas como essa ainda são escassas se comparadas às direcionadas ao futebol masculino. Fato que, infelizmente, não causa espanto, já que a modalidade feminina tem um longo histórico de repressão e descaso.

A questão

A comentarista esportiva, pesquisadora de futebol feminino e estudante de jornalismo, Karine Nascimento, considera que o futebol feminino nasceu no Brasil em 1921, quando mulheres dos bairros Tremembé e Cantareira, na zona norte de São Paulo, reuniram-se para uma partida. Vinte anos depois, com o Decreto-Lei 3199, na Era Vargas, que proibia a prática de esportes “incompatíveis com a natureza feminina”, a modalidade foi impedida de ser exercida. Toda a possibilidade de títulos e reconhecimento foi atrasada.

O campeonato realizado pela Fundação de Assistência Desportiva do Estado do Ceará (Fadec), em 1983, é tido como marco inicial da modalidade aqui no estado.

Inicialmente, o futebol feminino de campo no Ceará não era considerado profissional como o masculino, sendo sempre muito atrelado ao de várzea e ao futsal. Por exemplo, antes do primeiro campeonato acontecer, no mesmo ano, os jogos do masculino eram algumas vezes precedidos pelos do feminino, como se fossem preliminares, categorias de base.

“Na primeira vez que isso aconteceu, os jornais, principalmente o Tribuna do Ceará, reagiram de uma forma muito pesada, os termos usados nas notícias eram muito misóginos”.

“Durante a semana [posterior] inteira, todo dia o jornal trazia uma opinião sobre o assunto: algumas positivas, geralmente vindas de mulheres, mas muitas também que diziam que a mulher tinha que ficar em casa”, relata Karine Nascimento.

Karine Nascimento. Foto: João Victor / Equipe Mídium.

Para ela, os dois principais problemas do cenário do futebol feminino no Ceará são visibilidade e investimento. Outro ponto que também destaca é a atenção que a imprensa dá, hoje em dia, para a modalidade. “Se a imprensa não transmite, não fala que vai ter jogo, não comenta, como é que as meninas vão ser incentivadas a jogar?”. No último dia 21, o Corinthians/Audax foi o grande campeão na Libertadores feminina. Dos dez maiores veículos de comunicação do Brasil (dados de 2015, pelo Instituto Verificador de Circulação — IVC), apenas dois noticiaram o feito. Sem reconhecimento, é quase impossível atrair investimento privado e estatal. “É um ciclo que só vai piorando”, acrescenta a pesquisadora.

Esperança

A Associação Menina Olímpica foi fundada, em 2006 , com a ideia de ser um time de futebol feminino para a comunidade fortalezense. Entretanto, o projeto se tornou muito mais do que isso. Para quem faz parte do clube, que é o atual campeão cearense profissional e sub-20, o futebol feminino constitui uma prática de socialização, aprendizado e, sobretudo, muita paixão.

A agremiação, que realiza seus treinamentos no Campo da Marinha, no bairro Jacarecanga, tem uma estrutura admirável de profissionais, contando com médicos, psicólogos, preparadores físicos, coaching e assessoria de comunicação. Com uma equipe totalmente voluntária, o clube resiste em meio a falta de incentivos, principalmente estatais, e ao machismo da sociedade. Além dos voluntários envolvidos no projeto, familiares e amigos das atletas também têm sua parcela de contribuição. Os uniformes, por exemplo, são confeccionados pelas mães e avós das meninas. Despesas como transporte e inscrição em campeonatos são bancados pelos parentes das atletas e pelos profissionais do clube. Muitas vezes, para conseguir dinheiro, eles organizam rifas.

Foto: Cindy Damasceno / Equipe Mídium.

O fundador e coordenador do projeto, Chagas Ferreira, dedica grande parte do seu tempo e de sua energia ao clube. “Antigamente, se mulher jogava futebol, era uma coisa aleatória. A gente procura ao máximo derrubar essa imagem trazendo organização e espaço para as meninas mostrarem seu potencial e cooperarem entre si, independentemente de suas idades”, explica Chagas.

O Menina Olímpica não é apenas um time de futebol; além da prática esportiva, o clube possui objetivo de formar cidadãs politizadas. “Desde que o futebol feminino parou de ser proibido, em 1983, o preconceito com a mulher no futebol reina. A gente busca por meio de um trabalho de extensão do esporte fazer elas se sentirem parte desse meio, realmente atuantes”, diz o coordenador do projeto.

Significado de afeto e paixão

Outro personagem do projeto é José Maria de Paiva, treinador da base da equipe. O experiente educador físico, mesmo com possibilidades mais rentáveis no futebol masculino, inclusive no exterior, escolheu o feminino. Para ele, as mulheres são muito mais humildes e ávidas por aprender e crescer do que a maioria dos homens.

“O futebol feminino te ouve mais, quer aprender mais contigo. Isso me fascina nas meninas. O desejo de aprender delas é eterno”, relata emocionado.

Para o treinador, carinhosamente conhecido entre as jogadoras como apenas Zé, a palavra-base do clube é paixão. Ele, que se apaixonou pelos sonhos profissionais das meninas, fica emocionado ao falar de sua relação com as jogadoras. “Com elas eu descobri o significado de afeto profissional. Minha relação com elas é de um sentimento muito forte, quase como uma relação de pai e filha”, admite Zé, sem esconder sua emoção.

Foto; Cindy Damasceno / Equipe Mídium.

O treinador da equipe profissional, Luciano Martins, mostra um pouco mais de realismo, mas também se vê envolvido sentimentalmente pelo time. O Menina Olímpica sofre com a escassez de campeonatos no Nordeste, dificultando maior desenvolvimento do nível das atletas. “É importante para o desenvolvimento físico e psicológico das jogadoras que existam campeonatos. A escassez deles desestimula elas a se dedicarem”, afirma Martins. Apesar de tudo, Luciano mostra ânimo quando fala do nível das atletas do time.

“O nível das jogadoras é muito alto, elas são muito dedicadas. A gente já colocou quatro atletas daqui na Seleção Brasileira”, ressalta o técnico, sobre Fátima Dutra, Maria Larisse, Katrine Costa e Marta Cintra.

Já nas atletas, destaca-se o sentimento de afeto pelo Menina Olímpica. Para elas, o futebol é muito mais do que uma ocupação, é uma paixão. “O futebol é minha paixão desde a barriga da mãe para mim. Quando tô aqui, eu me sinto eu”, declara emocionada Raynara Diógenes, 13. Quando questionada sobre a desvalorização da modalidade, Daiane Pires, 14, confessa desapontamento, mas, mesmo com tantas dificuldades, seus olhos brilham ao falar sobre o assunto, emanando gratidão pelo clube. “A rotina é cansativa. A gente se esforça muito aqui, mas quando é paixão, é paixão. Além de a gente amar isso, faz que a gente cresça pessoalmente e em grupo”, observa Laís Cerciva, 17, sem esconder sua alegria por fazer parte do Menina Olímpica.

Raynara, Daiane e Laís. Foto: Cindy Damasceno / Equipe Mídium.

Apesar das tantas dificuldades, o futebol feminino no Ceará cresce com muito esforço. Mesmo com preconceitos e ausências de investimentos, as atletas do Menina Olímpica demonstram paixão pelo que fazem. Cada um ali dentro faz parte de uma história de luta e resistência. A paixão de quem faz parte disso faz o futebol feminino crescer e almejar voos maiores. Ele respira fundo, às vezes dentro de uma UTI, mas sem parar.

--

--

Equipe Mídium
Mídium - Comunicação em Movimento

Um movimento de experiências em comunicação, integrado por estudantes de Jornalismo da UFC. Assine nossa newsletter: http://tinyletter.com/midium