OCUPAÇÃO LITERÁRIA #1

Uma Fortaleza de gente

Quem são as pessoas que tomam Fortaleza numa onda de livros e ressignificações?

Equipe Mídium
Mídium - Comunicação em Movimento

--

Por Dawton Valentim, Gabriela Feitosa, Marcela Tosi e Marília Abreu

Na década de 1990, o romancista Carlos Emílio Corrêa Lima promovia rodas de poesia no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Na década seguinte, o Espaço Arte Templo da Poesia foi um centro cultural no centro da cidade e constituiu-se como espaço para saraus. Hoje, Fortaleza vive a proliferação de clubes de leitura e bibliotecas comunitárias, num novo pico do constante movimento de ocupar a cidade pela literatura.

Movimento que é tocado, sobretudo, por gente inconformada com a memória curta da cidade ou com as dificuldades de acesso de parte da população a equipamentos culturais, como pontua Cleudene Aragão, escritora, professora de literatura na Universidade Estadual do Ceará e curadora das bienais do livro de 2004, 2006 e 2017. A professora, citando Belchior, vê com bons olhos “gente jovem reunida” abrindo novos espaços, “juntando várias tribos, divulgando novos autores, debatendo novos temas”.

Mas quem é essa gente jovem reunida? Por onde esse movimento passa? Que efeitos causa na cidade? É a partir dessas perguntas que nosso percurso pela ocupação literária de Fortaleza começa.

A arte do contágio

Professora de inglês, tradutora, intérprete, escritora, artista visual. Fernanda Meireles se define como coringa. Seu interesse pelos processos de ocupação em Fortaleza, inclusive por lugares que sofrem ameaça de remoção, faz com que a artista esteja também engajada em trabalhos com comunicação e/ou direitos humanos. Caracterizando a relação de cearenses/fortalezenses com a literatura como um “flerte tímido”, Fernanda já percebe um movimento que está redescobrindo a relação com a cidade que só tende a crescer, pois acredita que “é uma relação com muito potencial pra dar bom, dar match.”

Percorrendo a cidade com a Loja sem Paredes, esse é somente um dos espaços que Fernanda ocupa com sua arte. Em meio a oficinas de fanzines, clubes de leitura e rodas de conversa, ela ainda segue desenvolvendo parcerias com coletivos ou instituições como o CEDECA (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente), Cáritas, Ciclanas e o Abrigo Thadeu Nascimento.

“Uma parte desses trabalhos é voluntária, outra parte não. Uma parte é com instituições, outra parte não. Aí eu tento equilibrar as coisas e faço também um trabalho voluntário com a Livraria Lamarca: criação de público, criação de eventos literários.”

Auê, Feira Criativa, acontece na Praça das Flores e agrega artistas de diferentes trabalhos. Com música ao vivo, comidas típicas e ambiente arborizado, centenas de pessoas ocupam a praça, geralmente aos sábados, para conhecer os projetos | Foto (celular): Equipe Mídium/Gabriela Feitosa

Sobre a onda de ocupação literária em Fortaleza, a escritora afirmou que a cidade costuma ser “uma cidade muito bacana pra quem quer plantar, mais do que pra quem quer colher”. As relações, segundo ela, vão se construindo através do contágio, já que veículos tradicionais costumam publicar uma pequena parte de tudo que é produzido.

“Tem muita coisa interessante acontecendo. Uma pequena parte vai sair no jornal. A outra parte você vai descobrindo por contágio. A galera que tá organizando saraus por aí. Pequenos selos editoriais, como o Selo Aliás de mulheres. As iniciativas de biblioteca comunitária do Talles Azigon. São várias cidades dentro de uma só, né? Então, tem que sair perguntando mesmo o que eles tão fazendo.”

Para Fernanda, o ato de contar histórias, sendo elas orais ou impressas, reais ou inventadas, segue sendo um importante instrumento de ressignificar a cidade, dar outros sentidos e criar laços. A artista ressalta a importância de construir um círculo de leitura plural e diverso. É impossível dizer, para ela, um momento específico que marque o começo dessa nova onda. “É a mesma coisa que perguntar que horas começa uma onda no mar. Não dá pra dizer, né?”, brinca.

“Possibilidade é uma palavra linda” diz a arte que Fernanda fazia enquanto conversávamos. Uma das únicas certezas é que a arte afeta, pulsa e contagia. Sigamos contando com as possibilidades, então | Foto (celular): Equipe Mídium/Gabriela Feitosa

Aumentar a vida com a literatura

O poeta e produtor cultural Talles Azigon é um dos que vêm inventando e promovendo encontros literários em Fortaleza. Nos últimos treze anos, foi idealizador, produtor, articulador e apoiador em diversas ações que envolvem literatura na capital. Nesse tempo, ele percebe que “tem mais pessoas lendo, dá para ver a olhos vistos nos ônibus, nos metrôs, nos cafés. E não só isso, a procura por ações como grupos de leitura, clubes de leitura e eventos de literatura aumentou também”.

Entre suas inúmeras atividades com a literatura e a cidade, Talles Azigon é idealizador e curador do projeto Livro Livre Curió. Neste vídeo, em seu próprio canal, Talles conta qual livro transformou sua vida

Para ele, o atual movimento literário que está mudando a relação da cidade de Fortaleza com os livros “transforma a experiência para um viés ainda mais positivo de a literatura como algo que constrói sentidos e significados”, deixando de ser apenas mais um bem de consumo.

“O verso ‘Vou aprender a ler para ensinar meu camaradas’, do baiano José Carlos Capinam, com toda certeza é uma espécie de resumo do que eu penso. Pra mim literatura é uma espécie de energia cinética, faz mover realidades, ideias, afetos, paixões. Ter acesso às leituras, é ter acesso a um universo que se dilata. Eu quero aumentar a vida com a literatura.”

E esse universo literário se dilata nas terras alencarinas há muito tempo. Talles lembra que artistas independentes e pessoas conectadas pela literatura sempre movimentaram Fortaleza. Os saraus existem há décadas e já aconteceram periodicamente em diversos lugares da cidade. Já a Rede de Leitura Jangada Literária é um coletivo de bibliotecas comunitárias que, desde 2013, promovem atividades buscando a democratização do acesso ao livro e leitura. Para Talles, algumas ações governamentais, como o Projeto Agentes de Leitura do Ceará e as Bienais do Livro, fortaleceram o cenário e “muitas feiras de literatura, muito eventos de literatura tem surgido e aparecido nos últimos dez anos na cidade”.

A Rede de Leitura Jangada Literária é composta por dez bibliotecas comunitárias Juntas, as bibliotecas se fortalecem e incentivam a literatura pela cidade por meio de mediação de leitura, contação de histórias, peças de teatro, saraus, feiras de livros e seminários | Fotos: Arquivo da Rede de Leitura Jangada Literária

Em 2018, quando estava perto de fazer aniversário, Talles pediu aos amigos a doação de livros para o que se tornou a Biblioteca Comunitária Livro Livre Curió, fundada em 31 de março. Hoje, a biblioteca já recebe mais de 600 visitas por mês e atende leitores não só do Curió, um dos bairros com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Fortaleza, mas também das adjacências. Sem cadastro e sem prazo para a devolução dos livros, o acervo foi construído na casa da mãe do poeta e, aos poucos, vai se tornando um ponto de programação cultural no bairro. Além da ajuda de Annita Moura, Talles destaca outras contribuições que foram fundamentais para a fundação do projeto:

“A Silma doou a estante, a Socorro Acioli mobilizou doações, minhas amigas e amigos e as próprias moradoras e moradores do bairro, em especial minha Mãe, Ritinha, uma mulher que sempre articulou atividades no bairro, como passeios, cinema, festa das crianças, grupo de idosos; minha irmã Lígia, uma leitora apaixonada; meu vizinho Vinícius, que conheci e se encantou com a ideia”

Livro é bicho que se cria livre

Annita Moura, inclusive, é a força motriz de um dos projetos de compartilhamento de livros mais antigo no Ceará e que inspirou o surgimento do ponto de leitura no Curió: o Livro Livre Ceará, que, em 2018, completa quatro anos.

À esquerda, Annita Moura. Talles Azigon à direita. A Biblioteca Comunitária Livro Livre Curió é fruto da parceria entre os dois, que acreditam na potênca de um espaço literário fundamentado na liberdade e no afeto | Foto: Livro Livre Curió

Annita foi uma criança cercada por livros e, quando morou em Brasília, teve contato com o projeto T-Bone Açougue Cultural, o que despertou na psicóloga o desejo de compartilhar seus livros e de mostrar às pessoas o significado desse gesto. Fundado há mais de 20 anos, o T-Bone teve um início parecido com o do Livro Livre CE, a partir do compartilhamento dos livros do acervo pessoal de Luiz Amorim, dono de um açougue, com clientes e vizinhança. O projeto ganhou corpo e, hoje, é referência, inspirando pontos de compartilhamento, recebendo várias doações e sendo espaço de realização de saraus, shows musicais e outras atrações culturais.

“Foi uma época muito difícil porque eu era muito sozinha, não tinha família lá. Passava muito tempo lendo, então ia ao açougue, lia três, quatro livros por semana, não gostava, devolvia… Aquela leitura sem a preocupação de ter um cadastro, de devolver o livro e poder compartilhar os meus me encantou. Quando voltei para Fortaleza, decidi que queria viver algo similar aqui na cidade”

E assim fez. De volta a Fortaleza, Annita apresentou um projeto à escola em que trabalhou de encher de livros as paradas de ônibus da linha “075 — Campus do Pici / Unifor”, mas a ideia não interessou à gestão. Algum tempo depois, o colégio recebeu uma grande doação de livros que não foram totalmente assimilados pela biblioteca. “Eu perguntei se podia levar alguns daqueles livros pra casa pra começar o meu projeto”. Nascia o Livro Livre Ceará, inspirado por Luiz Amorim, do Açougue Cultural, e pelo “Esqueça um livro”. Com a ajuda do marido, surgiram logotipo, adesivos, marcadores de página e carimbos, que, no processo de higienização, restauração e descaracterização comercial dos livros, permitiram Annita a deixá-los pela cidade.

O primeiro ponto fixo de livros compartilhados do projeto surgiu cerca de dois anos e meio depois desse início, na Clínica Veterinária Garra. Batizado de Garrateca, o espaço logo se juntaria a outros, como a estante de livros livres da Livraria Lamarca, a Biblioteca Livro Livre Curió, a Biblioteca Quintal Cultural (Bom Jardim) e, futuramente, as bibliotecas Livro Livre Poço da Draga e Livro Livre Castelo da Leitura (Parque Potira, Caucaia). Ambientes que contam com a dedicação de Annita Moura em grande parte de seu tempo, quer seja no recebimento e na distribuição de doações quer seja na participação da psicóloga em palestras e eventos. “A gente não tem mais pontos porque realmente eu não dou conta de fazer a manutenção de todos”, desabafa. Um considerável aumento no volume de doações e o reconhecimento do papel do projeto de estimular o surgimento de bibliotecas comunitárias são alguns dos reflexos mais visíveis desse engajamento.

“O Livro Livre é um projeto de incentivo à leitura e ao compartilhamento de livros, e o compartilhamento é de carros, de bicicletas, é uma tendência mundial. A gente precisa valorizar a experiência da leitura sem a necessidade de possuir o livro físico, parado em casa. A maioria dos livros pode ser compartilhados. O Livro Livre tenta mobilizar as pessoas para verem isso”

Além do compartilhamento de livros, Annita Moura também se dedica ao compartilhametno de visibilidade, não deixando de mencionar outros projetos que também têm na socialização da literatura uma base. Exemplos desses projetos são: Livros Livres UFC, Plantando o bem, Jangada Literária, Leitura na praça (Crato — CE), Geladeira de livros da Transforme Coworking, Livro Leve e Solto (Faculdade CDL), Movimento Social Fome (Sobral), Terminal Literário e Expresso da Leitura.

Juntas, ainda segundo a psicóloga, essas iniciativas convergem no combate ao abismo social que existe em Fortaleza, que começa na infância, com a pobreza de estímulos à leitura e a impossibilidade de as famílias menos abastadas terem livros e brinquedos educativos em casa.

“Esses projetos de leitura estão muito engajados na transformação dessa realidade, de possibilitar que os livros cheguem a quem realmente precisa. Nós temos poucas bibliotecas públicas e nem todas as escolas têm bibliotecas. O que a gente tá propondo é uma grande revolução silenciosa: levar os livros e a leitura e esse estímulo a um estado onde 1 em cada 9 pessoas não sabe ler”

Compartilhando experiências

Para Jéssica Maria, os eventos literários foram de grande importância para ampliar as suas percepções de leitura. A jovem é leitora e frequentadora de eventos literários. Embora seu contato tenha se intensificado a partir da escola, quando ela pegava emprestado os livros da biblioteca e os lia durante o intervalo, essa relação é mais antiga: quando criança, sua mãe fazia a leitura de livros infantis para ela.

À esquerda, Jéssica Maria em sessão de autógrafos com a autora Ana Beatriz Brandão. À direita, Jéssica lê um livro da autora Julia Quinn, em foto publicada em seu perfil literário no Instagram | Fotos: Acervo pessoal da entrevistada

Com o tempo, Jéssica passou a frequentar livrarias em Fortaleza, como a Livraria Saraiva e a Livraria Cultura. Quando pode comprar livros, porém, ela visita a biblioteca da Universidade Estadual do Ceará (UECE), onde estuda. Quanto a outras iniciativas, Jéssica confessa não possuir o costume da visitação: “Admito que só visito quando vou ao Centro. Mas, se vejo feiras ou sebos por onde estou passando, paro para dar uma olhada”.

Há alguns anos, Jéssica estendeu suas experiências e começou a frequentar eventos literários pela cidade. Tomando conhecimento deles principalmente por meio das redes sociais, como Facebook e Instagram, Jéssica relata ter descoberto o valor do compartilhamento de experiências de leitura.

“Eu comecei a ver esses eventos sendo divulgados e fui indo, porque é muito difícil encontrar pessoas que tenham o hábito da leitura. Pensei que, através desses eventos, eu fosse conseguir essas amizades literárias. E eu gostei muito e não parei de ir. Eu sempre lia os livros e não tinha com quem comentar, é muito mais legal quando você tem pessoas pra fazer isso. A leitura fica mais completa.”

Jéssica frequenta desde eventos de lançamentos de obras literárias até clubes do livro em Fortaleza| Fotos: Acervo pessoal da entrevistada

A princípio, a estudante frequentava os eventos acompanhada apenas de seu namorado. Atualmente, o número de pessoas com as quais ela se relaciona aumentou. Ela conta que costuma encontrar conhecidos ou amizades a serem feitas nas filas de espera para participar dos encontros. Para ela, ir a esses espaços também é uma maneira de pertencer ao movimento literário. “Você fica mais envolvido com esse universo da leitura, conhece mais autores e obras e consegue trocar ideias, que é a melhor parte pra mim”, relata.

Foi em uma dessas filas de espera, inclusive, que Jéssica conheceu as organizadoras do clube de leitura Estripulias Literárias, do qual participa. O clube se reúne uma vez por mês para conversar sobre um livro escolhido e tem um grupo no WhatsApp para organizar os detalhes dos encontros. Além disso, a relação de Jéssica com a leitura e com o compartilhamento de vivências a motivou, também, a criar um perfil literário no Instagram. Ativo há sete meses, o Livros da Jessica é um espaço no qual ela consegue manter contato com outros leitores e trocar opiniões de leitura.

Quando perguntamos à professora Cleudene Aragão, aquela do começo dessa matéria, sobre o que falta em termos de ocupação literária, ela não hesitou:

“Falta lutar pela literatura cearense nas escolas. Falta conhecermos melhor as obras de autoria feminina. Falta conhecermos melhor a literatura feita nas periferias, nos saraus, nos slams. Falta criarmos mecanismos para que os autores e autoras cearenses de hoje possam fazer circular suas obras em centros culturais e nas escolas. Mas creio que Fortaleza, nos últimos anos, vem criando novos caminhos”

Esses novos caminhos parecem estar sendo construídos por quem não está no meio das faltas apontadas pela professora: gente disposta a fazer a cidade ser ocupada cada vez mais pela literatura. Na segunda matéria sobre a ocupação literária de Fortaleza, veremos alguns dos espaços por onde passa esse movimento de ressignificação da relação das pessoas com a cidade e da cidade com as pessoas.

--

--

Equipe Mídium
Mídium - Comunicação em Movimento

Um movimento de experiências em comunicação, integrado por estudantes de Jornalismo da UFC. Assine nossa newsletter: http://tinyletter.com/midium