Deleuze Dark: entrevista com o autor

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31 min readJan 20, 2017

Entrevista com Andrew Culp. Por Alexandre L. Galloway.
Publicada originalmente em inglês na boundary 2 editorial collective, em 29 de junho de 2016. O livro “Dark Deleuze” (Minnesota Press: 2016) ainda não tem tradução ao português.

Alexander R. Galloway: Você tem um livro novo chamado Dark Deleuze. Eu particularmente gosto da expressão “cânone da alegria” que guia a sua pesquisa. Você poderia explicar o que ela significa e por que faz sentido usá-la quando falamos sobre Deleuze?

Andrew Culp: O pontapé inicial do livro, na verdade, eu surrupiei de uma carta que Deleuze escreveu ao filósofo e crítico literário Arnaud Villani, no começo dos anos 1980. Deleuze sugere que qualquer livro que valha a pena ser lido deve ter três coisas: uma polêmica contra um erro, um resgate de algo esquecido e uma inovação. Seguindo essas três linhas, primeiro me posiciono contra aqueles que veneram Deleuze como o santo padroeiro da afirmação, segundo, reabilito o negativo que, no fundo, já satura o trabalho dele, e terceiro, proponho o que nem ele próprio nunca foi capaz de propor: um “ódio por este mundo”. Então, assim como Marx vira de ponta-cabeça Hegel, eu começo o livro com aqueles que defendem um Deleuze como um eterno otimista, porém, não o faço para subir nos ombros deles, mas para pôr abaixo a igreja da afirmação.

Para isso, a parte canônica do “cânone da alegria” não tem uma importância pequena no livro. Talvez mais do que qualquer outro pensador recente, Deleuze subverte a linha sucessória da filosofia. Boa parte de seus livros é preenchida de comentários a pensadores clandestinos, que ele resgata do exílio. Por exemplo, Deleuze teimava em não descartar Nietzsche como fascista, Bergson como espiritualista ou Spinoza como racionalista. Aparentemente, isso o levou a ser bastante importunado pelos colegas da academia, na universidade de Sorbonne, no final da década de ’40. Para comprovar ainda mais a sua jornada esquisita através da história da filosofia, a única monografia publicada por Deleuze em quase uma década foi uma leitura antitranscendental de Hume, exatamente num período em que a fenomenologia era rainha na França. Esse itinerário facilitou a recepção de Deleuze, nos termos de suas próprias palavras, como um autoprofessado praticante da filosofia menor. Mas, olhe para os deleuzianos de hoje em dia! A consagração de Deleuze no panteão da Filosofia transferiu aceitação até para figuras relativamente esquecidas, como o sociólogo Gabriel Tarde. A popularidade de Deleuze hoje, então, não deixa de levantar uma questão espinhosa para nós: como podemos continuar a linha deleuziana menor quando Deleuze ele próprio foi transformado num “pensador maior”? Para mim, o primeiro passo consiste em separar Deleuze (e Guattari) de seus comentadores.

Identifico duas interpretações do “cânone da alegria” deleuziano que têm sido bem populares: 1) recalcitrantes deleuzianos devotados à tarefa de libertar todos os fluxos, e 2) realistas com o compromisso de acreditar neste mundo. A primeira posição não pára de macaquear o jargão da revolução molecular, devires, esquizos, transversalidades e por aí vai. Alguns até chegam a usar esses termos sem nem sequer transformá-los! A monotonia resultante aprisiona o destino de Deleuze e Guattari num idioma de pedra, usado por pessoas que ainda parecem habitar os anos 1980. Tamanha calcificação dos conceitos de Deleuze e Guattari é uma injustiça especialmente grave, porque Deleuze conscientemente deslocou a terminologia empregada de livro em livro, justamente para evitar isso. Mas não me confunda, tenho uma dívida profunda com os primeiros trabalhos sobre Deleuze! Por exemplo, eu insisto no cerne marxista-freudiano de Deleuze e Guattari, como trabalhado por um dos primeiros comentadores anglófonos, Eugene Holland, a quem procurei para orientar-me a dissertação. Mas para mim, a linha do Tiqqun que “a revolução foi molecular, e também a contrarrevolução” retrata à perfeição o problema de advogar nos tempos atuais por uma política molecular. Por quê? Porque hoje as técnicas de controle são moleculares. O resultado é que as sociedades de controle esvaziaram a cartola de mágico do pensador molecular (Bifo é um bom exemplo para testarmos esta hipótese), o que nos deixa na mão com uma revolução que vai apenas numa única direção e não é para frente.

Mas estou igualmente insatisfeito com os deleuzianos realistas que cavucam profundamente as primeiras camadas de Mil Platôs e para bem longe da “velocidade infinita do pensamento” que anima O que é a filosofia?. Estou pensando das primeiras recepções da teoria dos sistemas dinâmicos, o espanto dos anos ’90 com qualquer coisa que parecesse serendipianamente como um rizoma, a emergência de meados dos ’00 do realismo especulativo, e a virada “ontológica” em andamento. Qualquer um que tenha lido Manuel DeLanda vai conhecer o exato dilema entre materialidade e pensamento. No caso dele, ocorre uma desaceleração dos conceitos de Deleuze e Guattari, para alguma coisa que seja facilmente apreensível. Em seu primeiro livro, DeLanda narra a história de um “historiador robô”, em A Thousand Years of Nonlinear History, ele literalmente retraça os últimos mil anos de economia, biologia e linguagem, remetendo-as a invenções tecnológicas claramente identificáveis. Tais leituras são perigosamente convincentes devido à sua lucidez, que todavia vem a um custo exorbitante: o realismo androide joga fora o sujeito desejante, que seria necessário para uma teoria da revolução através da insistência psicanalítica na habilidade humana de superar os instintos biológicos (e.g., As pulsões e suas vicissitudes e Além do princípio de prazer, de Freud). Interpretações realistas de Deleuze, a seu passo, concebem o sujeito como plenamente estabelecido neste mundo. Mas ao fazer isso, o pensamento como um todo evapora debaixo do peso deste mesmo mundo. O livro de Deleuze sobre Hume é uma primeira versão de crítica a isso, mas os realistas não prestaram atenção nele. Sejam eles emergentes, redistas ou actantes, os realistas — no sentido forte do termo — ignoram um ponto relevante de O que é a filosofia?, de que o pensamento sempre vem do Fora, e no exato momento em que somos confrontados por algo tão intolerável que a única coisa que resta a fazer é pensar.

Galloway: A esquerda sempre foi ambivalente quando se trata de mídia e tecnologia, às vezes denunciando a sua influência corrosiva (Escola de Frankfurt), outras vezes abraçando o seu potencial revolucionário (cibercultura hippy). Ainda assim, você deixa de lado a “aceleração” técnica em favor da “fuga”. Você poderia expandir o seu posicionamento sobre mídia e tecnologia, através da noção de Deleuze do maquínico?

Culp: Foucault diz que uma épistémè pode ser entendida se nós a deixarmos pra trás. Talvez possamos finalmente catalogar todas as posições contemporâneas sobre a tecnologia? A romântica (um computador nunca vai capturar a minha alma), a paranoica (há uma força desconhecida que puxa os cordões), a pessimista-fascista (computadores vão controlar tudo)…

Deleuze e Guattari certamente não são alérgicos à tecnologia. A minha citação favorita vem do livro sobre Foucault em que Deleuze diz que “a tecnologia sempre é social antes de ser técnica”. A lição que pode ser aprendida disso é que cada formação social extrai capacidades diferentes de cada tecnologia. Um exemplo fácil está nos nômades que tanto Deleuze amou. Anarcoprimitivistas conjecturam que os humanos aprenderam a opressão com a domesticação dos animais e estabeleceram a agricultura durante a revolução neolítica. Divergindo dessa narrativa, Deleuze celebra os povos cavaleiros da estepe da Eurásia, como descritos por Arnold Toynbee. Ameaçado por forças que exigiriam que eles mudem de habitat, Toynbee diz, eles preferem em vez disso mudar os seus hábitos. A domesticação subsequente do cavalo não semeou o estado, que na realidade foi feito por aqueles que migraram das estepes na última Idade Glacial para começar o cultivo úmido do arroz nos vales aluviais (mais sobre isso, em The art of not being governed, por James C. Scott). Ao contrário, a nova relação entre humanos e cavalos permitiu ao nomadismo alcançar uma velocidade maior, que era necessária para evadir o esquema pilhagem-e-comércio usado pelos estados padis para sustentar a força de trabalho massiva para a agricultura do arroz. É por isso que o nômade é “aquele que não se move” e não o imigrante (Mil Platôs, p. 381 [NT. Todas as páginas se referem às edições em inglês, referenciadas ao final]).

O aceleracionismo tenta superar a oposição capitalista entre humano e máquina por meio da demanda por automação total. Desse jeito, ele contrabandeia um proudhonismo tecnológico que crê que se possa escolher o que é bom na tecnologia e rejeitar o que é ruim. A réplica marxista é que o desenvolvimento avança pelo seu lado ruim. Então, em vez de coisas chamativas como carros que se autodirigem, a verdadeira questão dot-comunista seria: como a Amazon vai automatizar os empregos maçantes e mal pagos que os computadores não são capazes de fazer? O que vai acontecer com os funcionários que preenchem dados em formulários, com os gerenciadores de conteúdo abusivo, com os técnicos que trabalham em serviços de atendimento? Enquanto não se tiver uma ideia clara sobre quem vai esvaziar a lixeira de reciclagem, o aceleracionismo não passa de um socialismo da classe criativa.

O maquínico é mais do que apenas máquinas — ele aborda a tecnologia a partir da questão da organização. O termo foi primeiro usado por Guattari num artigo de 1968 intitulado “Máquina e estrutura” [NT. contido no livro “Psicanálise e Transversalidade”, com edição em português], que ele apresentou à Escola Freudiana de Lacan em Paris, um artigo que fez decolar a parceria com Deleuze. Nesse artigo, Guattari defende o conceito de máquina em relação ao de estrutura. Estruturas transformam partes de um todo mediante a troca ou substituição de particularidades, de modo que cada parte compartilhe a forma geral (noutras palavras, a produção do isomorfismo). Um exemplo político fácil disso seria o Partido Leninista, que faz a mediação entre interesses privados até que se forme a vontade geral da classe. Máquinas, ao contrário, tratam a relação entre as coisas como um problema de comunicação. O resultado é o “controle e comunicação” da cibernética de Norbert Wiener, que conecta coisas distintas num circuito, em vez de implantá-las numa lógica geral. A palavra “máquina” nunca realmente pegou, mas o conceito fez incursões nas ciências sociais, onde a teoria ator-rede, teoria dos jogos, behaviorismo, teoria dos sistemas e outras abordagens cibernéticas ganharam aceitação.

Estrutura ou máquina, cada uma engendra um tipo diferente de subjetividade, e cada um realiza um modelo diferente de comunicação. As duas podem ser achadas em Mil Platôs, onde Deleuze e Guattari anotam dois tipos diferente de assujeitamento: a sujeição social e a servidão maquínica (p. 456–460). Embora ocupe apenas algumas páginas do livro, a distinção é essencial no trabalho de Bernard Stiegler e foi elaborada habilmente por Maurizio Lazzarato no livro Signos e Máquinas. Estamos todos muito bem familiarizados com sinônimos para o regime da sujeição social, com a “agência” — o poder que resulta de indivíduos preenchendo a lacuna entre eles e estruturas maiores de representação, papéis sociais e demandas institucionais. Essa subjetividade está bem delineada pelos lacanianos e outros teóricos da virada linguística (Virno, Rancière, Butler, Agamben). O que falta nas análises deles é a servidão maquínica, que trata as pessoas como simples rodas dentadas da máquina. Tal subjetividade é vastamente subavaliada porque ela contorna questões existenciais de reconhecimento e identidade. Isto se dá na medida em que a servidão maquínica opera no nível do infrassocial e do pré-individual, através de operadores moleculares de afetos não-individuados, sensações, desejos não consignáveis a um sujeito. Para oferecer um exemplo concreto, a referência de Deleuze e Guattari às megamáquinas de Mumford, de sociedades do excedente, construídas ao redor de imensos trabalhos baseados no tratamento dos humanos como meras engrenagens. O capitalismo ressuscitou a megamáquina no século 16 e, mais recentemente, entramos na “terceira idade” da servidão, marcada pelo desenvolvimento das máquinas informáticas e cibernéticas. No lugar de pirâmides, as máquinas técnicas é que usam humanos no lugar de circuitos técnicos, quando os computadores não são capazes de substituí-los ou são caros demais, por exemplo, na Amazon.

Eu também deveria esclarecer que nem todas as máquinas são ruins. Na verdade, Dark Deleuze apenas acredita num tipo de máquina, a máquina de guerra. E máquinas de guerra seguem uma trajetória única — uma linha de fuga para fora deste mundo. Uma tarefa maior da máquina de guerra se alinha com a minha política de tecnoanarquismo: destruir as redes de comunicação criadas pelo estado.

Galloway: Eu não consigo resistir a um trocadilho infame: canhão da alegria [NT. trocadilho de canon = cânone e cannon = canhão]. Parte do seu projeto é sobre resistir a certa tendência masculinista. Essa é uma avaliação justa? Como o feminismo e a teoria queer influenciam o seu trabalho?

Culp: O feminismo está rebitado no Dark Deleuze através da crítica do trabalho emocional e da exposição de corpos — “Um Deleuze revolucionário para o mundo digital atual de felicidade compulsória, controle descentralizado e superexposição”. O maior tema que eu pressiono ao longo do livro é um tema materialista feminista: algo intolerável sobre este mundo é o fato que somos exigidos a participar de sua acumulação e reprodução. Então que tal um jogo de palavras diferente: o conceito de “desmancha-prazeres feminista” de Sara Ahmed, a recusa do contrato sexual que requer à mulher que apareça sempre grata e agradável? Ou melhor ainda, Joy Division [NT. ou seja, Divisão da alegria]? O nome associaria o meu projeto com o pós-punk, com o seu ataque conceitual ao mainstream, e o aceno da banda ao trabalho sexual retratado na novela House of Dolls [NT. novela do escritor judeu “Ka-Tsetnik 135633", que retrata as “Joy Divisions”, isto é, seções do campo de extermínio em que mulheres judias eram selecionadas para servir como escravas sexuais de seus captores nazistas].

A minha crítica da acumulação também é um argumento sobre a conexão. Os críticos mais populares da cultura de rede estão preocupados que nesse processo estaríamos perdendo a nós próprios. Então, por um lado, temos Sherry Turkle que está preocupado com o isolamento crescente dos humanos num estado de “sozinhos-juntos”; por outro lado, está Bernard Stiegler, que pensa que a rede suplanta partes importantes do que significa ser humano. Eu acho esses tipos de crítica socialmente conservadores. Eles igualmente vitimizam-acusam antes de qualquer coisa aqueles que usam as redes sociais. Lembremos os incontáveis artigos atacando as mulheres que tiram selfies como parte de seu regime de auto-ajuda ou adolescentes que, criativamente, escapam da autoridade dos pais. Estou mais interessado na crítica da cultura de rede do começo dos anos 90 e o seu entusiasmo pela rede. Em geral, eu sustento no livro que as abordagens redecêntricas são agora uma forma dominante de poder. Estou muito mais interessado em como o rizoma prefigura as redes digitalmente coordenadas de exploração que tornaram a Apple, a Amazon e o Google as empresas mais poderosas do mundo. Embora não seja feminista por seu valor de face, é fácil ver a relevância ao feminismo disso, quando consideramos a divisão do trabalho por gênero, que geralmente torna as mulheres as empregadas mais usuais para empregos mal pagos na fabricação de eletrônicos, em call centers e noutras indústrias digitais.

Por último, o feminismo e a teoria queer se encontram abertamente na minha crítica da reprodução. Um argumento chave para Deleuze e Guattari no Anti-Édipo é a autoprodução do real, o que significa dizer que nós já vivemos num “mundo sem nós”. O meu argumento consiste em que nós precisamos aprender como odiar algumas das coisas que ele produz. Claro, essa é uma crítica retrabalhada da alienação e da exploração capitalistas, que é um sistema que nos concede bens e salário apenas porque ele já os roubou pelas nossas costas, ao separar-nos dos meios de subsistência e do mais-valor. Tal ambivalência é a realidade cotidiana do trabalhador das maquiladoras que precisa de seu emprego, mas que secretamente torce para que todas as fábricas queimem até o chão. Tais sentimentos destrutivos são resultado dos compromissos que somos constrangidos a fazer para nos conservarmos e reproduzirmos. No livro, eu dou voz a esses sentimentos, ao fundir a noção de vergonha gay da obra de David Halperin e Valerie Traub, que atua como um solvente contra tudo aquilo que nos vincula à identidade, e a vergonha de Deleuze de não sermos capazes de evitar o intolerável. Mas sentir vergonha não é suficiente. Para completar o argumento, temos de aproveitar elementos da crítica feminista queer à reprodução, o que está apenas latente em Marx ou Freud. E dessa maneira deturpar uma velha frase: a ação direta começa no momento da reprodução. O meu primeiro impulso é contar com a atitude punk rock de Lee Edelman e Paul Preciado, quando instauram um inquérito sobre a reprodução. Mas você está certo, no sentido que eles também têm os seus momentos masculinistas, então o que precisaríamos mesmo é de algo mais na linha do pós-punk — um pouco menos agressivo e muito mais experimental. Esperançosamente, Dark Deleuze é isso.

Galloway: A passagem “foda-se Annie”, de Lee Edelman, em No Future: Queer Theory and the Death Drive [NT Sem futuro: teoria queer e o instinto de morte, 2004], é uma das melhores na teoria recente. “Foda-se a ordem social e a Criança em cujo nome somos aterritorizados coletivamente; foda-se Annie; foda-se a criança abandonada de Os miseráveis, foda-se toda a rede de relações Simbólicas e o futuro que serve como seu motor” (No future, 29). O seu livro reivindica, em essência, que os Fuck Annies são mais interessantes do que os materialistas aleatórios. Como podemos escapar do longo braço de Lucrécio?

Culp: A minha sensação é que a política do materialismo aleatório permanece ambígua. Além do sentido literal de “alegria”, existem importantes recortes feministas a respeito do Spinoza materialista dos encontros que merecem a nossa atenção. O trabalho de Isabelle Stengers está entre os mais abrangentes, ainda que os dois mais famosos provavelmente sejam o feminismo ciborgue de Donna Haraway e o realismo agencial de Karen Barad. Curiosamente, embora o Novo Materialismo tem sido uma baita mão para o mundo da arte e do design, as suas apostas sociopolíticas nunca foram tão incertas. Seria de esperar que os apelos ao assunto dessem credibilidade filosófica a eventos tópicos, como o Black Lives Matter. Contudo, para muitos, o Novo Materialismo apenas conduziu a um novo formalismo, focado em formas materiais ou considerações realistas de sistemas físicos, com o fito de eclipsar os “excessos epistemológicos” do pós-estruturalismo. Essa divergência não se perdeu entre os comentadores no mais recente número da revista October, que exerceu o papel de uma espécie de referendo sobre o Novo Materialismo. Por um lado, o assunto inclui uma avaliação generosa das muitas avenidas que os artistas assumiram ao explorar as várias direções “neo-materialistas”. Dessas, gosto do lembrete de Mel Chen que o materialismo não pode servir de “passe livre para sair da cadeia” no tocante à história do racismo, machismo, capacitismo e especismo. Por outro lado, o número da revista incluiu o primeiro ataque consistente contra o novo materialismo. Certamente, a instância do novo materialismo em ver o mundo da perspectiva de “objetos reais” pode ser valiosa, mas só se não excluir com isso a velha política materialista do trabalho. No livro, aproveito elementos das feministas deleuzianas neo-materialistas, em minha crítica da acumulação e da reprodução, mas somente depois de curtocircuitar a construção de mundo que elas fazem. Essa é uma jogada que aprendi com Sue Ruddick, cujo artigo Teoria, cultura & sociedade sobre o afeto do grito filosófico é um tour de force absoluto. E então existe a observação de Graham Burnett que os materialismos recentes são como “Etsy [NT. Webvenda de produtos vintage] beijado pela filosofia”. A frase cristaliza perfeitamente a controvérsia, que talvez esteja quente demais para ser tocada, por pelo menos uma década…

Galloway: Vamos nos concentrar mais no tema da afirmação e negação, já que a maré parece estar virando. Em anos recentes, um número de teóricos deu as costas à afirmação para voltar-se a um conjunto diferente de direções, tais como a negação, o eclipse, a extinção ou o pessimismo. Batemos no teto com a afirmação?

Culp: Primeiro, deveríamos estabelecer o que a afirmação quer dizer neste contexto. Existe a versão metafísica da afirmação, como na auto-intitulação orgulhosa de Foucault como “positivista feliz”. Na declaração dele, em Arqueologia dos Saberes e em A Ordem do discurso, Foucault não está se reivindicando um positivista lógico. Em vez disso, está demarcando a sua abordagem em relação à totalidade de Sartre, ao transcendentalismo e às origens genéticas (o seu alvo secundário é o método ler-nas-entrelinhas, da sintomatologia de Althusser). Foucault passa a formalizar o desacordo com a sua famosa declaração sobre o método genealógico, “Nietzsche, Genealogia, História” (NT. Na coletânea Microfísica do poder). Apesar de ser um admirador de Sartre, Deleuze compartilha essa metafísica afirmativa com Foucault, que os comentadores geralmente descrevem como uma alternativa ao sistema hegeliano da identidade, contradição, negação determinada e subsunção. Mas nada nesse “positivismo feliz” de Foucault nos força a sermos otimistas. Na realidade, apenas aumenta as apostas ao apontar como todos os sentidos não-metafísicos do negativo persistem.

A afirmação vem junto com um simples lógica “mais é melhor” na teoria do agenciamento e no composicionalismo de Latour. Por trás dessa lógica, existe um princípio de acumulação mas sem uma teoria da exploração, falhando em levar em conta o poder do desligamento, do desconectar. A definição spinozana de alegria não faz muito para dissolver esse mito. Penso que nós estaríamos melhor se seguíssemos, em vez disso, as correntes de elaborações políticas radicais nos últimos vinte anos que vêm seguindo uma trilha cada vez mais do negativo. Pois uma parte da história é história dos fracassos. A manifestação de 15 de fevereiro de 2003, contra a Guerra no Iraque, foi o maior protesto da história, mas ele não resultou em efeito algum para impedir o curso da guerra. Mais recentemente, a eleição de governos socialistas democráticos na Europa fez muito pouco para evitar a manutenção da austeridade, mesmo quando os economistas publicamente descrevem-na como um modelo falido, destinado a aprofundar a crise. Na realidade, encontro esperança no atual ciclo de luta e penso que a falta de aspirações pela construção de mundo alterglobalização aqui talvez seja um plus. As minhas pistas vêm do black bloc anarquista e daqueles da geração pós-Occupy, grupos que preferem não avançar nenhuma reivindicação. É por isso que eu volto ao último Deleuze, o do ensaio das “sociedades de controle”, e a sua recomendação de embaralhar os códigos, buscar espaços onde nada precise ser dito, e instituir vacúolos de não-comunicação. Tais ações alimentam a fonte subterrânea da escuridão de Dark Deleuze e o poço de onde brotam o ódio, a crueldade, a interrupção, a desvirada, a fuga, o cataclisma e a destruição de mundos.

Galloway: Teria o ódio pelo mundo um efeito semelhante para você do que o julgamento e o moralismo têm para outros escritores? Como evitamos as formas mais violentas e corrosivas de ódio?

Culp: A tentativa do escritor Antonin Artaud de “acabar com o julgamento de Deus” exerce um papel crucial em Dark Deleuze. Acabar não apenas com alguma autoridade específica, mas com quaisquer deuses que tenham sobrado. O modo mais fácil de resumir isso é pelas “três mortes”. Deleuze já tomou nota dessas mortes no prefácio à Diferença e repetição, mas para mim isso só se tornou claro depois que li Gilles Deleuze e a fabulação da filosofia, de Gregg Flaxman. Todos conhecemos a Morte de Deus nietzschiana. Com ela, Nietzsche constata que Deus não serve mais como princípio central e organizador para nós, os modernos. Importante a Dark Deleuze é o Nietzsche de Pierre Klossowski, que participa de uma conspiração contra toda a humanidade. Por quê? Porque quando Deus está morto, a humanidade o substitui por si própria. Então, a seguir, vem a Morte do Homem, cujo cadáver jaz aos pés de Foucault. Mais do que em qualquer outro texto, A ordem do discurso demonstra como o nascimento do homem moderno foi uma invenção desde o princípio fadada ao fracasso. Então se aquela morte que já está escrita na areia prestes a ser levada pelo vento, o que vem depois? Aqui eu me volto para o mundo, o fazer mundo. Parece óbvio quando olhamos para os problemas que infestam o nosso mundo: a mudança climática global, o capitalismo mundial e integrado, e outras catástrofes em escala planetária. Nós poderíamos tentar lidar com cada um desses problemas, um por um. Mas por que não colocamos uma proposta ainda mais radical? E se largássemos mão da tentativa de salvar o mundo? Nós já estamos encharcados de ficção científica que busca fazer isso, ainda que a maior parte dela seja incrivelmente conservadora. Talvez agora tenha chegado a hora de pensadores como nós alcançá-las. Fragmentos de Deleuze já arranjam os termos do projeto. Ele termina o prefácio de Diferença e repetição consignando à filosofia a tarefa de escrever uma ficção científica apocalíptica. O livro de Deleuze abre com um raio num céu negro e termina com um mundo inchando num único e imenso oceano de excesso. Dark Deleuze colhe todos esses momentos e os nomeia: a Morte do Mundo.

Galloway: Falando da mudança climática, me faz lembrar como pensadores ecológicos podem ser bastante religiosos, senão nas palavras, nos atos. Ecologistas gostam de criticar a “natureza” e todas as suas credenciais anti-essencialistas, enquanto ao mesmo tempo promulgam uma “virada” telúrica como necessária e até salutar. Teriam eles simplesmente substituído uma força irresistível por outra? Mas o seu “ódio pelo mundo” segue uma lógica diferente…

Culp: Irresistível realmente! Ainda assim, é muito perigoso deixar a última palavra à Terra. Não apenas a psicanálise nos ensina que é necessário rechaçar o julgamento da natureza, que a distinção é/deve ser no coração filosófico do pensamento mais ético recusa deixar que o fato natural defina o bem. Introduzo o ódio para marcar uma distância crítica do que é — e, como tal, o ódio é uma reivindicação do futuro no que ele contém de recusa a permitir o que é de prevalecer sobre o que pode ser. Tal orientação na direção do futuro já está em Deleuze e Guattari. Que mais poderia ser a desterritorialização? Eu apenas dei-a um nome. Eles têm outro nome para o que eu chamo de ódio: utopia.

Falando de utopia, a definição de Deleuze e Guattari de utopia em O que é a filosofia?, como simultaneamente aqui-agora [now-here] e não-aqui [no-where], é usada frequentemente por comentadores para justificar posições estranhas, de compromisso com o presente estado de coisas. A referência imediata aqui é o livro Erewhon, de 1872, por Samuel Butler, uma soletração de trás para frente da palavra nowhere (nenhum lugar), que Deleuze também referencia através do outro trabalho dele. Eu imaginaria que a maior parte das pessoas assumiria que é um romance utópico na esteira de Looking Backward, de Edward Bellamy [NT. Daqui a cem anos: revendo o futuro, de 1888, traduzido ao português, romance famoso em que o autor descreve um estado socialista utópico].

E Erewhon, de fato, toma emprestadas convenções da literatura utopista, mas apenas para espetá-las por meio da sátira. Um exame mais de perto revela que o livro é realmente um jab contra a religião, os valores da sociedade vitoriana e a colonização britânica da Nova Zelândia! Então, se tem algo que o aqui-agora de Erehhow tem a contribuir à utopia, é que o presente merece a nossa crítica a mais rude. Em vez de estar simultaneamente aqui-agora (now-here) e nenhum-lugar (no-where), o ódio se desenvolve a partir da sugestão de Deleuze e Guattari em Mil Platôs de “derrubar a ontologia” (25). Portanto, a utopia somente pode ser achada em Erewhon ao nos despedirmos do now-here (aqui-agora) para chegar ao no-where (nenhum-lugar).

Galloway: Em Dark Deleuze, você fala em evitar “a armadilha liberal da tolerância, da compaixão e do respeito”. E então conclui dizendo que “o pior crime do culto da alegria é a tolerância”. Você poderia explicar o que significa, particularmente àqueles para quem a tolerância é um valor?

Culp: Entre os muitos seguidores de Deleuze hoje, existe uma fração de deleuzianos liberais. Talvez essa seja a maior fortaleza da ciência política, onde há um grupo comprometido de autoprofessados liberais radicais. Outros estendem pontes entre Deleuze e o liberalismo de John Rawls. Eu fiquei um pouco chocado quando descobri ambas as abordagens, mas suponho que é inexorável, dada a capacidade do liberalismo de assimilar praticamente qualquer forma de pensamento.

Herbert Marcuse definiu a “tolerância repressiva” como o incrível poder do liberalismo de justificar a violência com posições vestidas de neutralidade. Os exemplos que Marcuse cita são os governos que dizem que respeitam as liberdades democráticas ao permitir manifestações, embora ao mesmo tempo ignorem os manifestantes ao rotulá-los como um grupo especial de interesses. Para aqueles entre nós que têm visto as administrações universitárias serenamente anotando as demandas dos estudantes, formando grupos de trabalho sem perspectiva real, e tascando fotos de manifestantes em materiais promocionais, como uma prova da diversidade, não deveria ser surpresa que Marcuse tenha dedicado o ensaio aos seus alunos. Uma importante reelaboração sobre a tolerância repressiva é o livro Regulating Aversion: Tolerance in the Age of Identity and Empire, por Wendy Brown. Ela sustenta que a polícia externa americana imperialista estende a cortina do discurso da tolerância. Brown ajuda a diagnosticar porque grupos feministas liberais apoiaram a invasão americana do Afeganistão (pois o Talibã é patriarcal) e explica como a simples menção ao ISIS inflama até o mais progressista dos liberais a apoiar ultrajantes orçamentos de guerra.

Por causa de seu compromisso com a democracia, Brown e Marcuse somente podem qualificar os procedimentos universais do liberalismo para um sujeito ético. Cada um critica certos usos da tolerância mas não quer dispensá-la por completo. O ódio de Deleuze à democracia tornou as coisas bem mais fáceis para mim. Ao invés, eu abraço a perspectiva do militante comunista porque os comunistas lutam a partir de uma posição estrutural diferente daquela do capitalista.

Galloway: Falando de estrutura e posição, você tem uma seção no livro sobre a assimetria. A maioria dos autores evita a assimetria, para favorecer conceitos como troca e reciprocidade. Estou pensando de textos sobre “o encontro” ou “a dádiva”, sem mencionar a própria dialética como um sistema de trocas. Ainda assim, você quer abraçar a irreversibilidade, a incomensurabilidade, e a inoperosidade formal — por quê?

Culp: Existem muitas razões para que a assimetria seja preferível, mas, para mim, no frigir dos ovos, tais razões se resumem à questão da estratégia política.

Primeiro, um pouco de pano de fundo. A crítica da troca é importante no Anti-Édipo, em que foi encenada por Deleuze e Guattari como um desafio a Claude Lévi-Strauss. É por isso que eles deslocam a análise marxista tradicional em termos de modo de produção para o estudo antropológico da antiprodução, no que eles mobilizam a obra de Pierre Clastres e Georges Bataille, para desenhar formas não-econômicas de poder que conjuraram a formação do capitalismo. Antropólogos contemporâneos renovaram essa linha de pesquisa, por exemplo, Eduardo Viveiros de Castro, que sustenta em Metafísicas canibais que a cosmologia difere tão radicalmente entre povos diferentes que eles essencialmente vivem em mundos diferentes. O canibal, diz Castro, não é sujeito de um modo de produção, mas de um modo de predação.

Essas não são as apostas que mais me interessam. Considere, em vez disso, a consequência de sistemas éticos construídos a partir do princípio da dádiva e sistemas políticos de incomensurabilidade. A abordagem ética é exemplificada por Derrida, cuja responsabilidade diante do outro vem da tradição teológica liberal de acolher o estrangeiro. Embora exista uma distância entre o eu e o outro, ela é preenchida por meio de um projeto democrático de inclusão radical, mesmo se tal incorporação só pode ser aporeticamente descrita como uma impossibilidade-necessária. Em contraste, a política da assimetria usa a incomensurabilidade para alargar o abismo aberto pela diferença. Ela apresenta uma estratégia de geração de antagonismo sem a equivalência formal da dialética, e provê uma imagem da revolução com base numa transformação fundamental. A primeira pode ser vista na diferença inerente entre a perspectiva do trabalho e a do capital, enquanto a última é uma saída ao que Guy Debord chama de “presente perpétuo”.

Galloway: Você está explorando um Deleuze “dark” e eu me lembro como os conceitos de escuridão e negritude expandiram e se entreteceram nos últimos anos em tudo, desde o afropessimismo até a teoria do black metal (que sabemos ser assustadoramente branca). Como você diferencia entre escuridão e negritude? Ou talvez esse não seja o ponto?

Culp: A escrita sobre Deleuze e raça é desigual. Muito da culpa pode ser atribuída à definição imprecisa de devir. A versão mais vulgar de devir foi assimilada pelos sujeitos neoliberais que sustentam um processo sempre-incompleto de vir mais a ser (encontrando, identificando as suas capacidades, comandando-as). A versão molecular é um pouquinho melhor pelo fato que nela a subjetividade se desenvolve por fora da identidade ou em tensão com ela. Ainda assim, os usos proeminentes de devir e raça raramente escapam da órbita pós-moderna da hibridação, da diferença e da disjunção inclusiva — a face do Homem Branco como significante-mestre, a miscigenação como prática antirracista, “eu sou todos os nomes da história”. Você está certo em mencionar o afropessimismo, na medida em que ele traça um novo recorte do problema. Como escrevi noutro lugar, Frantz Fanon descreve ter sido pego entre o “infinito” e o “nada”, no seu célebre capítulo sobre o fato da negritude, em Pele negra, máscaras brancas. A posição do infinito é patrocinada por Fred Moten, cujo conceito de negro fugitivo é o efeito de uma vitalidade excessiva que sobreviveu a 500 anos de cativeiro. Moten captura momentos fugazes dele nas performances de jazz, arte e poesia. Essa posição combina bem com as figuras familiares da política deleuze-guattariana: o nômade itinerante, o estrangeiro que fala numa língua menor, o virtuoso preso no limiar entre as terras. Em suma, a combinação abastardada de dois ou mais mundos distintos. Diversamente, o afropessimismo não é o oposto da tradição negra radical, mas é o seu Fora. De acordo com o afropessimismo, a definição da negritude não é nada mais do que morte social do cativeiro. Lembra da cena da sujeição mencionada por Fanon? Durante aquele momento repulsivo, ele é assaltado por uma série de associações culturais atreladas a ele por estranhos na rua. “Eu me vi levado ao chão por tantãs, canibalismo, deficiência intelectual, fetichismo, defeitos raciais, navios negreiros e, sobretudo, ‘Sho’ good eatin’ [NT: no original em francês, do escritor de Martinica, “Y a bon banania”, slogan do achocolatado francês que usava clichês racistas nas propagandas, no começo do século 20] (112)”. O afropessimismo aprendeu a lição que representações culturais da negritude apenas refletem o interior da sociedade civil branca. A conclusão é que combinar a morte social com a cultura de resistência, tal como incorporada pelo mentor de Fanon, Aimé Césaire, é uma armadilha que termina por nos levar de volta à branquitude. Afropessimismo, então, segue a rota alternativa da escuridão. Ela lança uma linha ao Fora através de uma desvirada, que dissolve a identidade que nos é dada como um símbolo para a vergonha de ser um sobrevivente.

Galloway: Numa recente entrevista, o cineasta Haile Gerime falou sobre a branquitude como uma “realização”. Como isso, ele significou tanto a realização como tal — autorrealização, a realização do self, a habilidade de realizar o self — como também a sua versão mais nefasta como “realização através do outro”. O mais espantoso é que nessa frase se pode substituir “através” por qualquer outra proposição — para, contra, com, sem etc — e a dinâmica ainda se mantém. A branquitude é uma coisa que torna todo o resto, inclusive os corpos negros, em forragem para a sua própria realização. É por isso que você deixa para lá a realização, para preferir algo como a profanação? E seria a escuridão apenas outro tipo de brancura?

Culp: Talvez a negritude esteja para o profano assim como a escuridão para o Fora. O que é o black metal senão um projeto de uma profanação político-estética? Mas como outros comentadores assinalaram, a política do black metal é ultimamente telúrica (exemplo, o texto “Remain True to the Earth!: Remarks on the Politics of Black Metal”, de Benjamin Noys). A esquerda do black metal é anarquista anticivilizatória e a direita é nativista fascista. Mas ambas traçam a autoridade até a terra, que eles tratam como juíza última e usurpada por ídolos falsos.

O processo segue o que Badiou chama de “paixão pelo real”, o seu diagnóstico da obsessão do século 20 com a identidade verdadeira, as cópias falsas e as farsas inautênticas. A sua crítica igualmente se aplica aos deleuzianos realistas. É por isso que eu penso ser essencial um retorno ao trabalho de Deleuze sobre o cinema e as potências do falso. Um exemplo-chave está no filme F for Fake, de Orson Welles. Ainda assim, a minha escolha favorita seria o romance noir, que ele louva no ensaio “A filosofia dos romances policiais” [NT. Em língua portuguesa, incluído na coletânea A ilha deserta e outros textos, com o título “Filosofia da Série Negra”]. O protagonista noir nunca segue as pegadas de Sherlock Holmes ou de outros detetives clássicos na busca pelo real, que cheiram a verdade através de uma calibragem científica dos sentidos. Em vez disso, as ruas sujas levam o detetive a descer o suficiente, até becos sem saída, que ele procede por meio de uma série de erros. O noir revela que o crime e a polícia “nada tem a ver com a busca metafísica ou científica pela verdade” (82). A verdade é raramente decisiva no noir porque descobertas decisivas apenas acontecem mediante “a grande trindade da falsidade”: informante-corrupção-tortura. A contribuição definitiva do noir é uma nova visão do mundo em que pessoas honestas não passam de trouxas, porque a sociedade é abastecida de fio a pavio pelo combustível da falsidade.

Para especificar a descida ao dark, eu uso dark para significar o Fora. O Fora tem muitos nomes: o contingente, o vazio, o inesperado, o acidente, a rachadura, a catástrofe. Os afetos dominantes associados ao Fora são antecipação, pressentimento, e terror. Para dar alguns exemplos, os mais horripilantes monstros de Lovecraft são aqueles tão alienígenas que os personagens não conseguem sequer descrevê-los com clareza. O desastre de Maurice Blanchot é o Holocausto, assim como qualquer outro evento tão terrível que chega a interromper o próprio pensar. O “evento tóxico aerotransportado” de Don DeLillo é um incidente esquisito a tal ponto que somente pode ser descrito nos termos mais banais. Dos vários diferentes Corpos sem Órgãos que aparecem em Deleuze e Guattari, um em versão conservadora vem de um modelo freudiano de mente que a compara a uma concha, uma capa protetora do ego ante as perturbações externas. Todos nós temos essas barreiras defensivas feitas de hábitos que nos ajudam a navegar num mundo incerto — esse é o propósito do ritornelo de Guattari, essa pequena cantilena que murmuramos para lembrar-nos de algo familiar, ao viajarmos por terras estranhas. Aí existem duas partes que trabalham juntas, o refrão e a terra estrangeira. Mas enquanto os refrãos só cresceram, as viagens parecem ter terminado.

Vou terminar com um exemplo que me é caro. Deleuze e Guattari hoje vêm sendo usados para respaldar uma nova “política prefigurativa” anarquista, que se define pela busca de construir uma nova sociedade dentro dos limites da existente. A consequência disso é que o horizonte político do futuro colapsa com o presente. Isto é frustrante para alguém como eu, que mantém a esperança por um futuro revolucionário, um que ponha fim às milhões de pequenas humilhações que constituem a vida cotidiana. Eu gosto da crítica feminista de J.K. Giblson-Graham da economia política, porém, moedas comunitárias, bancos de tempo de trabalho e cooperativas de trabalhadores não perfazem a minha imagem do comunismo. É por isso que eu pego influências do gótico. Uma revolução que emerja da escuridão mantém o potencial apocalíptico de terminar com o mundo tal como o conhecemos.

Andrew Culp é professor no Whitman College. Especializado em teorias cultural-comunicativas do poder, a política das mídias emergentes e respostas de gênero à urbanização. O seu trabalho aparece em publicações como Radical Philosophy, Angelaki, Affinities, e outras.

Alexander R. Galloway é escritor e programador, trabalha com filosofia, tecnologia e teorias da mediação. Professor na Universidade de Nova Iorque, é autor de vários livros e artigos sobre mídia digital e teoria crítica: Protocol: How Control Exists after Decentralization (MIT, 2006), Gaming: Essays in Algorithmic Culture (University of Minnesota, 2006); The Interface Effect (Polity, 2012), and most recently Laruelle: Against the Digital (University of Minnesota, 2014), reviewed here in 2014. Publica textos no The b2 Review.

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