Errorismo pós-mundo

k-post punk
<mil_brechas>
Published in
3 min readJan 18, 2017

A situação do mundo no final da década de 2010 é a seguinte. O ciclo global de lutas que irrompeu da crise do capitalismo de 2008–10 foi brutalmente restaurado e vivemos um momento contrarrevolucionário. Por sua vez, o capital não encontrou um novo modo de regulação para substituir o fracasso do regime pós-fordista. Como resultado, a crise está nas raias da convulsão, entre Síria, ISIS, Trump, drones, Putin, crise da China, Brexit. Tudo isso produz uma gigantesca massa de raiva em estado bruto, que escorre sobre o globo na forma de um niilismo generalizado. Autores adotam tons catastróficos e o fim de mundo se torna um horizonte de inquietação, por exemplo, com Stengers, Viveiros de Castro, Bifo, Chakrabarty ou Mbembe. O resultado mais imediato é a ascensão de populismos, um galopante sentimento anti-política ambivalente e uma indignação contra tudo aquilo que nos governa e controla. Diante disso, as esquerdas residuais se tornaram ou peças do próprio jogo político exaurido, ou se atolaram em demagogia rasteira, platitudes teóricas, agitprop inútil e uma moral da denúncia, da exposição, de apontar o dedo, que apenas chama essa energia solta contra a própria esquerda, numa espécie de afeto suicidário. Os movimentos identitários da moda seguem em sua missão por uma “revolução dentro da revolução”, mas sem revolução original para “problematizar” e “desconstruir”, terminam por implodir os ambientes remanescentes de lutas com ainda mais paranoias e sobrecargas neuróticas. Ninguém parece transar com mais ninguém e tudo ficou mais complicado, menos nos diagnósticos, cada vez mais simplórios. Sem referências desejantes, o campo afetivo-político se aplainou e no deslizamento geral surgem novos grupos que buscam articular o vazio ao modo de um niilismo ativo, dos alt-righs aos neorreacionários, passando pelas direitas transantes.

É de questionar-se: não seríamos hoje contemporâneos do momento pós-punk? Numa concepção de história a contrapelo, já não coexistiríamos intensivamente com esse extraordinário esforço contra a impotência? Um movimento que enxergava a energia bruta e a indignação da crise do punk, mas que lamentava o seu masculinismo tosco e seu proselitismo purista? Que, sem cair nos virtuosismos hipsters ou em ilhas vanguardistas, promove uma onda pop de experimentação e reinvenção? Menos denúncia, lacração e agitprop: outra estratégia. Não é caso de organizar a energia bruta do punk, porque o espontâneo da revolta e o imediato do anti-político já têm a sua própria organização, com regimes de funcionamento molar e molecular. O caso sempre foi prolongar-lhes as linhas de fuga. Então, mais problematização de mecanismos de poder e da servidão maquínica e menos ataque direto tosco contra um Opressor mistificado e até fetichizado. Não há futuro (no future), fim dos progressismos, mas sim fabricar a *poesia* do futuro, de onde uma revolução pode colher o devir. Chega do palanque sermonizante dos torquemadas de rede social, de fixações narcísico-edipianas de unidades de esquerda, de trincheiras defensivas, de retorno ao trabalho de base, de fundação de partido novo, tudo isso já sucumbiu pelo peso de suas repressões internas. Pelo deslizamento, pela diáspora, pelo dissenso, seguir a sinuosidade porque o real é sinuoso e porque entre os polos do poder há um labirinto de redes e malhas. Retorcer a retórica, distorcer as linearidades, desprogramar os sujeitos, remaquinar o desejo, espessar o explosivo, ir adiante, errar, errar de novo, errar melhor.

Bruno Cava

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