Mil Platôs no ciclo no future de 1977

k-post punk
<mil_brechas>
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7 min readJan 24, 2017

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Chamada para o curso livre “Deleuze e Guattari políticos — reler Mil Platôs”, na Casa de Rui Barbosa, entre 7/3 e 2/5/17 (Rio de Janeiro).

Link do evento completo: https://www.facebook.com/events/1808155756113291/

O álbum “Low”, de David Bowie, completou 40 anos em 2017. O seu noturno lado B mistura paisagens sonoras gélidas com complexas texturas instrumentais, baseadas na música ambiental de Brian Eno, que produziu o disco. Cercado de impasses musicais, políticos e biográficos, em 1977 Bowie fez a sua linha de fuga, deixando para trás os esgotamentos estéticos e políticos do rock, da canção de protesto, do glam, da indústria de entretenimento que havia se convertido em beco sem saída para toda uma geração, na terrível ressaca do ciclo de 1968. Montando sobre os ombros dos sons sintéticos e maquinais de bandas como Kraftwerk e Neu!, “Low” pavimentou o caminho para uma nova cena que irromperia de dentro do grito do punk que eclodira no coração da música anglófona, naquele ano decisivo.

Para Franco Berardi (o Bifo), 1977 foi o último rebento do ciclo mundial de lutas dos esquizofrênicos ’60s, encerrado finalmente com a repressão contra o Movimento de 77 na Itália autonomista, depois de uma década de reações, restaurações, autofagias e problemas libidinais . Ali morreu de vez o futuro, bem como o horizonte progressista de investimento das expectativas na Política, com ‘p’ maiúsculo. O fim das grandes narrativas, a quebra da espinha dorsal da crença no progresso, o esgotamento de fato e de direito das promessas da modernidade. Tudo isso, contudo, foi ambivalente: essa dispersão — nos conta a grande referência da ala criativa do Movimento de 77 — foi também uma vitória daqueles que fugiam dos escaninhos e caixinhas de uma vida formatada ao trabalho, à família nuclear, ao futuro de sucesso. Contra uma sociedade disciplinada e seus eixos de vida adulta, carreira séria, relações duras, para se colocar além e mais profundamente, contra o estado com ‘e’ minúsculo: a forma-estado no pensamento, na percepção, no sentimento, no sexo, na estética.

O grito punk “no future” (sem futuro!) foi a resposta energética e visceral tanto à atmosfera crepuscular de uma geração ameaçada de atolar no pântano da ironia pós-moderna, quanto às múltiplas capturas do novo espírito do capitalismo: inovador, maoísta, horizontal. Na década de ´70, época dos choques do petróleo, do fim de Bretton Woods e do pacto sino-americano que pôs fim à revolução cultural, a mudança estrutural do capitalismo terminou por dissolver a sociedade industrial na direção da pós-industrial. É a reestruturação, o salto do gato sobre o rato que parecia escapar pelos sulcos das lutas de 68. A 3ª Revolução Industrial não foi do aço, mas do silício. Seu maior guru, Steve Jobs. Não à toa, foi naquele 1977 que ele lançou o Apple 2, primeiro computador pessoal user-friendly. A virada pós-fordista converteu bairros inteiros de cidades industriais, como Cleveland, Detroit ou Manchester, em ruínas repletas de animais selvagens e material à disposição. Dos fragmentos, nasceu o Industrial. A paradoxal afirmação estética dos novos tempos produziu o Eletrônico, à margem do nascimento da geração Google.

Mas o punk que por um curto lapso de barbárie embalou os filhos da classe trabalhadora depauperada não foi suficiente. Seu puritanismo monocromático, seus rudimentos demasiado limitados, o levaram à combustão espontânea: populista demais, branco demais, masculinista demais. Cumpriu seu papel e se autodestruiu, já no lançamento de “Nevermind the Bollocks” (1977). Demasiado “anti” para sustentar o assédio das flexíveis forças empresariais que, em pouco tempo, deram-lhe a volta na Babilônia. Na esteira de Bowie, do industrial, do eletrônico, do dubs, da teoria queer, no final dos ’70s surgia então a saída do outro lado do niilismo, na cena rizomática do pós-punk. Nada mais emblemático do que a viagem do anarquista/anticristo Johnny Rotten do Sex Pistols à Jamaica para deslizar seus fluxos e voltar Johnny Lydon, do PiL: coletivo de produção. O punk abriu caminho na ressaca e sem o negar, a nova nuvem do pós-punk prolongou-lhe as linhas de fuga. A sua energia antipolítica e geracional não era para ser descartada, seus afetos destrutivos, nada desprezíveis num tempo de fragmentação afetiva, depressão induzida e felicidade enlatada.

O pós-punk, uma crítica corrosiva intelectualizada porém aspirante ao pop e sem nunca render-se aos guetos cômodos do hipsterismo. Uma estética inteiramente entregue aos gêneros do caldeamento: reggae, jazz, funk, disco e sem jamais cair no ecletismo tudo-vale (contra a atitude hippie-conformista “it´s all music, man”). Uma recusa dos virtuosismos e estrelismos (artista = pedreiro) e uma repulsa às saídas populistas à Direita e também à Esquerda pedagógica e partidária e sem pensamento estético, a quem só interessava instrumentalizar a cena para seus fins nacionalistas e edificantes, “maiores” (no Brasil, a disputa da guitarra elétrica contra a sonoridade nacional autêntica, o tropicalismo contra a canção de protesto, o paideuma neoconcreto e marginal contra a Internacional em suas várias versões). Quando se pensa em punk ou pós-punk hoje, vem à mente cabelos espetados, correntes e apetrechos, apenas um capítulo da história cultural ou contracultural, mas não foi nada disso, a verdade é que foi um movimento multifacetado de grandes proporções, tão caricaturizado quanto neutralizado, um extremo esforço de seguir em frente e ousar.

Sobretudo o pós-punk: não basta uma antimúsica, mas novos ouvidos para desterriorializar o organismo: um novo corpo, um etograma, superpoderes. O pós-punk inglês é o que antropofagicamente nos interessa (nos interessa porque não é meu, diria Oswald): por novos coletivos sonoros, novos arranjos lo-fi e digital de produção e distribuição, novas estratégias de tensão entre mercado e criação, entre arte e política e literatura (como W. Burroughs), grandes ambições, tudo isso que já está e ainda não, nessa indecisa luz brumosa do virtual. Assim como, para Bifo, a dispersão foi produção das lutas, para o pós-punk a sua força decorria do regime diaspórico e minoritário. Mas um minoritário nunca hipster que sempre buscou travar a luta e avançar a sua paisagem lunar de criação intensa e intensiva sobre as paisagens monocultoras e mesmerizantes da época, porque “todo mundo é minoria”. Experimentar com o pós-punk é experimentar com o nosso tempo, contra ele, intempestivamente. Tocar a fronteira intensiva na coexistência de temporalidades, muito vizinhas apesar dos 40 anos, e habitá-la à espreita das interferências.

Naquela época, uma energia bruta populista brotada da crise do capitalismo gerou Thatcher e Reagan, dois líderes populistas confiados eleitoralmente pela maioria para limpar a bagunça de uma era que seria permissiva demais, caótica demais. Não era. Hoje, depois da restauração do ciclo global de lutas de 2011, essa energia gera Trump, Brexit, Estado Islâmico (Daesh), Guerra da Síria. Reagan, como Trump, não emerge de uma carreira partidária, eles surgem diretamente da indústria do entretenimento, a sua face mais epidérmica, que rompe o cortinado da Política (que acabou como horizonte de expectativas), aquele que fala o que pensa e é como a gente. Uma burrice inteligente contra todos inteligentes… burros. Um Ziggy Stardust às avessas, até a mesma cor do cabelo. Putin e Xi Jinping não estão distantes, personagens de filmes antigos de espionagem da KGB ou da máfia de Hong Kong, oligarcas caricatos para um mundo de niilismo em alta velocidades. Todos business men, Champions no topo de uma cadeia alimentar de predadores empresariais e financeiros: no time for losers. Por outro lado, no final dos ’70 como hoje, uma centro-esquerda paralisada pela paixão com que devotou ao poder, burocrática, repleta de quadros que nada mais são que dublês de empresário e aspirantes a banqueiro, apenas outra ekipeconômica para a gestão da crise. E uma esquerda-esquerda santimoniosa, pedagógica e sumamente arrogante, apesar do fiasco de seu agitprop panfletário, apesar de suas fórmulas e receitas inúteis.

O pós-punk — maodadaísta e simbioticista-conceitual — responde: “não há revolução sem estética revolucionária” e desconfia da Mensagem a ser difundida, da Consciência a ser ensinada, do denuncismo e da exposição, das inúteis lacrações autocentradas e seus linchamentos colaterais, do protesto raso contra a figura do Opressor, enquanto romantiza a do Oprimido, meros moinhos de vento tomados por gigantes que protegem os moinhos satânicos do capitalismo. Entre um e outro, entre Oprimido e Opressor, no mundo subrepresentativo do novo capitalismo, existe um labirinto de níveis e subníveis, uma mixórdia de sobreposições e interpenetrações, múltiplos polos, toda uma organização de poder que cabe minudenciar e enfrentar noutros estratos: “Control” diria Burroughs, ou agenciamento maquínico, Deleuze e Guattari, mas poderia ser o regime do sensível, máquina abstrata da Babilônia, Solaris. Na virada aos 80, o relógio do fim do mundo chegou a um minuto da meia-noite, com o exercício Able Archer, em 1983, um dos ápices da Guerra Fria. O holocausto nuclear era palpável que saturava o ambiente. Ano do fime “The Day After”. Hoje, fala-se em morte do Mundo como niilismo realizado do século, depois da morte de Deus (Nietzsche, séc. 19) e do Homem (Foucault, séc. 20), fala-se em intrusão de Gaia, em climate beast, em ecocídio irreversível, em pós-humanismo quente ou gelado, “o silêncio desses desertos infinitos me apavora”. O relógio já passou da meia noite. Estaríamos no pós-tempo, no fim do fim do tempo, no fim do “no future”?

Em 1977, Bowie teve de ir criar à penumbra, travar estratégias oblíquas, sair dos holofotes para buscar as emanações mornas, as texturologias, os etogramas para novos órgãos do sentir. Do lusco-fusco que a tudo parecia engolfar, o cromatismo generalizado do pós-punk e sua miríade de pequenos e imprecisos coletivos, que atingiram, ou pelo menos roçaram, a força massiva do pop, transmutando-a. Foi nessa cena que emergiu, a meia distância, o livro “Mil Platôs — Capitalismo e Esquizofrenia 2” (1980), por Gilles Deleuze e Felix Guattari. A nosso ver, o manifesto inconfesso do mood pós-punk na filosofia, no limiar do pós-moderno e seu embate profundo entre criação e ironia, entre pós-verdade nietzschiana e pós-verdade relativista (virada linguística, teoria das narrativas etc). Bowie, um deleuziano avant Mil Platôs sensu Guattari, lido em 2017. Não queremos interpretá-lo. Experimentar sempre, isso sim. Experimentar Mil Platôs é experimentar, por assim dizer, o ciclo “no future” de 1977, como experimentar com o “Anti-Édipo” (1972) era experimentar com a geração sessentoitista, e experimentar nós próprios outros, do outro lado da crista nevada da cordilheira do ciclo de 2011. Em vez da teoria esquizo da libertação do bom funcionamento do desejo do AE, a intrincada rede borgiana de multiplicidades de MP.

Queremos ser inatuais, puros fragmentos, sem qualquer compromisso com linearidades ou proximidades e lançar os dados sobre o deserto.

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