No cinema brasileiro, emancipação é alforria

João Arthur
<mil_brechas>
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16 min readJan 31, 2017

Escrito diante e a partir de debates ocorridos durante a 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Reflexões acerca do mercado audiovisual

Em sua fala no seminário "Um olhar sobre o cinema brasileiro", sobre a política pública brasileira para o cinema, Manoel Rangel demonstrou claramente sobre que regime se assenta a ideologia política da Ancine: o neoliberalismo. Ele defende que a Ancine trabalhe para fazer o mercado brasileiro crescer, se desenvolver, para que aumentem as disputas internas. Mas quem disputa esse mercado, quem tem condições de fazê-lo? Com a justificativa de fomentar o mercado nacional, com as suas leis e sinecuras, a Ancine promove um discurso calcado na livre concorrência de um livre mercado, cada vez maior como é caso brasileiro, ambicionado por todas as grandes empresas exibidoras de produtos audiovisuais. A euforia — demonstrada no elogio ao “recorde” de filmes brasileiros nos festivais internacionais em 2017, tendo chegado à casa da dezena, mas ao custo de muitas centenas que ficaram no gargalo da distribuição — é apenas um dos recursos usados na retórica desencantada de um otimismo demagógico que encontra suporte em números exuberantes e cifras astronômicas.

O período mais democrático da cultura brasileira foi entre 2003 e 2008, quando Gilberto Gil, então ministro, esteve à frente do projeto dos Pontos de Cultura em nível federal. O projeto entendia basicamente que a cultura no Brasil já estava sendo produzida, já era uma realidade transbordante, e que portanto a máquina burocrática não deveria se ater a esquematizar os modos através dos quais se fomentaria sua produção, mas sim distribuir os meios para essas produções regionais, sistematizando o seu funcionamento. Esse projeto vigorou até o seu desmonte pelo governo Dilma, começando com a ministra Ana de Hollanda, que precarizou seu funcionamento, e terminado de vez na gestão seguinte de Marta Suplicy. No entanto, durante o tempo de plenitude dos pontos de cultura, não houve por parte da Ancine uma verdadeira aproximação de suas políticas públicas ao modo de funcionamento do projeto, quando aplicado ao cinema. Manoel Rangel exemplifica em sua fala o número recorde de salas de cinema que serão abertas em 2017, mas esconde a que lógica de mercado essas salas estão servindo. Se tivesse acontecido tal aproximação, ao invés da comemoração quantitativa do número total de salas no país, haveria hoje uma miríade de espaços alternativos — tais como pequenos espaços de exibição como cineclubes, cinemas de rua menores, bares que dispõem de maquinário para exibição audiovisual, entre outros — todos talvez em plenas ou pelo menos boas condições técnicas de funcionamento e entreligados a uma rede de distribuição autônoma. Isto poderia abrir brechas e ajudar a reconfigurar a forma do mercado brasileiro, de modo que se fortalecesse uma alternativa à disputa entre produtoras e cineastas nacionais contra a hegemonia das distribuidoras estrangeiras, estas que ainda se beneficiam da legislação atual para atuar como predadores dos espectadores brasileiros. Com isso, teria se injetado uma nova vida a esses espaços, que poderiam gerar um efeito global no mercado através de ações locais e localizadas. Por que é assim que a lógica rizomática dos PdC funciona: reconhecem que cultura é algo que já é produzido entre a população, de modo que o que deve ser feito é fomentar as possibilidades desses pontos de agregar ainda mais relevância através da lógica em rede, da colaboração transversal, do crisol de linguagens e métodos (como diz o velho Oswald).

Não seria difícil aplicar essa ideia ao campo do cinema se pensarmos que as iniciativas de exibição informais (como as citadas acima) podem, se bem sistematizadas e equipadas e dadas as devidas importâncias, enfrentar a lógica capitalista da indústria cinematográfica na sociedade ultramidiatizada de hoje. Os exibidores informais, os cineclubistas, os bares que dispõem de equipamento de exibição, e muitas outras iniciativas já são maneiras de lidar com a escassez (produzida) de possibilidades de ver filmes nas cidades — especialmente as médias e pequenas — se caracterizando por espaços alternativos à produção e difusão estrangeira que domina o mercado interno. Tais iniciativas só precisam ser legitimadas mediante políticas mais adequadas, para atuarem como verdadeiras linhas de frente e de fuga, como “vanguarda da fuga”.

O projeto dos PdCs já conta com a adesão de alguns poucos cineclubes no país, mas é mesmo de responsabilidade da Ancine (que se pretende democrática e democratizante), enquanto órgão normatizador e organizador das demandas do mercado interno, preocupar-se com planos alternativos eficientes, que possam promover outros paradigmas para o mercado de cinema. Ao invés disso, preferiu-se atuar em prol de tornar o bom ótimo e o ruim péssimo. Assim, o que poderia ser a potência de renovação da lógica do mercado interno, segue num caminho precário e desarticulado. Enquanto isso, o que representa o velho esquema da concorrência desigual, sob a proteção legislativa disfarçada de democrática, faz escoar o produto da arrecadação dos filmes exibidos nas plataformas e suportes para seus países de origem, aumentando cada vez mais os lucros da gringa. Dessa forma, a Ancine atua somente como centralizadora dos modos de organização do mercado nacional, quando poderia ser ela própria a catapultar iniciativas novas em rede e autônomas, possibilitando aos poucos ao mercado brasileiro ser experimentado por iniciativas locais, como verdadeiro campo a ser disputado dentro do panorama econômico do cinema internacional.

As novas distribuidoras brasileiras que despontam no mercado estão desarticuladas politicamente entre si e muitas ignoram o regime desigual no qual se veem obrigadas a concorrer com as estrangeiras. Elas caminham paulatinamente tendo como norte o sucesso individual de seus empreendimentos, para ser alçadas como exemplos nacionais (como a Vitrine Filmes cuja representante,Talita Arruda, esteve presente no debate), resultado de uma política desenvolvimentista, na verdade, uma grande farsa progressista (a mesma que produziu Belo Monte). O único movimento na direção de uma unidade no cinema brasileiro é feito em nome de uma identidade nacional progressista cujo signo é a imagem difundida através dos é-de-tais. Uns clamam pelo sonho da indústria (o sonho da burguesia nacional por excelência), outros pelo sucesso intelectual e artístico (o sonho da burguesia nacional por ‘essência’). O fomento concentra-se por sua vez na produção crescente de filmes brasileiros, mas ignora as condições nas quais os novos filmes vêm ao mundo.

Como diz o professor Sergio Santeiro: "É-de-tais: nomeada comichão de ex-pertos. Pilhas de papel para envio e análise. Atestados, certificados, comprovações, notas. Custo da máquina pública e burocrática abatido no custeio. Desperdício e exclusão da maioria. Exibição dos laureados". Manoel Rangel em seu discurso inflamado em Tiradentes, ao explicitar a política de fomento da Ancine, negligencia a dialética entre meio de produção (câmera/equipamentos/dinheiro) e modo de produção (ideias na cabeça sobre como realizar). Esse raciocínio é seminal para aumentar a autoconsciência sobre como se dão as relações de produção capitalistas na indústria cinematográfica e as suas implicações estéticas nos movimentos cinematográficos mundo afora. Seus editais altamente burocratizados enxergam os trabalhadores do cinema como meios das políticas públicas de mercado, sem levar em conta que estes são os agentes que ao mesmo tempo renovam e reinventam os modos de produção e distribuição dos filmes. Disso se segue uma estética cinematográfica enquadrada em projetos mediocrizados para atender às demandas da centralização dos meios de produção sob o crivo dos órgãos oficiais.

Diante desse panorama guiado pelo medíocre, diversos intelectuais brasileiros vêm corroborar às avessas com um pensamento que prima pela condescendência com que é interpretada a relação público x realizadora/es. A ideia de emancipação do espectador expressa por eles não leva em conta em que maquinaria de mercado e política essa emancipação está engrenada, através de que regime produtivo ela se faz, e dentro de que perspectiva para o cenário brasileiro em meio ao funcionamento do mercado internacional. Com o espectador exposto no descampado desértico, a caça está liberada para quem trouxer a melhor parte da carne, ganhando assim mais estrelas na capa do filme, prendas dos júris e jurados amigos, e benefícios das leis meritocráticas. As produtoras e distribuidoras nacionais podem assim praticar sem qualquer culpa a predação do “‘livre mercado” audiovisual interno. E o circuito se torna arena de hienas onde cada um briga por seu pedaço da carniça com as habilidades e privilégios que detém, colocando de lado a necessidade de uma articulação política coletiva para enfrentar o espólio do mercado interno pelo estrangeiro. As leis que estruturam esse mercado prometem nos tapar do escaldante sol no deserto neoliberal do mercado audiovisual, mas a verdade é que elas não passam de uma maliciosa peneira.

O enunciado que reinou no debate “Cinema em reação, cinema em reinvenção: circulação e visibilidade” da 20ª Mostra de Tiradentes deste ano foi exatamente: “faltam públicos interessados no cinema brasileiro”. Em contraponto a isso, me pergunto se também o cinema brasileiro está realmente interessado no público, mas essa reflexão deixarei pra fazer num próximo texto, com mais rigor e oportunamente. Gostaria de me ater agora no sentido paternalista sob o qual irrompe, com ardor, o pensamento intelectual da gente do cinema no Brasil. Esse pensamento elide uma reflexão que é importante fazer: no contexto latinoamericano, cuja herança subdesenvolvida nos legou uma imensa desigualdade dentro do mercado interno, a “emancipação” do espectador encontra o seu significado na alforria, uma prática consagrada culturalmente e ensejada pela boa consciência dos intelectuais colonizados dos séculos destas terras. Sendo assim, o espectador é colocado numa nova paisagem do capitalismo em que a exploração se configura noutras configurações. A ilusão da escolha é o mote do consumo para as mesmas mercadorias de sempre. Nesse sentido, a que serve culpar o espectador pela deficiência da dinâmica de distribuição da produção cinematográfica nacional (do mesmo modo como se culpam os cidadãos pela eleição de um político reacionário ou conservador para gerir uma cidade, um estado, uma nação?) ao mesmo tempo que o emancipa dos regimes de representação arcaicos que se pretende derrubar?

Falou-se muito da qualidade da produção dos filmes, qualidade essa reunida no seleto grupo dos filmes exibidos na Mostra, mas em que está apoiada essa concepção de qualidade? Além do enquadramento estético forçado pelo editais aos projetos, o padrão de qualidade é evidentemente seduzido pelo espetáculo da famigerada indústria cultural, servindo de exemplo e preenchendo o deserto da linguagem dos artistas e dos públicos latinoamericanos, produzindo um desejo por se lhes assemelhar em forma e conteúdo. O quão importante é reavaliar o papel dentro dos cursos, academias e oficinas de cinema, por exemplo (que são uma parte legitimada do incentivo à profissão), para o tipo de disposição que os estudantes tenham na produção fílmica? Ao redor dessas questões, pululam um contingente de novos cineastas que só conseguem pensar projetos de realização de um filme em determinadas condições de produção preestabelecidas por uma cartilha, uma fórmula, uma receita de modos de produção ideal e inalcançável.

A fantasia de uma produção fílmica que se vê nos makingoffs dos filmes de sucesso (sejam eles "comerciais" ou não), produzidos com o triplo de dinheiro do que os filmes brasileiros independentes mais caros da última década, a megalomania do maquinário, perseguindo às cegas a tecnocracia das produções, planejam-se filmes como quem apresenta um trabalho de powerpoint de um MBA desses no atacado ou mesmo como quem participa de um pitching, assume-se que se esteja a discutir estética ao opinar sobre o belo, adulam-se cineastas burgueses entrados e saídos e mergulhados nos mais diversos impérios do entretenimento. Na universidade, por exemplo, não há nenhuma discussão sobre o cinema inserido no contexto das relações de produção entre o capital e as sociedades, as pessoas parecem ignorar o posicionamento delas em relação ao cinema, o papel que terminam por exercer na compulsão estrutural que move o capitalismo em sua grande marcha do mundo rumo à barbárie, proporcionada pela ensandecida corrida pelo poder, pelo lucro e pela tolice insone da razão. Imaginam-se para além das nomenclaturas que possam amalgamá-los e identificá-los às classes e à histórica espoliação segundo as várias transformações do capitalismo ao longo do desenvolvimento de uma sociedade “civilizada”. As reflexões sobre a indústria cultural que concernem à produção cinematográfica e ao debate sobre políticas públicas tergiversam sobre os aspectos políticos e da luta de classes em que essas questões estão implicadas. Na ânsia por se tornarem “artísticos”, cineastas evitam serem comparados a trabalhadores. Por outro lado, como dizia Glauber Rocha, “o artista é o operário da cultura”. Entender isso é o primeiro passo para começar a lutar contra a captura pela máquina do mundo que nos reduz a óleo para a lubrificação de suas engrenagens, código sistêmico, algoritmo binário, pilha de papel, cifra, moeda, contingência.

A narrativa progressista no cinema brasileiro impede que vejamos a situação do mercado de maneira mais clara e distinta. Os festivais são o marketing dos filmes (como sinceramente salientou o crítico Pedro Butcher no debate em questão, em tom de uma constatação pesarosa e dosada de apatia). Os filmes saem dos festivais e passam pelo gargalo das pequenas distribuidoras nacionais ou escoam diretamente para os festivais internacionais, para só então, com novas medalhas no peito, atenderem à demanda publicitária necessária para a atroz disputa do mercado interno, que já encontram dominado pelo espetáculo encarecido e pela necessidade da sensação de evento que este proporciona ao público. Além de exigir um padrão técnico de exibição e de filmes dentro dos moldes desse mercado, os preços dos ingressos são elevados em função da lógica da demanda/quantidade de salas/expectativa de consumo. No entanto, na disputa pelo tempo de tela nas salas comerciais, os filmes brasileiros já largam perdendo feio, pois os fatores que levam a cativar o público são inúmeros e desiguais em relação a produções estrangeiras e todo o seu aparato produtivo, distributivo e publicitário. Desse modo, os exibidores, rendidos pela necessidade do lucro e de manutenção dos espaços, reservam pouco espaço para as produções nacionais e ainda delas exigem um esforço desproporcional para angariar público, em meio às condições econômicas na qual o cinema brasileiro está circunscrito em seu mercado interno. Cavi Borges foi preciso em relação a essa situação: não é o preço do ingresso, um ator famoso, o selo da Globo Filmes, o montante de dinheiro para lançar e fazer publicidade, que vão garantir a visibilidade em larga escala de filmes brasileiros. Nem sequer os grandes sucessos atuais de bilheteria atingem números significativos que possam fazer frente ao banquete no qual se lambuzam as empresas estrangeiras. No entanto, ainda se considera sinônimo de fracasso não ter o respaldo dessas características que poderiam alavancar individualmente as produções ao sucesso.

Por que então o público não vai ao cinema para ver filmes brasileiros? Existem muitos caminhos possíveis para se responder a essa pergunta. Mas acredito que aquele que, ao pensar, procura a solução dos problemas é o mesmo que quando vai a um pai-de-santo pede que lhe traga o amor em três dias. Ao invés disso, Cavi empreende uma reflexão sobre as alternativas que proporcionam autonomia e permitem a reinvenção do modo de difusão do produto audiovisual brasileiro diante dos meios disponíveis. Cavi propõe que se comece a levar em conta a importância de outros canais de exibição, através de outros formatos e plataformas como VOD, TV aberta e paga etc. Porém, mais importante do que isso (já que todas essas plataformas também estão sujeitas às frágeis leis que entregam na concorrência o mercado interno aos estrangeiros), Cavi nos conclama a pensar justamente uma dinâmica colaborativa entre redes de exibição independentes, que fortaleçam e experimentem novos mercados internos, uma rede politicamente articulada, que entenda as suas ações como polinizadoras de novos comportamentos do público diante dos produtos brasileiros, e que enxergue as consequências dessa articulação em nível nacional. O seu horizonte poderia ser uma virada autêntica e audaz no mercado interno. Aliado a isso, ele demonstra essas estratégias em seu próprio comportamento, ao chegar ao debate com a sua “quitanda” de DVDs, ao contar como faz reviver a “Lei do Curta”, mediante o enxerto de um curta-metragem em fluxo contínuo na duração de um longa (como um "prólogo"), quando vende a um exibidor sem ele saber que está comprando dois filmes ao invés de um. Em suma, hackeando o sistema e transportando a luta do cinema brasileiro para uma postura mais radical quanto aos métodos de sua execução.

No entanto, Cavi parece ser o único que — diante de um otimismo em estado de desencanto capitaneado pelo próprio presidente da Ancine — emprega um discurso alegremente pessimista. Pensar como cada filme pode ser publicizado e divulgado é pensar em como os filmes podem dialogar com o público (estendo isso também para os modos como os filmes são produzidos) e não só como o público dialoga com o cinema brasileiro. A insistência numa postura paternalista do pensamento intelectual no cinema está, a seu passo, evidentemente explicitada na fala de Eduardo Valente. Ele acredita que o problema de distribuição dos filmes nacionais não é só um problema brasileiro e sim de todas as nações — com razão, é mesmo. Mas a razão é rasinha. Dessa maneira, se recorre às políticas públicas bem sucedidas de países como a França para servir de parâmetro para uma solução para o caso brasileiro. É preciso não esquecer que os países outrora tidos como "desenvolvidos" fortaleceram as suas políticas e indústrias nacionais escorando-se ao mesmo tempo na proteção de seu mercado interno e nas práticas imperialistas dos mercados externos (sob outra perspectiva, o mercado interno alheio) — um exemplo disso, fora do contexto cinematográfico, porém muito característico de uma política de Estado predadora e exploradora das desigualdades políticas e econômica entre países ricos e pobres, pode ser encontrado em como a Europa pôde renovar a sua política de transportes, ao promover o uso coletivo de bicicletas, apoiando-se num pacto com as indústrias automobilísticas que tinham seus lucros garantidos através da exploração da mão de obra e dos mercados estrangeiros por elas dominados (e assim a política internacional se repete sucessivamente em todos os setores do Estado, inclusive o dito “setor” da Cultura). O Brasil não pode tomar sem vírgulas o exemplo das políticas públicas europeias (com ênfase dada por ele na França) porque essas políticas funcionam detrás do véu de uma imensa retaguarda de indústrias e empresas distribuidoras de filmes, cujos lucros estão de partida garantidos graças à exploração sistemática do mercado alheio. Quando se pensam as políticas públicas no cinema no Brasil, é preciso levar em conta as suas especificidades, suas coordenadas históricas, os fatores internos e externos de articulação de mercados e públicos, que se sobrepõem na globalização desigual do século 21. Mas parece que Eduardo leva em conta isso no seu argumento (mesmo que seja um argumento ingênuo ou às avessas), apesar de que, num primeiro momento, parece ser estimulador a busca de soluções originais. Com o intuito de tornar as ações pragmáticas mais fáceis na política pública do cinema brasileiro, Eduardo insiste em enxergar a produção nacional como um nicho, que precisaria ser cuidado em sua própria safe zone, desse modo assegurando a centralização da produção e difusão nacional (ideia compartilhada também por Manoel Rangel), ao invés de uma política não tanto de centralização, nem tampouco de descentralização sob um mero disfarce democrático, mas sim cocriativa e produtivamente colaborativa, espraiada em todo o território nacional, que encontrou a sua mais paradigmática iniciativa recente nos PdCs implementados por Gil.

Porém, noto certo pragmatismo na fala de Eduardo, quando desconsidera a imensa diversidade em prol da manutenção conservadora de um nicho brasileiro. Com isso, se corre o risco de abraçar insuspeitadamente a lógica predadora estrangeira, sentando-se à mesa de negócios e aceitando os seus termos. Ou melhor, a perpetração do conceito de diferença implícito no discurso da diversidade da produção nacional acontece na mesma medida da consumação do conceito de indiferença diante dos problemas de produção, distribuição e divulgação que inviabilizam uma produção da diferença. É o contraste do conceito de diferença como mero produto num mercado ecleticamente diferenciado e a diferença enquanto produção, capaz de impactar as condições de reprodução do idêntico na forma e nos modos de produção. Questionado sobre se a formação de público e a criação de um interesse em larga escala do público pelo cinema brasileiro deveria passar por um debate sério sobre a educação audiovisual nas escolas, Eduardo Valente ressaltou novamente o exemplo francês, citando o trabalho pedagógico lá realizado. Disse que tudo o que havia sido discutido até o presente momento naquele debate, em termos de legislação e proteção do mercado interno, era "mero paliativo", uma tentativa de curar a doença (problema de distribuição e interesse do público pelo produto audiovisual brasileiro) ao invés de preveni-la, que nada disso funcionaria sem um trabalho sério de formação de público desde a infância, em escala nacional.

Em princípio, o raciocínio parece coerente, mas com um certo esforço para ir mais além na elaboração crítica vê-se que mesmo aí reside a ideologia pater-desenvolvimentista que permeia todo o pensamento intelectual progressista na política brasileira, inclusive do audiovisual. O complexo subdesenvolvimentista não permite que ultrapassemos a lógica idealista, que defende a nacionalização do que é nativo e ao mesmo tempo o neoliberalismo como ponta de lança para o crescimento econômico. O problema não reside sequer na coerência do raciocínio intelectual dos críticos e cineastas brasileiros e sim na metáfora que o exprime. Antagonicamente a isso, proponho que refaçamos o caminho que levou a ela: uma autêntica política pública para o cinema brasileiro precisa pensar as suas estratégias não como se curassem a doença nem como se a prevenissem; é preciso abandonar o niilismo no cinema e, como falava Zaratustra, “curar a cura para vivermos a sublime doença”, a potência criativa de reinventar os modos de lidar com o mercado brasileiro herdado de um contexto terceiromundista que não para de repercutir as suas consequências nos dias de hoje. Ou seja, ainda vivemos as consequências do subdesenvolvimento ao qual fomos forçados por fatores internos e externos, de formação nacional, de estilo de desenvolvimento e do tipo de globalização, em nome de uma ambição por desenvolver-se à maneira dos países que, no século passado, eram classificados no "primeiro mundo". Com isso, abandonamos aquilo que deveria ser encarada como a nossa potência política mais transformadora, a capacidade de enfrentar a realidade miserável em que vivemos devorando-a como estética (como na Eztétyka da Fome), para repor diante das várias colonizações políticas e culturais a nossa própria doença tropical como horror e violência, e não paralisia e conformismo aos valores recebidos. Em outras palavras é preciso curar-se de todas as fórmulas que buscam despotencializar a carga de criatividade característica de nossos problemas e de nossa gente e metabolizar os sintomas da doença em um novo corpo do cinema, que seja linha de fuga diante dos complexos de decadência e mesmice do panorama internacional e a sua disputa predatória de mercados alheios.

Em nome de uma luta contra um retrocesso que para muitos parece ter se revelado no ano de 2016, depois que o sistema antidemocrático do cinema brasileiro deu claros sinais de ter sido comprometido em sua produção, e diante do anúncio de uma política de continuidade austera e reacionária por aqueles que forjaram a tomada de assalto do poder Executivo brasileiro, outrora apenas conservador, a comunidade cinematográfica brasileira clama pela continuidade de seus é-de-tais nas mesas de debate dos fest-e-vais. Um medo generalizado enseja a narrativa de uma “buena onda” atribuída às políticas públicas da Ancine e anseia por conservá-la como meta. Unidos sob o signo do nicho, enredados nos sucessos individuais, desmobilizados politicamente em detrimento de um posicionamento autônomo do cinema contra o paternalismo do Estado, a unidade que tanto se deseja no cinema brasileiro aparece submetida pelo emblema que tomou conta das pautas progressistas pós-impeachment: “cinema brasileiro pela democracia”. Mas para que haja um entendimento claro e distinto do que diferencia um posicionamento condescendente de outro radical, no que concerne a defesa de nossa economia e política cinematográficas, proponho uma reformulação do grito para que seja verdadeiramente de guerra: “pela democracia no cinema brasileiro”.

Sou grato a Guilherme Cavalcanti e Bruno Cava pela leitura e generosa colaboração neste texto.

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