Os futuros que não aconteceram

k-post punk
<mil_brechas>
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15 min readFeb 8, 2017

Conversa introdutória entre os organizadores do livroPost-Punk then and now” [Pós-punk na época e hoje] (org. Gavin Butt, Kodwo Eshun e Mark Fisher, Londres: Repeater Books, 2016. pág. 3–15.

Gavin Butt: Organizamos esse ciclo de debates porque nós compartilhamos o mesmo interesse em arte e música pós-punk e na época que lhes deu vida. Dado que existe relativamente pouco trabalho acadêmico sobre o período, pensamos que seria uma boa ideia juntar uma série de eventos em Goldsmith envolvendo conversas entre músicos e artistas pós-punks, junto com algumas novas vozes críticas no assunto. Uma das questões que brotaram assim que começamos a pensar em fazer isso foi: por que pós-punk hoje? por que nós três estamos interessados no pós-punk nesta particular conjuntura histórica? E por que, já que tantos de vocês compareceram hoje, esse período relativamente curto na história cultural é de interesse para vocês também? Então pensamos que tentaríamos responder a essa questão hoje, ou pelo menos começar a respondê-la de um modo rudimentar, por meio de uma conversa a três, antes de abri-la para o debate.

Penso que me tornei consciente do fato que o pós-punk havia começado a ocupar os meus pensamentos nos últimos anos na medida em que comecei a refletir sobre a cena pós-punk na cidade de Leeds, ao norte da Inglaterra, onde cursei o meu doutorado na universidade. Lá ocorreu uma cena muito dinâmica e interessante que precedeu a minha chegada, de que eu conheci apenas o fim da linha, e que ainda estava no ar, digamos, no final dos anos ’80, quando estudei lá. Mas, antes disso, eu era também um fã e um seguidor de muitos dos eventos pós-punks em diferentes cidades pelo Reino Unido e além. Olhando para trás, eu acho que comecei a avaliar o impacto formativo desse período em meus valores políticos e estéticos, assim como nas minhas preocupações maduras culturais e intelectuais. Descobri, praticamente por acaso, que outros professores amigos meus — Jennifer Doyle, da Universidade da Califórnia, e o último José Muñoz, ex-professor em Estudos da Performance na Universidade de Nova Iorque — também, quase independentemente, começaram a pesquisar sobre o punk e o pós-punk mais ou menos no mesmo período. Uma vez que somos — ou éramos — todos na faixa de idade dos quarenta anos, talvez não seria irrazoável responder à questão “Por que pós-punk hoje?” dizendo que é uma coisa de meia idade, e que o nosso interesse nele se explica como expressão de uma nostalgia geracional, de nós gozarmos do prazer de retornar à cena primeva de nossa juventude. Estou certo que já se falou bastante isso. Mas eu sei que Mark, Kodwo e eu não estamos felizes em deixar que a explicação pare por aí — em grande parte porque entender um “retorno” ao pós-punk como simplesmente nostálgico obscurece qualquer exploração possível das condições específicas de criação, e naturaliza o interesse nele em estágios normativamente entendidos do ciclo de vida de um indivíduo.

Outro modo de ver as coisas poderia dizer que apenas agora o pós-punk parece, como um período, remoto o suficiente em relação ao nosso momento atual para nos permitir uma boa posição para voltar a ele e entendê-lo historicamente. Dado que as condições de possibilidade cultural na época parecem tão remotas, tão marcadamente diferentes daquelas de nosso presente neoliberal, talvez somente agora que nós fomos tão longe que podemos melhor apreciar exatamente o quão diferente tudo era.

Para aqueles que não conhecem, o período pós-punk é usualmente caracterizado a partir do final dos anos ’70 até meados dos ’80, geralmente de 1978, que é o ano do racha do Sex Pistols. E vai até 1984 ou 85, que neste país, claro, assistiu à greve dos mineiros e a derrota final deles, com os mineiros se arrastando de volta ao trabalho para enfrentar um futuro incerto. Esse era o futuro que, de várias maneiras, é hoje o nosso presente, a realidade neoliberal. Mark, no livro dele Ghosts of my life [“Assombrações de minha vida”, Zero Books: 2016] tem muito a dizer sobre os futuros do pós-punk, os futuros que os artistas e músicos pós-punks anteviram, e como tais futuros imaginados têm sucedido hoje. O seu livro é uma exploração sustentada do que certa vez era — no pós-punk — uma capacidade cultural pronta para orientar-se por visões raciais do que ainda poderia vir.

Talvez eu me dirija primeiro a Mark, para perguntar sobre algumas observações. Seria isso — a imaginação de um futuro alternativo — o que você pensa ser o mais difícil em tempos contemporâneos? Você poderia falar um pouco sobre o que você valoriza ao voltar a olhar para aquele período com os olhos de hoje?

Mark Fisher: Penso que a primeira coisa a dizer é que, de certa forma, é um mau sinal o fato que estamos interessados no pós-punk no jeito que estamos. Quando entramos, ouvimos uma faixa de Fad Gadget — e não nos soou como algo de 30 anos atrás. Trinta anos atrás se estivéssemos no período pós-punk levariam você a 1948 ou 49, para algo como Glenn Miller: quem sabia qual era a música de 1948 e quem estava particularmente interessado nela no final dos anos ‘70? Certamente, qualquer um que realmente ouvisse a música do final da década de ’40 não sentiria como se ela pertencesse a seu próprio momento na década de ’70. Mas eu penso, diante de tantos exemplos do pós-punk, somos confrontados com algo que sentimos ser-nos inquietantemente contemporâneo.

Gavin Butt: Em que sentido, Mark?

Mark Fisher: O pós-punk simplesmente não nos parece ultrapassado. Ironicamente, boa parte do pós-punk talvez já soasse desatualizado em 1983, mais do que hoje parece, porque desde então ocorreu um achatamento do tempo cultural. O pós-punk é um exemplo do que nós viemos a chamar de modernismo pop. O princípio detrás do pós-punk foi a ideia modernista-pop que você não pode repetir as coisas, você não pode usar formas que se tornaram kitsch — e a inovação de ontem é o kitsch de hoje. Então o pós-punk foi movido pelo princípio da diferenciação e autocancelamento; um constante direcionamento para o novo, e uma hostilidade contra o ultrapassado, o já existente, o familiar. É por isso que Simon Reynolds chamou o seu livro sobre o pós-punk de Rip it up and start again [“Rasgue tudo isso e comece de novo”, Penguin: 2005, tradução da introdução aqui]. Eu acho que o que estou dizendo é que a hostilidade contra o já familiar enfraqueceu a ponto de ter desaparecido. Nós não podemos ser hostis ao passado da maneira que o pós-punk o fora, porque nós não temos mais o mesmo senso do presente ou do futuro.

Gavin Butt: Posso insistir um pouco neste ponto? Porque eu penso muito sobre o que você disse e é bastante inegável em termos do experimentalismo disseminado da música pós-punk. Porém, se nós pensarmos talvez sobre o Talking Heads ou Throbbing Gristle, o velho dictum de Karl Marx sobre a “tradição das velhas gerações” pesando “como um pesadelo a comprimir o cérebro dos vivos” me parece pertinente, não acha? Que é dizer que por mais radicalmente novas essas bandas possam ter soado lá atrás, hoje por vezes eu acabo nelas ouvindo um retrabalho de momentos musicais ainda mais antigos. Por exemplo, o Throbbing Gristle retrabalhando a psicodelia dos anos ’60 em várias maneiras. Fico pensando sobre o que você disse, se para você o que chama de “modernismo pop” não seria realmente uma forma de pós-modernismo — com o seu habitual replay do passado?

Mark Fisher: Mesmo o alto modernismo era baseado no retrabalho; todas as formas de criatividade que existem se originam no retrabalho. Com o declínio do modernismo pop, no entanto, nós cada vez mais vemos retrabalhos do já existente apresentados como se fossem novos. Nenhuma cultura emerge ex nihilo, nada pode vir do nada, sempre haverá uma relação com o passado; a questão está no tipo de relação estabelecida, se é uma relação passiva em que está em jogo meramente uma imitação ou repetição, ou se é uma relação ativa onde se dá um tipo diferente de repetição. Tome o exemplo do Throbbing Gristle. Sim, o Throbbing Gristle claramente remontava as suas referências até a psicodelia dos anos ’60, mas a música deles não soa como uma psicodelia dos anos ’60. O pós-punk dependia de um conjunto de balizas, com frequência eram regras implícitas, porém bem claras, sobre o que era aceitável. Penso que parte da razão pelo que faz sentido descrevê-lo como pós-punk, é que essas regras haviam sido inicialmente escritas pelo punk, e musicalmente essas eram regras bem chatas. Punk no final das contas é apenas uma forma de rock bastante despojada, mas o deslocamento ao pós-punk não envolveu uma simples desconsideração dessas regras, ele envolveu uma renegociação constante. Nunca foi o caso no pós-punk de “vale tudo”, havia uma luta constante sobre o que era aceitável e o que não era. É fácil esquecer o quanto esses confinamentos eram ferozes.

Kodwo Eshum: A ideia das balizas é realmente importante. Quando você olha para os músicos ou cineastas pós-punks hoje, esse é o aspecto que eles mais são apologéticos. Aprenderam a envergonhar-se daquelas posturas que muito frequentemente são descartadas como politicamente correto. O pós-punk foi um projeto amadorista e autodidata que criou um contexto para apostar em sua própria incapacidade, em vez de apostar no preparo ou na habilidade. Daí emerge um impulso na direção da auto-homologação em que as pessoas fazem as regras ao longo do caminho. Uma das regras reelaboradas foi a própria ideia de uma banda de rock, sua dinâmica de vínculo masculino, sua mentalidade de gangue; você pode ouvir e ver essas noções chegando sob pressão e se desmembrando de várias maneiras. Green Gartside do Scritti Politti disse que queria fazer uma música que fosse tão incerta e insegura quanto ele se sentia. O pós-punk inventou modos de dramatizar essa incerteza.

Gavin Butt: A ansiedade pertence à atividade cultural porque, precisamente, quando o punk morre ao se tornar nada mais do que outro negócio da indústria do rock — talvez já em 1977, mas em 1978 certamente no Reino Unido — isso simplesmente faz a música deixar de ser o limite necessário do horizonte cultural de alguém. O que abre as portas à ansiedade de trabalhar potencialmente para além da música — por vezes sem nenhum sentimento de competência — e atingir outras formas do fazer artístico, como a performance ou o cinema, ou mesmo outras atividades. Green Gartside, por exemplo, se deixou levar por suas leituras de teoria crítica, de Gramsci ou Derrida — por sua prática intelectual — que ele já mantinha ao escrever a letra de uma música ou improvisar um riff de guitarra. Para além de um estilo específico de música — discordante, guitarras angulosas, ou música eletrônica, paisagens sonoras industriais — o pós-punk pode ser mais amplamente caracterizado como uma criação dentro de um conjunto permissivo de novas conjunturas entre as disciplinas e mesmo as instituições.

Lydia Lunch lembra o movimento No Wave em Nova York como sendo “o tecido conectivo onde a divisão cultural entre arte, filme, música e literatura foi cauterizada, produzindo um hospício vasto, parte Teatro da Crueldade, parte Grand Guignol, todo Dadá, todo o tempo.” Adoro o drama gótico disso! O pós-punk então foi um tipo de parque de diversões cultural expandido onde você colocava a sua sanidade em risco, ou pelo menos a probabilidade de ser visto como perturbado pelos guardiães culturais, quando você decidia fazer a sua própria coisa idiossincrática. Pegando emprestado elementos da arte, do cinema, da teoria crítica, ou o que você tivesse à disposição — tudo isso permitia uma reimaginação ou uma reabitação da esfera pública, misturando as coisas de maneiras a moldar visões alternativas.

Mike Fisher: O ponto sobre uma esfera pública alternativa é importante. Quando eu entrevistei Mark Stewart do Pop Group, ele disse que eles queriam ser uma “explosão no coração da mercadoria”. Eles não se tornaram realmente um grupo pop e certamente não foram os Beatles. Mas apesar disso essa ambição exagerada prometeica, essa insatisfação em estar confinado às margens, era crucial para o pós-punk.

Outra dimensão daquela esfera pública foi o jornalismo musical tal como foi moldado pela cultura pós-punk. Provavelmente, o fator mais importante que me faz estar sentado aqui hoje foi o jornalismo musical do começo dos anos ’80. Ele foi a razão pelo qual eu me interessei por teoria e filosofia, ao acompanhar as páginas da revista New Musical Express (NME), e esse é outro contraste revelador em relação a hoje. No começo dos anos ’80, seus escritores mais importantes eram autodidatas que não tinham ido à universidade, mas que de qualquer modo tinham embarcado no pensamento pós-estruturalista e alardearam-no nas páginas de uma publicação sobre música que então circulava às centenas de milhares de exemplares por número. Havia uma espécie de contágio do autodidatismo, e o jornalismo musical participava no que na verdade era um sistema educacional alternativo. Jon Savage compara a cultura musical a um portal: um álbum, um single pode ser a fronteira para outros mundos. Existe todo tipo de referência, de recortes, na capa da revista — sejam alusões ao cinema europeu ou à teoria, literatura, à ficção de J.G. Ballard ou a William Burroughs, que foram as maiores influências do pós-punk, aliás, mais influentes do que qualquer referência musical específica.

Parte do que compôs essa cultura antes pop-modernista do que populista, foi o quanto ela acolheu a dificuldade. Ela não fazia imediatamente sentido, as referências não eram explicadas a você, e se quisesse participar, você tinha que se elevar até chegar à altura do desafio.

Gavin Butt: A ironia nisso tudo é que, embora o pós-punk fosse uma atividade do tipo do it yourself (DIY) e permissiva, um monte de artistas pós-punks frequentaram escolas de arte para aprender a serem artistas profissionais. Esse é um paradoxo realmente interessante para brincarmos. Porém, talvez isso não seja certo. Talvez as pessoas não quisessem ir à faculdade para tornarem-se profissionais de alguma coisa. Na medida em que venho pesquisando o pós-punk, tenho percebido que algumas pessoas iam às escolas de artes para formar bandas. Era a razão principal para irem. Não para se tornar um pintor famoso. Como Simon Frith e Howard Horne sugerem, a escola de arte era o lugar certo se você quisesse obter uma bolsa, um modo de contar com o governo para bancar os custos e aí durante três anos você poderia fazer o que bem entendesse. Dado o modelo laissez-faire de algumas faculdades de arte, você não tinha necessariamente que prestar contas ao seu tutor acadêmico nem aparecer no ateliê. Era realmente uma época bem diferente. Parece bastante distante da educação inteiramente instrumentalizada de hoje em dia. Especialmente dadas as recentes mudanças das regras de financiamento da educação superior neste país, os estudantes hoje estão submetidos a uma pressão muito maior para que se concentrem em iniciar uma carreira e usar o tempo na universidade para depois conseguir um bom emprego. Isto se deve, principalmente, porque a educação hoje se tornou uma mercadoria cara, e se é compelido a buscar um retorno financeiro pessoal em relação ao investimento nos estudos. Me pergunto se ir a uma faculdade de arte nos anos ’70 ou ’80 para formar uma banda descortinava as possibilidades de uma atividade coletiva — tanto criativa quanto política — que hoje seria vedada pelo ethos individualizante que prevalece.

Kodwo Eshum: Uma banda é um coletivo muito específico, tão familiar aos modernismos do século passado, para acelerar e miscigenar a tradição dos movimentos artísticos. A banda implica uma capacidade de manter uma espécie de mentalidade interna de maneira que diferentes teorias, romances, artes, tudo isso junto, sejam metabolizados, dramatizados, até serem esculpidos como uma atitude existencial. Citar um teórico ou romancista é uma coisa, outra bem diferente é criar uma atitude nova através dessas citações. Como você constrói essa atitude envolve um vocabulário, um gestuário, o modo como você segura o cigarro, tudo isso é bastante importante, mais do que entrevistas e letras de música.

Era fascinante, quando você olha o período de 1978 a 1983, como os ressentimentos geracionais daquele tempo miraram nas instituições de bem estar social que sustentavam a experimentação. As pessoas dessa época não eram gratas ao Partido Trabalhista pelo sistema de welfare. Ao contrário, elas se lhe opunham, amiúde antagonicamente. O pós-punk, pelo menos no começo, não atacava o Partido Conservador. Atacava sempre o Partido Trabalhista e o sistema de welfare. The Song of the Shirt, de 1979, começa com uma discussão sobre o welfare. A câmera se desloca na direção de uma tela de tevê na mesa de um café onde mostra uma mulher falando sobre o welfare. Ela diz que não vale a pena trabalhar porque ganharia mais dinheiro inscrevendo-se no programa de auxílio desemprego. Só que ela não se inscreve porque não suporta a entrevista do programa. Então, presa num subemprego, decide deixar o seu marido para obrigá-lo a pagar uma pensão para ela e seus filhos. Que homem, ela pergunta, aguenta algo assim? Essas insatisfações animam The Song of the Shirt que então volta aos anos 1840, para entender as condições em que surgiu o welfare. Mas três anos antes, na conferência anual do Partido Conservador, George Osborne prometeu cortar as bolsas para a família e moradia, dizendo que não era justo que famílias trabalhadoras ganhassem menos do que as beneficiárias dos programas sociais. Entre os argumentos feitos por Osborne e aqueles de The Song of the Shirt, há uma continuação que é causada por uma série de razões, por uma série de formações políticas.

Mark Fisher: Isso aponta para a relação problemática entre boa parte da esquerda organizada e a contracultura que remonta aos anos ’60. Ninguém descreveu melhor esse vínculo do que a crítica Ellen Willis. Ela fala da frustração que sentiu, uma incompatibilidade entre o tipo de desejos que eram articulados e propagados pela contracultura, e a política majoritária da esquerda, que ela sentia ser autoritária e burocrática. Estamos assombrados pelo fracasso da esquerda em encontrar um arranjo possível com as energias libertárias que vêm da cultura musical. Em vez disso, a direita absorveu e converteu essas energias da contracultura em seu próprio projeto de reindividualização. Em retrospecto, podemos ver os anos ’80 como o momento em que isso aconteceu, quando as coisas já não tinham mais volta: foi o período em que o neoliberalismo assumiu o controle. Você pode dizer que o fim definitivo do pós-punk se deu com a derrota da greve dos mineiros (1984–85). Igualmente, o ponto de vista privilegiado que agora temos nos permite dizer que as coisas contra o que o pós-punk se mobilizou, tais como o welfare state, eram realmente partes das condições de possibilidade do próprio surgimento da produção cultural pós-punk. Ninguém na cultura pós-punk que tinha mirado na esquerda queria a solução neoliberal que terminou sendo apresentada. Mas ao mesmo tempo isto não tem a ver com fetichizar a celebração da democracia social como uma forma política ideal. Parte do que nos assombra no pós-punk era um tipo de esquerdismo antiautoritário, um esquerdismo libidinal, que poderia se envolver com o tecido desejante da cultura do estilo. Esse tipo de esquerdismo apenas surgiu fragmentariamente.

Gavin Butt: Seria interessante processar todas essas questões com Agata Pyzik, que vai compartilhar o seu pensamento a respeito do punk e do pós-punk na Polônia. Claro que as condições políticas de existência da cena polonesa eram bem diferentes das de um governo trabalhista claudicante no Reino Unido, seguido pelo desenfreado thatcherismo a partir de 1979. Lá, existia uma ditadura militar e depois nos anos 80s, o comunismo autoritário. Com Agata, podemos começar a pensar as condições do pós-punk fora do contexto mais usual anglo-americano, e mesmo fora da democracia ocidental. Vamos continuar a ver isso na conversa com Bruno Verner e Eliete Mejorado sobre o pós-punk no Brasil em meados dos anos 80, no período do esfacelamento da ditadura militar e da emergência de novas resistências. Eu quero falar com eles sobre como a música pós-punk pode ser entendida como parte integral de uma frente cultural organizada muito mais abrangente, sem um líder em específico, como um tipo de movimento libertário transversal. Mas eu acho que o que mais nos persegue em todas essas conversas é o caráter político do pós-punk, o fato que ele aconteceu antes da queda do muro de Berlim (1989). A Guerra Fria estruturou as alternativas a este ou aquele regime político ou sistema econômico, e se infiltrou nos imaginários futuristas pós-punks, de um modo que hoje fica difícil de recordar — como você alude em seu livro, Mark.

Talvez possamos nos voltar a algo ligeiramente diferente antes de fecharmos esta primeira conversa: a historicização do pós-punk. Um dos livros-chave sobre o assunto é Rip it up and start again, de Simon Reynolds, publicado em 2005. Mas eu sei, Kodwo, que você está pensando sobre como a historicização do pós-punk não está realmente acontecendo tanto no jornalismo musical, e muito menos na literatura acadêmica, mas mais recentemente na própria blogosfera.

Kodwo Eshum: Rip it up and start again foi publicado por volta do ano de 2004. Nesse mesmo período, a blogosfera começou a agenciar alguns escritores, como Mark Fisher sob o codinome k-punk, Matt Ingram o Woebot e muitos outros, cada qual analisando o pós-punk com uma atenção e uma ambição não vistas desde os anos ’70. No contexto da rede discursiva da blogosfera, essa discussão não era nostálgica. Ao contrário, era urgente e necessária. O que está em jogo hoje, mais de dez anos depois? E porque a escrita sobre o pós-punk de então era mais estimulante do que a maioria dos discos neo-pós-punks, como o LCD soundsystem ou The rapture? Porque um novo modo de escrita online era antes teórico do que filosófico, porque circulava fora da academia, porque criava uma conversa coletiva e simultaneamente funcionava como especulação libidinosamente carregada. As discussões online sobre o pós-punk foram além da discussão sobre o cânone. Um pequeno número de escritos exerceu uma influência massiva ao inventar novos vocabulários sobre a música que estava em situação de quarentena em velhas revistas. Um novo quadro de referências foi criado que zerou os termos para a análise do momento do pós-punk.

Gavin Butt é professor da Universidade de Sussex, autor de Between you and me: queer disclosures in the NY Art world (2005).

Kodwo Eshum é fundador do coletivo The otolith group, autor de More brilliant than the sun: adventures in sonic fiction (1998) e Dan Graham: rock my religion (2012), é professor de Teoria Contemporânea da Arte na universidade de Londres (Goldsmiths).

Mark Fisher é blogueiro com o nome k-punk, autor de Capitalism realism (2005) e Ghosts of my life: writings on depression, hauntology and lost futures (2014).

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