Por uma texturologia do poder

k-post punk
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7 min readFeb 1, 2017

Por Renan Porto, comentário a partir do livro Aos nossos amigos, do Comitê Invisível (2015), PDF disponível para download aqui.

Uma questão problemática no livro do Comitê Invisível, Aos Nossos Amigos, é a tendência para um “fora”. A ideia de organizar comunidades autônomas que funcionem à parte dos circuitos capitalistas. Esses agrupamentos podem acontecer de modo intensivo e ter uma funcionalidade estratégica em determinados contextos, como é o caso citado no livro dos acampamentos do movimento 15M na praça Puerta del Sol, em Madri. Porém, é difícil que essas organizações tenham tanta extensividade quanto a dos zapatistas e curdos, a ponto de conseguir manter a sustentabilidade do grupo. No caso dos zapatistas e curdos, existe o elemento territorial como base central da organização. Nos movimentos urbanos, isso é muito mais difícil quando o resto da cidade não compartilha das mesmas ideias e também quer usar aquele espaço de outras maneiras. Cabe também questionar o quanto esses processos são desejáveis já que correm o risco de acabar como localismos, isto é, que não conseguem expandir-se para além da própria localidade. O problema da construção de autonomia hoje não tem como contornar a questão do trabalho e do emprego, que é o cotidiano da vida nas cidades.

No livro Mundobraz (2009), Giuseppe Cocco diz que “organizar a luta (a ruptura do tempo como conquista do porvir) é o mesmo que organizar a produção” [1]. No posfácio que ele escreveu ao livro de Antonio Negri, Marx além de Marx [2], Cocco diz que Negri foi além de si “ao desdobrar a autonomia operária em termos de autovalorização diante de um capital que não mais organizava a cooperação social produtiva, não mais podia fazê-lo, mas apenas a comandava desde fora, de maneira cada vez mais parasitária”. O capitalismo não consegue mais organizar o trabalho como quando disciplinava a produção nos confins das indústrias; os modos de produção vão se reinventando de modo difuso nas cidades (camelôs, designers, prestadores de serviços, empreendedores) e o capitalismo consegue explorar e controlar isso.

No livro O Anti-Édipo (1972), Deleuze e Guattari argumentam que é disso que o capitalismo vive e se alimenta, desses fluxos descodificados de produção sob a forma do capital-dinheiro e os fluxos descodificados do trabalho sob a forma do “trabalhador livre” [3]. Daí a importância do debate suscitado pelo problema do aceleracionismo, principalmente a partir do Anti-Édipo, que coloca esse problema definindo o capitalismo como a produção cada vez mais alargada de fluxos descontrolados e desterritorializados, que no entanto precisa ser contida em sua carga esquizofrênica, devendo assim motivar um movimento com uma mão (desterritorialização) para com a outra operá-lo dentro das margens do controlável (reterritorialização). Outra coordenada do problema do aceleracionismo circunda a produção de tecnologias sociais que cada vez mais podem propiciar dispersão e entropia e menos dependência de centros de produção e concentração financeira, no entanto, as “receitas” dessas tecnologias são privadas. Direitos de propriedade intelectual, por exemplo, são questões que o aceleracionismo têm de enfrentar. A implosão final das enclosures permitiria uma viralização do “faça você mesmo” oriundo da cultura de resistência punk (depois reprocessada pela cultura digital do software livre, pela ética hacker, pela defesa dos commons imateriais) e uma dispersão maior dos centros de produção que também são pontos de condensação de teias de poder, disciplina e valor. O trecho do Anti-Édipo mais citado pelos aceleracionistas aparece na metade final do capítulo 3: “[…] haverá uma via revolucionária? — Retirar-se do mercado mundial […] Ou ir no sentido contrário, isto é, ir ainda mais longe no movimento do mercado, da descodificação e da desterritorialização? Pois talvez os fluxos ainda não estejam suficientemente desterritorializados e suficientemente descodificados” [4].

Os estudos realizados pela pesquisadora argentina Verónica Gago nos ajudam a pensar os processos de construção de autonomia a partir do trabalho da cidade. Ela pesquisou o trabalho dos imigrantes bolivianos nas oficinas têxteis nas periferias de Buenos Aires e o funcionamento do mercado de La Salada (uma grande feira no centro da capital argentina). A partir disso, Gago fala como a organização do trabalho informal e precário, os circuitos distributivos e produtivos atrelados a processos sobrepostos da globalização, as oficinas de capacitação e autoformação, e os empreendimentos sociais nos mais diversos modelos em meio à economia popular, são por si próprios um modo de liberdade produtiva e resistência que disputam a produção de subjetividade nas condições neoliberais, inclusive quando elas se apresentam e se reproduzem dentro dos arranjos neodesenvolvimentistas (em termos de difusão de novas teias de consumo, renda e crédito) [5]. Nesse contexto, não existe mais uma jornada de trabalho fixa e o trabalho vai se confundindo com a própria vida social, cuja produtividade passa a estar atravessada pela lógica da empresa, do empreendedorismo, da eficiência total do tempo empregado na vida-negócio [6]. Percebemos que a racionalidade neoliberal não é tão homogênea e controlada como se fosse uma “nova razão do mundo”, não é tanto uma ideologia superior que manipulasse as mentes das pessoas, mas uma corporalidade inteiramente interna às redes de produção encontradas no chão da feira, das lojinhas, das negociações, dos sonhos de cada um. É nessa disputa de racionalidade que os trabalhadores conseguem construir alguma autonomia para si, no plano das estratégias fragmentárias “desde baixo” (múltiplos e sincréticos rearranjos do tecido existencial) e não de uma contra-hegemonia que procede unitariamente “desde cima” (por exemplo, a Esquerda). É uma questão de pensar mercado e concorrência a partir de outra perspectiva, pensá-los imediatamente como estética da existência continuamente explorada e controlada pelos dispositivos biopolíticos que são as engrenagens do neoliberalismo. “A economia informal tem uma grande capacidade de comércio graças ao impulso popular e, ao mesmo tempo, desafia e compete com os monopólios. É um tecido capaz de amortecer e conter as crises econômicas, e põe outras soluções ao ciclo econômico” (tradução nossa) [7].

Uma grande fraqueza da Esquerda foi sempre focar demais no Estado, na formação de grandes unidades e frentes para disputar uma hegemonia, e não ter um pensamento de mercado, que fizesse a descida antropofágica para as microtexturas da vida cotidiana, o modo como a população se organiza na precariedade, na informalidade, na pobreza, em suma, como constrói seu corpo dentro das exigências, cobranças e dispositivos de gestão da vida. Outras correntes como o mutualismo, anarquismo de mercado, mercados não capitalistas ou anticapitalistas, mercados negros, agorismo, entre outras, são heresias que nos fornecem elementos para pensar isso de outra maneira, mas na maioria das vezes, quando transpostas ao projeto político e organizativo, ainda estão muito amarradas às perspectivas contratualistas e individualistas, baseada em acordos e vontade como se consensos fossem sinônimo de justiça e a autonomia da vontade uma espécie de saúde diante das manipulações e do Poder, com maiúscula. Não é um problema de abolir a noção de indivíduo em favor de alguma totalidade coletivista (criando assim um Indivíduo Coletivo que apenas reedita os problemas do individualismo noutra escala enquanto anula o que o conceito de indivíduo tem de libertário), mas de entrever um mundo povoado não de coisas mas de forças, não de sujeitos mas de potências, não de suportes de ego mas de ligações entre dividuais [8]. E como colocado pelo autor-duplo do Anti-Édipo, “só acreditamos em totalidades ao lado. E se encontramos uma totalidade ao lado das partes, ela é um todo dessas partes, mas que não as totaliza, uma unidade de todas essas partes, mas que não as unifica, e que se junta a elas como uma nova parte composta” [9].

Entretanto, o problema para o pensamento que se propõe libertário e autonomista não é de pensar mercado ou o Estado, um contra o outro, mas ir além dessa velha e pesada dicotomia, cuja retórica dura e anti-pós-moderna apenas esconde a própria impotência e, portanto, seu caráter conservador diante da dominação neoliberal, que hoje lhe suplanta e dá a volta sem dificuldade. As reflexões sobre a produção do comum vão justamente criticar esse falso dualismo entre mercado e Estado, que na verdade é uma simbiose, para deslocar os problemas na direção da produção de subjetividade, das estratégias de si (Foucault), das linhas de fuga (Deleuze). As grandes empresas não só são o próprio braço empreendedor do estado, como se vê claramente no neodesenvolvimentismo das campeãs nacionais, como o Estado (com maiúscula) é o braço político das empresas, mas além disso tudo, a lógica da empresa governa desde dentro do tecido social, toda a sociedade é empresarializada de cima abaixo, das grandes multinacionais que comandam o grande negócio às empresas familiares e precárias do mercado de La Salada, em qualquer metrópole do mundo hoje. Porém, é dentro dessa “sujeira” que a construção do comum e da autonomia social precisam ser pensadas e não fora, não como comunidades alternativas, mas como um alternativismo imanente, ou seja, tendência (Negri). Pensar o comum a partir das texturas de vida que o neoliberalismo organiza e explora. E quando se usa o prefixo “micro” para alguma coisa, como em microfísica do poder, quando se fala no menor, em “tudo é política” com minúsculas, a esquerda não entende mais nada, porque já se apaixonou pelo Estado e pelo Poder.

NOTAS

1 — COCCO, Giuseppe. Mundobraz: o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 93.
2 — http://uninomade.net/tenda/negri-alem-de-negri/
3 — DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 51.
4 — Ibidem, p. 318.
5 — http://www.revistaanfibia.com/ensayo/hasta-que-un-dia-nos-organizamos/
6 — “En principio, cuando se habla de los talleres, clandestinidad se le llama a la yuxtaposición de una serie de condiciones de trabajo de extrema precariedad que mixturan, en un contexto de crecimiento de la economía (tanto formal como informal), irregularidades desde la óptica de la regulación del trabajo formal, contractual, con ilegalidades desde el punto jurídico estricto en situaciones de fuerte indistinción entre condiciones de vida y de trabajo. Sin embargo, las divisiones clásicas entre formal/informal o legal/ilegal ya no alcanzan. La noción de clandestinidad expone una característica más general de las economías sumergidas: una gestión de la mano de obra que excede los parámetros jurídicos y que incluye esferas vitales al interior de un gobierno más amplio del cuerpo y la subjetividad de quien trabaja”.- http://www.revistaanfibia.com/ensayo/progreso-clandestino/
7 — “La economía informal tiene una gran capacidad de comercio gracias al impulso popular y, al mismo tiempo, desafía y compite con los monopolios. Es un tejido que amortigua y contiene frente a las crisis económicas, y le pone otras fechas al ciclo económico” — http://www.revistaanfibia.com/ensayo/hay-para-todos/
8 — Comitê Invisível. Aos Nossos Amigos — Crise e insurreição. São Paulo: N-1 Edições, 2016, p. 94.
9 — DELEUZE; GUATTARI, Ibidem, p. 62.

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