A culpa não é tua

Junho de 2016

Miliuma
miliuma
4 min readMay 30, 2019

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Na sua voz rouca tão particular, a cantautora espanhola Bebe musicava em ritmo acelerado as palavras “Malo, malo eres, no se daña a quien se quiere, no”. Admirava-a por ter escrito esta letra, por ter lançado uma música despudorada na sua referência à violência. Mais tarde, dividi um apartamento em Cuba com uma espanhola que era amiga da Bebe e fiquei feliz por ser amiga de uma amiga da mulher guerreira. A ilha transpira sexualidade, o calor húmido, a salsa e o rum patrocinam o erotismo de um país que já foi (ou ainda é) destino de turismo sexual. Quando lá morei, Cuba tinha a taxa mais baixa de homicídio por violência doméstica da America Latina.

Nos quase cinco anos que estive fora de Portugal, morei um inteiro na cidade de São Paulo. São Paulo é deslumbrante e assustador ao mesmo tempo. É tenso, é quente e chuvoso. Nas carruagens de metro, cartazes da campanha “Homem de verdade não bate em mulher”. Brasil, um país onde 1 em cada 5 mulheres sofre ou sofreu de violência doméstica.

Hoje vivo em Portugal e, não deixando de estar atenta ao mundo, observo o meu país e procuro perceber como posso participar neste tema que, embora abordado frequentemente, não tem registado grandes melhorias. Só em 2015, foram considerados mais de 26.700 casos de violência doméstica. Sou actriz, blogger, produtora de projectos culturais, sinto a responsabilidade de, pelo menos, tentar que se leia mais um texto sobre o tema.

No mesmo instante em que vejo os resultados do relatório anual de segurança interna, penso em todas as mulheres que vivem este flagelo em silêncio. Imagino, com todo o erro que a imaginação permite, que sejam outras tantas, milhares e milhares de vítimas de um abuso que para alguns ainda é considerado cultural. Vítimas que nem sempre são mulheres, é verdade. Mas ainda que as mulheres sejam o maior exemplo desta discussão e as que carregam a maior percentagem das dolorosas estatísticas, li algures — e concordo — que enquanto estivermos a travar uma luta para melhorar a situação da violência doméstica com base nas mulheres, estamos a travar uma luta global, que melhora a situação de violência também relativa aos homens e aos casais homossexuais.

Para alguns parece distante, fecham os olhos à violência com a vergonha que carregamos na nossa herança portuguesa. A mulher que afirma que bateu na porta do quarto ou caiu na rua, ocultando assim o empurrão violento que ela já perdoou e o qual não partilha por essa mesma vergonha que carrega, como se a vítima tivesse culpa. A vítima nunca tem culpa. Nunca. Quando assisti a esta reportagem sobre a violência no namoro dos jovens portugueses, fiquei realmente chocada. Como é que hoje se pode considerar normal, antes de mais, ter acesso à privacidade das conversas de cada um? Onde ficou a nossa liberdade individual? Onde é que errámos para os nossos jovens estarem a aumentar exponencialmente as queixas por violência, de ano para ano?

Conversei com o meu afilhado, de 16 anos e com a minha prima de 13, pedi-lhes para me contarem se passarem por isto, para não darem palavras-passe, para não se deixarem perder em justificações que não deviam existir, para serem livres enquanto indivíduos.

Carla Duarte já não é adolescente e, com um pouco de sorte, tem filhos dessa idade. A taróloga que provocou agitação pelo forma como, num programa de televisão, ignorou a gravidade de um pedido de ajuda em directo por parte de uma senhora vítima de violência doméstica há mais de 30 anos, pediu desculpa com palavras que não justificam, na minha opinião, um comportamento que me pareceu intrínseco: quieta e calada, aguente senão piora. Não creio que alguém possa dizer isto se não o pensar realmente. Eu, que conheço vítimas de violência psicológica, esse drama tão intangível para os tribunais, ficaria certamente alerta, preocupada em aproveitar o momento para colocar as cartas de lado e ouvir uma mulher que estava pronta para falar. Tenho a certeza que quem dá importância a este flagelo faria o mesmo. Vale a pena assistir ao vídeo desde o princípio e observar a irresponsabilidade de quem entra, através de um ecrã, na casa de tantos portugueses, propagando este patrocínio ao silêncio, à vergonha e ao sacrifício. Como se a vítima tivesse culpa. Carla, a vítima nunca tem culpa. É por isso que é a vítima.

Em maio doei a minha percentagem do IRS à APAV.

Em junho escrevo este texto e deixo-vos links para que possam saber mais sobre o tema.

Qualquer acto é importante, não incentivem o silêncio, juntos podemos contribuir para que a violência não seja um assunto proibido.

Por favor, responda a estas perguntas e saiba identificar a violência no relacionamento

E ainda:

Sobre a violência psicológica

Reportagem sobre violência no namoro

Identificar a violência no namoro

Carla Duarte — a taróloga conselheira

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Miliuma
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Helena Canhoto — Performer — Aspiring Writer