Costa Alentejana e Vicentina

Portugal — 2017

Miliuma
miliuma
12 min readMay 31, 2019

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Antes, há uns tempos ou talvez apenas antes desta viagem, pensava que só sentiria férias se passasse a fronteira e recebesse a mensagem com a tarifa do roaming. Acabou-se o roaming e, com ele, acabou-se o meu preconceito — fui conhecer a costa alentejana.

A viagem começou na Praia dos Galapinhos. Foi quando desci e coloquei um pé na areia que senti que a pausa estava instalada e só voltaria ao activo na semana seguinte. Que praia incrível, tão perto de Lisboa. Ao que parece, a European Best Destinations elegeu-a como a melhor praia da Europa em 2017, pelo que creio que não devo estar errada no deslumbramento instantâneo que senti e aqui descrevo. Uau, disse, Setúbal é muito mais simpático do que eu imaginava. Na verdade, já tinha visitado Setúbal há uns anos, na véspera do nascimento do meu afilhado mais pequeno. Moscatéis e nada mais, vi a cidade apenas à noite e não me apaixonei. Agora, de dia, pareceu-me a escapadinha perfeita para um fim-de-semana de quem reside na capital e precisa de fugir da claustrofobia pombalina. Claustrofobia dicotómica de quem nasceu para viver em grandes cidades, a minha.

Instalei-me no Rio Art Guesthouse e, de zero a cinco, tenho as cinco estrelas inteiras para lhes dar. Atendimento perfeito e quarto maravilhoso. Fiquei no quarto Luísa Todi, de duas frentes, uma para a famosa avenida, mais bonita que a sua casa do Monopólio. Tem água, máquina de café expresso no quarto e tortas de azeitão a receber os hóspedes — e ainda uma cartinha de boas-vindas personalizada. Quanto cuidado.

Do outro lado da Avenida, a Casa Santiago para um prato de choco frito absolutamente irrepreensível. No decorrer da viagem pelas costas, voltei a encontrar ementas que incluíam choco frito e o preço por dose era sempre mais caro do que o preço praticado em Setúbal, onde ele é cozinhado com o maior primor. Vale a pena tirar a barriga de misérias, é um petisco dos que dá saudades. Na situação da Casa Santiago estar fechada, foi-me muito recomendada a Adega Leo do Petisco, mais próxima da praia aparentemente menos sofisticada.

Depois do choco, não há como não dar uma volta na Avenida Luísa Todi, iluminada. A digestão vai pedir caminhada e os resistentes vão pedir um gelado de sobremesa. Eu pedi hotel, janelas abertas para entrar a brisa da noite e descanso para continuar a viagem no dia seguinte. Agora já sei por onde poisar quando rumar a sul.

Adoro barcos, até ferries. Comecei a andar de ferry por causa da tragédia de entre-os-rios, para atravessar o Douro, e gosto do vento do rio a levantar os cabelos das mulheres que saem dos carros e se dirigem à proa, onde observam a água revolvida pelos motores e a outra margem a aproximar-se. Tróia do outro lado, uma península estreita, o céu rasgado pelo hotel de cinco estrelas e casino. Lembro-me de Varadero. Todas as penínsulas estreitas me lembram Varadero. Já tinha estado em Tróia, há muitos anos, um fim-de-semana em casa de amigos do qual me lembro da casa, dos bifes grelhados, do mini-mercado estupidamente caro e da minha primeira experiência quase-suicida a andar de bicicleta com motor. Tinha esse visto na lista, segui caminho. A fome começava e a Comporta esperava-me. Praia da Comporta, Comporta Café. Um sonho. Bonito, ementa variada, sem o pretensiosismo que eu achei que nos ia receber. Ficou pelo sonho, estava cheio. Ainda deu para fazer uma praia. Horas antes, a Madonna tinha colocado uma foto no instagram com cavalos e este cenário e, não, não foi por isso, na verdade a praia é convidativa e estava de férias, era meter os pés na areia até não aguentar mais. Percebo o apelo. Na praia da Comporta não havia meninos candidatos à Casa dos Segredos edição especial da barbatana número 243 e isso, hoje em dia, é uma mais-valia.

Segui pelos arrozais a caminho de Melides. Nunca tinha ido a Melides, era a caminho do próximo destino e tinha lido num fórum que o Bar dos Tigres e a sua saladinha de polvo eram a não perder. Como aconteceu várias vezes nesta viagem, parece, por vezes, que uma nega leva a alternativas e descobertas muito mais interessantes. Bar dos Tigres fechado e o Melidense aberto. Meu rico Melidense, tão bem me recebeste. Restaurante à moda antiga, cheio de tralha nas paredes para ir apreciando enquanto se espera. Barato e bom, como se espera do alentejo inteiro. Podem deixar a expectiva dos bons preços já em Melides, que se acham que pela viagem fora se vai comer muito bem e muito barato, estão muito enganados. Enfim, o Melidense agraciou-me com um frango sim senhor, que até o cérebro me diz que tem fome só de recordar. Terminada a refeição, fui para o telhado tirar fotografias. Melides vale a passagem, quando a caminho do próximo destino, esse sim, merecedor de incontornável visita: a Herdade da Matinha. Fica o Bar dos Tigres por experimentar.

Adelante, compañero, me voy para Cercal del Alentejo. Hasta Pronto!

Chega-se ao Cercal do Alentejo e num instante aparecem as placas para a Herdade da Matinha. Atenção à estrada, depois de entrar na herdade e até chegar às casas (são dois edifícios), vai um caminho louco que não gosta de carros rebaixados ou aceleras.

Simpatia, familiaridade instantânea, vontade de ficar nesta bolha alentejana e desfrutar do espaço — é quase como quem vai para um resort num país tropical e fica lá enfiado o tempo todo, mas neste caso, é no bom sentido! A Matinha tem tudo: o restaurante aberto onde falei com os responsáveis sobre o que será o servido ao jantar e no qual se entra para a cozinha para provar o molho com a cozinheira, os sofás ao ar livre, as árvores, os recantos, a piscina e a intimidade numa casa individual (pelo menos, a minha), sem televisão e umas rãs a fazer música pela noite fora. É o momento e o lugar ideal para levar uma garrafa de tinto alentejano e passar a noite na soleira do casario, a ver estrelas de vestido e pés descalços e a beber uma taça. Se vos parece idílico, é verdade. Se não, então não estarei capaz de traduzir em palavras a beleza deste lugar. Manhã seguinte, pequeno-almoço caseiro em buffet, foto no instagram, mensagem privada de uma amiga.: atenção, atenção, que o nosso pequeno foi concebido na Matinha. :) Ri-me que nem idiota a olhar para um telemóvel e a quebrar o silêncio dos demais e percebi o porquê de dali ter saído tamanha beleza como o filho dela. Comigo a história não poderia repetir-se, mas pode considerar-se o local ideal para tal. Sem pudores, senhores — se é para fazer “o” amor, na Matinha não falta nada.

Apesar do espaço ser uma delícia, o tempo era pouco e eu tinha como missão conhecer vários pontos da costa. Neste contexto, com a memória de uma infância regada a Rui Veloso, fui ver a Ilha do Pessegueiro. Na aproximação, avistando-a, parei o carro no meio da estrada e saí para tirar a abelha enfiada na saia que me ia picar e reclamar por dois segundos da minha pouca sorte com a bicharada. Timing perfeito, portanto. Escapada de uma picada que, para uma alérgica como eu, me faria mudar o rumo das férias, olhei a ilha e recomecei a descida até à praia. Lá, poucas pessoas e todas dispersas, ninguém chateava ninguém. Delícia de mar e de vista, estar na Praia da Ilha do Pessegueiro é perder a conta ao tempo. O estômago, esse de relógio embutido, pediu-me para subir ao restaurante que ali existe e olhar o mar enquanto o alimentava, mas não acedi a tal: os preços eram absurdos e a comida não tinha, sequer, bom aspecto. Lamento, estômago, daqui não levas nem uma carcacinha com manteiga.

Decidi então rumar a norte e ir visitar São Torpes, as suas praias de água quente derivada do aquecimento da imponente estrutura do porto de Sines e almoçar em algum dos restaurantes sobre os quais já tinha lido. Era um dia especial na região, a maior parte dos restaurantes estavam fechados e outros tantos já não serviam almoços aos tardios. Ainda assim, consegui petiscar como gente grande, numa esplanada com uma bela vista — Kalux — onde fui tão, mas tão bem tratada. Vale, realmente, a pena. Mais uma vez, acredito que as negas de todos os outros restaurantes me levaram a uma fantástica descoberta, que, possivelmente, veio a ser superior em vários aspectos às outras opções, seja pela excelente vista, seja pelo facto de ser menos afamado que a concorrência. Contudo, deixo aqui os nomes e links dos outros que não visitei, sobre os quais já tinha lido comentários positivos anteriormente e que continuam a despertar curiosidade : Cais da Estação, O Migas e Arte & Sal.

Na primeira noite jantei na Herdade da Matinha. Como bem habituada que estava, o jantar não me encantou particularmente, principalmente pelo preço praticado. Mais tarde, soube que se tratou de uma excepção e que, geralmente, está lá uma pessoa que cozinha muitíssimo bem. Não foi mau, mas foi mais ou menos banal, dentro da nova cozinha de autor. Valeu, sem dúvida, o gin bem servido antes da refeição, num pequeno bar pitoresco numa das muitas divisões da casa principal.

Na noite seguinte o jantar foi na mais humilde e extraordinária descoberta gastronómica destas férias: O Passarinho. O Passarinho, no Cercal do Alentejo, é a tasca bem-cheirosa. Cheira a batatas fritas e polvo assado, cheira a comida mas não cheira nem a tabaco, nem a suor, nem a sujidade. As mesas, com as toalhas de papel por cima das toalhas de tecido monocromático, as travessas de metal, a meia de vinho da casa e a senhora que aconselha com palavras carinhosas e diminutivos os pratos do dia. N’O Passarinho estava a jantar a maior parte dos trabalhadores que conheci na Herdade. Comi o melhor polvo do ano. O melhor. Os preços? Absurdamente baratos. Se pudesse, jantaria n’O Passarinho uma vez por semana para o resto da minha vida.

Passei três dias na Herdade e soube a pouco. Só parti dali para poder explorar o resto da costa com o pouco tempo de férias que me restava. A Matinha não cansa, rejuvenesce, apaixona e chama por mais. Mas, da próxima, carregada de repelente, que os mosquitos também gostam, e muito, da Herdade.

Deixando a Herdade, o primeiro destino foi a Praia do Malhão. Apaixonante e assustadora. O mar, de bandeira amarela hasteada, enrolava uma onda sobre outra onda sobre outra onda e não permitia respirar. Pedras bicudas escondiam-se enquanto a maré enchia, deixando-me imediatamente em alerta, atenta a cada veraneante que decidia mergulhar nas áreas das pedras sem as saber ali. Contudo, apesar do necessário cuidado com o mar, não se pode descer a Costa Vicentina sem visitar o Malhão.

Desci a costa até Milfontes. Não fiquei encantada com a vila. É banal e desinteressante, parecida com muitas já visitadas, não se me destacou no gosto. A vista do miradouro, essa, é lindíssima. Na praia das pedras amusgadas (ou Praia do Farol), alguém faz mais uma escultura de pedras no meio de tantas outras que compõem o cenário inusitado, quase sinistro. Em silêncio, a criação iniciada em 2016, foi passando como testemunho invisível.

Subi as escadas de madeira até A Choupana, fechado. Era um dos grandes restaurantes que ansiava visitar, depois de perceber que os preços da Tasca do Celso eram ridículos, turísticos ou que lhe quiserem chamar. De volta ao carro, encontrei o Dunas Mil, que me chamou pela esplanada. O senhor que atende afirma que o peixe é fresquíssimo e o marisco também, tudo do dia. Não eram. Superei-me com um waffle e segui viagem de alma e estômago felizes.

A última etapa desta semana nas Costas Alentejana e Vicentina terminou em Aljezur, na casa da anfitriã Sofia, uma mulher de viagens, literatura e boa comida. No Muxima — que, como indica o site, é um pedaço de terra maravilhosa de 28 hectares — os hóspedes sentem-se numa casa exótica e silenciosa. Os quartos têm casa-de-banho e alpendre, conferindo-lhes uma entrada privativa. Há, também, uma casa mais acima, com suites familiares com kitchenette. Todos os quartos são decorados com um país diferente como tema e toda a decoração foi trazida das viagens pelo mundo que a família faz anualmente. A suite que me foi atribuída foi a tailandesa e nunca gostei tanto de uma decoração como aquela. Aliás, estou, desde então, desenfreadamente à procura daquelas almofadas triangulares tradicionais tailandesas (gostos da aliteração) para comprar umas para um dia que tenha um alpendre numa casa de campo. Há quartos tunisinos, timorenses, indianos e por aí fora. Um dia, perguntei à Sofia se ela não tinha receio que alguém roubasse uma das almofadas ou outra decoração tão exclusiva como estas, ela riu-se e disse prontamente que não. A Sofia acredita que as pessoas que vão para a casa dela são pessoas bonitas e especiais e, de repente e sem ela saber, é essa sua resposta e característica que torna especial a própria casa e a própria anfitriã.

Nesta fronteira entre o Alentejo e o Algarve foi onde melhor comi durante toda a viagem. Nada foi barato mas há um mar de sugestões muito, muito boas! Algumas das sugestões foram dadas pela Sofia do Muxima, outras por amigos ou encontradas em fóruns ou até outros blogues de viagens. Começando mais a norte, há o Sacas, na Zambujeira do Mar, onde se tem a oportunidade quase única de comer filetes de peixe-aranha (sim, aquele que pica os pezinhos dos meninos), onde uma dose dá, sem dúvida alguma, para duas pessoas. A Tasca D’Arrifana, no que toca a petiscos, foi a melhor visita gastronómica da semana! Que frescura! Peçam o que as simpáticas funcionárias aconselharem e, se não falarem da salada de ovas de choco, peçam na mesma a salada de ovas de choco. Porque não se deve viver sem experimentar uma salada de ovas de choco. Tão extremo quanto isto. Parecem mini lulas redondas e suculentas e muito saborosas. Vou parar de falar da salada de ovas de choco. Pronto.

Há também uns quantos restaurantes de cozinha internacional que valem muito a pena. Desses destaco o La Preferida (ai de quem não for!) e o Gulli Bistrot. O primeiro é peruano, com chef peruano de gema. Sentei-me numa esplanada simpática e ouvi música ao vivo ao pôr do sol, com duas meninas do norte da europa que cantavam muito bem, lembrando a sonoridade do When I’m Gone, interpretado aqui assim. Comi e bebi como se estivesse no Peru. Sei lá, acho eu!

Em Aljezur, o Pont’a Pé e as suas deliciosas sobremesas de batata doce é uma excelente escolha, bem como a Cervejaria Mar. O III geração, contudo, é o exemplo do restaurante a não visitar! Demoraram um absoluto disparate de tempo (mais de uma hora) para um prato de polvo perfeitamente normal. A cozinha era visível desde o lugar onde estava sentada e podia ver-se pessoal sem fazer nada enquanto desesperava por ser servida. No fim e depois de pagar, tiveram o desplante de perguntar se correu tudo bem, momento que aproveitei para falar do tempo de espera. Prontamente, a funcionária disse que para a próxima pedisse salada, que se pedi polvo, não esperasse outra coisa. Sorri com a absurdidade do comentário e despedi-me para não mais voltar.

Ainda sobre as batatas doces, é importante referir que é o produto mais importante e mais servido na região, a par do Sargo. Vale a pena o desvio por Rogil no regresso a casa e trazer uns pastéis de batata doce do Pão do Rogil, a melhor pastelaria da região.

Na última noite, subi ao Castelo de Aljezur e passeei entre vasos de fogo e música clássica. A despedida perfeita de uma semana inesquecível. A, no máximo, meia dúzia de horas de distância de qualquer residente em Portugal, vivem múltiplos paraísos e alguns paraísos orientais ou sul-americanos dentro dos nossos próprios paraísos nacionais. Queria dizer obrigada a todos os que viajaram virtualmente comigo, mas parece-me demasiado foleiro, então, vou remeter-me ao silêncio, embora agora já saibam que eu queria dizer isso, portanto, é como se tivesse dito. Respiro. Fim.

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Miliuma
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Helena Canhoto — Performer — Aspiring Writer