Os fariseus ficam dóceis ao menor sinal de bajulação

Maurício Angelo
Minas Não Há Mais
2 min readSep 9, 2018

Para fazer parte da panela é preciso primeiro aquecê-la: acender gentilmente a labareda em sua bunda metálica e deixar que o fogo faça o seu trabalho sem interferências desnecessárias. Basta então uma contemplação quieta, evitando levantes bruscos. A chama não mente: não tem tempo pra isso.

Para ingressar no clube é necessário pagar o pedágio: tudo de uma vez, sem parcelas. Não há lugar para pobres boquirrotos, aspones de ternos mal cortados e bebedores de conhaque vagabundo. O último que tentou foi parado pelos seguranças antes de chegar ao elevador.

Para sentar-se à mesa principal só com convite do presidente: doze cadeiras dispostas em diagonal, com duas jarras de água e café, para exportação. Deliberações postas, cortadas pelo cheiro de mofo do carpete da década de 60. Fica tudo certo depois de uma limpeza com água raz.

Assim é, se lhe parece. Não é bonito, mas é o que dá pra fazer: tua imagem refletida no espelho, escondida nos confins do templo, servindo de negociata para os vendilhões. Um expurgo com ares de normalidade. Mais um dia comum disfarçado de xeque-mate.

Os fariseus ficam dóceis ao menor sinal de bajulação: não resistem à tentação da idolatria, perdem-se em sua ânsia de adoração, seu pequeno ritual ridículo que fazem questão de piorar. Há que se morrer mil vezes antes de se deixar consumir. Alma vencida não dura muito na prateleira.

Brincando de cessar-fogo queimou a ponta dos dedos em brasa. Buscou alívio na água corrente, que pouco adiantou. Engoliu o desconforto com três doses de analgésico, sem que ninguém se desse conta. Fingiu que os olhos não ardiam e que a noite não iria cair novamente implacável, os medos a girar feito brinquedos fluorescentes em cima do berço. Esticando o braço sem conseguir alcançar.

Escondido na baia mais próxima da parede, ele me disse, repetindo com o fôlego de um animal assustado: a última hora é a mais cruel.

(conto publicado no livro “Meu Mundo é Hoje”, disponível na Amazon e em PDF)

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Maurício Angelo
Minas Não Há Mais

Jornalista e escritor. Autor de “Meu Mundo é Hoje” e “11 Rounds”, de contos e “Latitude 19 & Outros Hematomas”, de crônicas e poemas.