As mulheres que habitam Lucia Berlin

Cesar Maccedo
Minas Não Há Mais
4 min readMar 19, 2018

Os 43 contos reunidos no livro Manual da Faxineira, da norte-americana Lucia Berlin (1936–2004), representam praticamente a metade do que ela publicou ao longo da vida. Ágeis, com tons fortemente autobiográficos, descrições detalhadas, diálogos cortantes, símiles originais, os textos são singulares tanto nos temas quanto nas formas.
A trajetória da autora foi repleta de casamentos, relações familiares difíceis e complexas, doenças, levando uma vida meio nômade e exercendo empregos que vão de diarista a enfermeira, passando por professora e secretária de postos médicos. Tudo isso fornece material temático e uma riqueza de personagens que se confundem com a vida real — claro, tudo retrabalhado e com pegada que dispensa lirismos e outros tropos que tendem a colorir ou amenizar realidades duras.
A força da escrita está calcada no confronto sem anteparos com o concreto. A força imagética-descritiva é urdida de maneira a deslocar habilmente o leitor e convidá-lo, sem artificialismos, a vivenciar os microcosmos onde se movem os personagens, seja numa cozinha onde uma mãe embala o filho, num quarto ou corredor de hospital, numa reles lavanderia suburbana, na sala de aula ou nas ruas de El Paso, do Novo México ou de Santiago do Chile.
Por tratar-se de coletânea e não de livro organicamente pensado como tal, corre-se o risco de uma colcha de retalhos mal urdida. Mas não nesta obra, em que mediocridade e amadorismo passam longe das tramas e os pontos de contato são facilmente identificáveis. O ritmo narrativo varia, variam também suas vozes, sem perda de unidade em paralelismos muito bem construídos. Há cortes secos, saltos temporais, encadeamentos não-lineares, mudança de narrador, encerramentos abruptos sem grand finale. Nada sobra. Alguns temas se repetem ao longo da coletânea, assim como personagens vão e vem, mas isso não gera uma repetição modorrenta nem superexposição e/ou superposição dos entrechos.
Dentre os contos mais bem realizados destacam-se: Dr. H. A. Moynihan, o tema-título Manual da Faxineira, El Tim, Mordidas de Tigre, Mijito, Toda Luna, Todo Año. Dignos, todos, de antologias mundiais no que se refere à eficaz caracterização de ambientes e personagens, com total domínio técnico e formal da narrativa curta. Outros excelentes são Estrelas e Santos, Meu Jóquei, Cadernos de Notas do Setor de Emergência 1977, Melina, Um Caso Amoroso, Carmen, Mamãe. Por desenvolver tramas relacionadas a ambientes e relações sociais de trabalho, e também pelo viés autobiográfico, Lucia Berlin aproxima-se algumas vezes do melhor Bukowski (Cartas na Rua, Factotum), até mesmo pela recorrência ao humor e pela convivência problemática com o álcool e seus excessos (ambos foram, inclusive, publicados pela mesma editora, Black Sparrow Press). Mas são escritores de cepas bem diferentes. Berlin é superior em força narrativa, no aprofundamento e tratamento de temas delicados como o aborto, o alcoolismo, o desassossego, o enfrentamento desigual com o mundo.
Nesse enfrentamento, sobressai a força da mulher. Ela mesma como autora/personagem/narradora encara tudo abertamente e sem meias-palavras. Luta contra as agruras do mundo de frente, o supera, é derrotada, se levanta, nunca se entrega ou se aniquila. Parte para outra, muda de cidade, troca de parceiro, abraça e aninha os filhos, se desgasta nas relações com a mãe e o avô, é molestada, não baixa a guarda. Mesmo abandonada por homens, vivendo relações opressivas, o viés feminino extrai sua força das entranhas, mesmo violentado, mesmo sem amparo. A autora Lucia Berlin e suas personas sobrevivem e lutam com unhas, dentes, sexo, trabalho, estudo, esforço. Nada vem de mão beijada.
E são várias Lucias narradoras e narradas: uma aluna que empurra uma freira abusadora e acaba sendo expulsa da escola; a filha que, acusada injustamente de um furto, já chega em casa apanhando da mãe; a neta que extrai todos os dentes do avô; a jovem mãe que desiste de um aborto na hora h; a turista solitária que tem um caso com um rústico mergulhador. Nessa última trama (Toda Luna, Todo Año), desenrola-se uma cena de sexo no fundo do mar que é tocante de tão linda e vívida.
Não há espaço, como já se disse, para autopiedade nem tergiversações. Descrevendo assuntos de emergência nos hospitais, surge uma reflexão que parece um soco: “Existem bons suicídios. Bons motivos muitas vezes, como doença terminal, dor. Mas o que mais me impressiona é a boa técnica. Um tiro nos miolos, pulsos bem cortados, sedativos decentes”. A opinião de um médico sobre as enfermeiras também aparece sem verniz: “Uma vez ele (Dr. B) disse que ela tinha as duas qualificações necessárias para ser enfermeira…era burra e servil”.
Ainda na seara médica, uma narradora dispara: “Eu gosto de trabalhar na emergência — pelo menos lá você conhece homens. Homens de verdade, heróis. Bombeiros e jóqueis. Eles vivem indo para alas de emergência. Jóqueis têm radiografias fantásticas. Quebram ossos a toda hora”. Para reforçar os aspectos simbólicos e concretos transformados em literatura, em alta literatura, Berlin (auto)sentencia: “Medo, pobreza, alcoolismo e solidão são doenças terminais”.

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Cesar Maccedo
Minas Não Há Mais

jornalista, professor, poeta, contista, editor do coletivo literário Minas Não Há Mais