Clarice Lispector segundo as cartas de um coração selvagem

Elaine Moraes
Minas Não Há Mais
4 min readDec 24, 2017

Há mais de 20 anos, ao me deparar com a obra de Clarice Lispector, fui tomada por sobressaltos. Ainda hoje sigo sua leitora, revisitando romances, contos e crônicas. Mais recentemente, busquei também textos biográficos e ensaios sobre a escritora. Tive a alegria de encontrar, então, “Clarice”, biografia de Benjamin Moser, e “Cartas Perto do Coração: dois jovens escritores unidos ante o mistério da criação”, livro que reúne as correspondências trocadas entre a autora e Fernando Sabino, de 1946 a 1969.

Assim, pude entrar em contato com Clarices que eu não conhecia. Em especial, o conjunto de cartas oferece um panorama significativo sobre o processo de construção literária, as angústias e os receios acerca da Literatura e da vida. Por isso, apesar da arrebatadora biografia, escolhi o livro de correspondências para lembrar a escritora, que está encantada desde 9 de dezembro de 1977. Como ela partiu no ano em que nasci, considero a leitura desses textos o contato mais íntimo que poderíamos ter.

Quando Clarice Lispector enviou ao escritor mineiro um exemplar do seu primeiro romance Perto do Coração Selvagem, em janeiro de 1944, talvez não imaginasse que iniciaria com o gesto a “mais intensa de suas amizades”, como descreveu Sabino: “(…) Submetíamos nossos trabalhos um ao outro. Juntos reformulávamos nossos valores e descobríamos o mundo, ébrios de mocidade. Era mais do que a paixão pela Literatura, ou de um pelo outro, não formulada, que unia dois jovens ‘perto do coração selvagem da vida’: o que transparece nas cartas é uma espécie de pacto secreto entre nós dois, solitários ante o enigma que o futuro reservava para o nosso destino de escritores”.

Ao longo de 23 anos de correspondências, questões diversas perpassaram esse diálogo, como a condição de estrangeira no Brasil e em outros países (onde viveu devido ao casamento com um diplomata), o exercício da escrita enquanto jornalista, a leitura de outros escritores, o fazer literário, dentre outras. Optei, aqui, por me ocupar daquela que mais me provocou: o registro do eu.

A proximidade ou o afastamento que Clarice impunha entre ela e suas personagens foi tema, por exemplo, da carta de 21 de setembro de 1956. Nessa, a autora responde à correspondência de Sabino, por meio da qual, ele envia à amiga apontamentos sobre o romance “A Maça no Escuro”, tecendo, justamente, ponderações sobre o uso da primeira pessoa.

Dentre as sugestões do escritor, Clarice se afligiu com o conselho de que ela deveria evitar certo aspecto “dogmático” ou “conceituoso”. Sabino atribuía essa característica a expressões como “já nos habituamos” ou “basta nos lembrarmos”. Na mesma missiva, Lispector apresenta sua reflexão. Segundo a escritora, ao perseguir o distanciamento entre ela e suas personagens, paradoxalmente, se colocou de forma proposital e notória dentro da narrativa.

“Eu queria me pôr completamente fora do livro, e ficar de algum modo isenta dos personagens, não queria misturar ‘minha vida’ com a deles. (…) Hesitei muito em usar a primeira pessoa, mas de repente me deu uma rebeldia e uma espécie de atitude de ‘todo mundo sabe que o rei está nu, por que então não dizer?’ — que, na situação particular, se traduziu como: ‘todo mundo sabe que alguém está escrevendo o livro, por que então não admiti-lo?”

Fernando Sabino, por sua vez, argumentava que o uso excessivo das expressões, em primeira pessoa, dava ao texto um “tom” desnecessário, que ele considerava incompatível com a qualidade estética do trabalho. Para ele, essas estratégias podem auxiliar na elaboração do texto, mas devem ser “jogadas fora” depois de concluída a escrita. “São apenas andaimes, que podem ter ajudado a concepção do livro, mas que devem ser retirados, a obra acabada”, enfatizou o autor.

À pergunta de Clarice Lispector (“Todo mundo sabe que alguém está escrevendo o livro, por que não admiti-lo?”), o escritor responde que o romance dela é exatamente isso, mas não porque ela o diga, mas devido à sua técnica peculiar. De certa forma, defende-se, aqui, que a marca ou presença do autor não encontra força no uso da primeira pessoa, na referência aos pronomes “eu” ou “nós”, mas na linguagem.

Quem diz eu na Literatura? Essa é, aliás, uma questão que tem perseguido escritores através dos séculos. Também Clarice e Sabino; antes de conferências como “A morte do autor”, de Roland Barthes, em 1968, e “O que é um autor?”, de Foucault, em 1969; problematizaram a figura autoral e a relação entre autor e obra ou entre autor e suas personagens. Clarice o fez nas cartas e também nos próprios romances.

Em “Um sopro de vida”, ela encena conversas entre autor e personagem (Ângela). Em um dos diálogos, esse autor (em cena) se pergunta: “Isto afinal é um diálogo ou um duplo diário”? Esse duplo funcionou, para mim, como um indutor de perguntas. A que eus estaria Clarice se referindo? Seria a ela (Clarice) e o seu autor simulado? Seria a esse autor de papel e à Ângela? Para quem estamos olhando?

Não é possível se fixar em uma única resposta. A complexidade do ato de se desvelar em Clarice é imensurável. E pode incluir outros. Ao ler O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, a escritora escreve: “(…) o livro que você escreveu pareceu me libertar mais do que o livro que eu própria escrevi. Eu não sei ‘me dar’, você soube ‘se dar’. (…) E um dos mistérios da arte é que ‘às vezes’ a gente se dá pelos outros.

Com as cartas de perto do coração, Clarice se deu a ver a Sabino e, graças a esse desvelamento, também nós, os leitores, pudemos conhecer um pouco mais da autora que nos envolve em jogos prazerosos de ímpeto criativo e hesitação, de transitoriedade, de presença e ausência, de silêncios e de polissemia. Aqueles que quiserem adentrar o universo pessoal e ficcional de Clarice Lispector encontrarão um caminho singular em suas correspondências.

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Elaine Moraes
Minas Não Há Mais

Jornalista e professora. Da vida deseja apenas afeto, longas conversas e contar histórias.