Colmeia

Maurício Angelo
Minas Não Há Mais
3 min readJul 9, 2018

Carlos era muito comentado na cidade. “Há anos que não se vê ele com ninguém”, diziam. “O pobre diabo vive a esmurrar paredes a esmo e tomar seu conhaque sozinho no Bar do Zé”. Lúcia havia morrido num acidente de carro estúpido em 1995. Voltava do mercado com duas sacolas cheias de garrafas de gim, campari e vermouth, que Carlos usava para fazer seu negroni diário. Quando a picape ultrapassou o sinal vermelho e acertou-a em cheio, Carlos estava em casa tentando decifrar as palavras cruzadas do jornal. No luto sem fim, o enterro serviu para abrir velhas feridas entre as famílias de ambos. Consternado, resolveu enviar Marcos direto para um internato em São José dos Campos.

Ele ficaria por ali e jamais foi o mesmo. Abandonou os amigos e deixou de jogar peteca às quintas e de ir ao parque no domingo. Desistiu do mestrado e, com o tempo, largou o emprego na consultoria local. Passou muitos anos usando seu talento para convencer outras empresas da necessidade extrema do que elas jamais precisaram realmente. Não era dado ao sorriso fácil, mas transmitia confiança. Restavam-lhe os discos empoeirados e os livros lacrados da estante.

Talvez lembrasse com alguma nostalgia dos seus tempos de surfista em Itaúnas, dos tomates que plantava no quintal de casa e das menininhas que pegava com seu ar de indiferença calculada. Nunca foi charmoso, mas a barba fechada, a boca levemente torta e o nariz simétrico contribuíam para que meia dúzia de palavras fáceis completassem o serviço.

Nada mais importava porque a vida seguia e lá fora os carros continuavam a se empilhar nas vias, garrafas seguiam sendo derrubadas, aviões pousavam trazendo um pouco de esperança sobre um novo negócio ou apenas uma boa foda, o país ia bem, a educação melhorava e a TV, como sempre, exibia dramas de gosto duvidoso. Todos estavam tão confortáveis quanto possível e a poupança daquele ano tinha batido a melhor rentabilidade das últimas duas décadas.

À medida que os cabelos ficavam mais ralos e a barba embranquecia, Carlos começava a dar alguns sinais de demência. “Nada grave”, disse o médico, “tome esse remédio três vezes ao dia e tudo há de ficar bem”. O desconforto passou, a dúvida rareou e, aos 73 anos, resolveu começar sua primeira novela:

Quando você olhar para um corpo, repare primeiro nas extremidades. As marcas nas mãos dizem quanto aperreio passou. Os pés podem revelar com que frequência se embriagava. A profundidade dos olhos indica o quão miserável pode ter sido. Aquele ser, que já fora um girino, um rascunho, uma esporrada na cara do destino, quem sabe, se muito, produziu algo de interessante. Aquele amontado de pele e gordura pode ter feito alguém feliz por 10 minutos que seja. Aquele pó pode ter decorado uma baia.

Josafá migrou da Bahia para Minas Gerais aos 12 e construiu boa carreira como funcionário público em Belo Horizonte. Descia Bahia e subia Floresta, mas odiava o Clube da Esquina. Preferia o barulho ensurdecedor de uma makita fritando azulejo. Preferia uma turbina de avião dentro do estômago. Uma colmeia de abelhas no lugar do cérebro. Apesar disso, fingia bem.

Carlos olhou bem para aqueles dois parágrafos e preferiu jogar tudo na lixeira de plástico que guardava do lado da mesa. Jamais escreveria novamente.

(Julho de 2014, publicado em “Meu Mundo é Hoje”)

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Maurício Angelo
Minas Não Há Mais

Jornalista e escritor. Autor de “Meu Mundo é Hoje” e “11 Rounds”, de contos e “Latitude 19 & Outros Hematomas”, de crônicas e poemas.