Fissuras

Elaine Moraes
Minas Não Há Mais
3 min readJul 24, 2018

Cerrou as janelas antes que a chuva entrasse. Mesmo no 15º andar, buzinas e motores rasgavam o céu carregado. Bolsa, cigarros e chaveiro. Já havia trancado a porta, mas girou a maçaneta com a costumeira desconfiança. Prédios antigos parecem suspeitos. Três passos adiante e a luz do corredor oscilou. A lâmpada amarela piscava intermitente e ritmada, como uma conversa entre estranhos que já se sabem íntimos.

No rodapé, formigas marchavam em desatino e carreata. Mais um passo à frente e a energia cessou. Permaneceu ali, paralisada. Ainda estava com as chaves nas mãos, poderia regressar à sala. No entanto, a ideia de se prender em um cômodo escuro disparou seus batimentos. Lá estaria também o palhaço de sorriso torto, feito de argila, que Seu Carlos havia recebido do filho: “um Rodin de apenas oito anos”. Pais são sempre hipérboles.

Desceria as escadas então. Se deixaria guiar pela familiaridade de 10 anos completos naquele endereço. Caminhada e pausa se seguiram até fazer a curva do corredor. Tateou as paredes. Eram ásperas e tinham pequenos relevos, embora parecessem lisas e certas. No elevador, havia um tapume que vedava a passagem. Por detrás do madeirite, encontraria apenas a extensa cavidade de cimento. Todo buraco dentro do peito deveria se chamar fosso.

Passou os dedos morosamente pela superfície de ranhuras. Talvez algum entregador tivesse se cansado de esperar em frente à porta do Sindicato dos Rodoviários e decidiu se distrair com o prensado de madeira e um canivete. As feridas eram profundas, o que significava que o tédio fora apenas o sentimento inicial. A sensação de tocar as fissuras permaneceu mesmo depois de suas mãos já não estarem mais lá. É o que acontece toda vez que toca o próprio corpo, estriado pelo tempo e pela ração cotidiana das refeições de escritório.

Ouviu vozes que vinham do andar seguinte. Ela deixou entrar um pouco mais de ar pelo nariz quando pensou que teria companhia. Tratou de ir na direção das falas, que, a cada degrau, iam se apagando. Até que sobrou sua própria respiração, fechando o primeiro lance de escadas. Do basculante, avistou um ponto de luz que boiava do outro lado. No dia seguinte, incluiria na lista de compras: lanterna.

Já havia contado quatro andares, quando um cartaz à direita chamou sua atenção. Cintilava. Parou e o examinou. Ao se virar, esbarrou na alça do recipiente de resíduos. Num impulso, resolveu abri-lo. O odor era grave, pesado, irritou os olhos. Havia muita escuridão ali. Fechou-o com dificuldade e se espantou com o chiado do movimento. Não se lembrava de ter ouvido esse som antes, embora a tarefa de se livrar do lixo toda manhã fosse dela.

De volta à escada, desceu um, dois, três lances, em passadas rápidas e ofegantes. Deveria parar de fumar, pensou, depois de se sentar na penumbra. A camada espessa de poeira impregnou a roupa. Com o indicador, começou a escrever na frágil lousa, depositada ali de grão em grão. Palavras, todas inventadas. Poderia criar um dicionário só dela.

Num repente, a lâmpada do corredor se acendeu. A improvável luz a cegou, deu um passo em falso e alçou voo, varrendo os vestígios de invencionices e verdades, deixando também para trás o que era conhecido.

*O conto foi publicado, originalmente, na à Revista Literária

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Elaine Moraes
Minas Não Há Mais

Jornalista e professora. Da vida deseja apenas afeto, longas conversas e contar histórias.