Leite talhado

Elaine Moraes
Minas Não Há Mais
3 min readMar 2, 2018

Luzia nunca havia saído do distrito. Quando menina, pediu à madrinha que a formasse professora. Mas a tia, que já havia lhe poupado do destino de criança órfã, disse que a sobrinha ia se casar. Antônio subiu as escadas do casarão e encontrou Luzia na varanda. Ela acenou com a cabeça e deixou de lado a costura. O homem de bigode farto, corpulento e sisudo ordenou que ela fizesse as malas.

Tomada pelo assombro, tirou detrás da cama o velho baú. Perguntou, com a voz maviosa, aonde iriam. Ele se limitou a dizer que se tratava de lugar frio, muito frio. Com a tolice de qualquer mulher que espera, levou consigo a camisola de núpcias, nunca usada porque Antônio tinha urgência. As passagens de trem já estavam no bolso do paletó de veludo preto. Antes de saírem, ela ainda distribuiu tarefas entre os empregados.

Durante a viagem, tentou saber um pouco mais sobre o destino, mas Tonho permaneceu calado. Quando chegaram à estação, o homem pediu que ela entregasse a aliança. O anel de brilho intenso jamais era retirado do dedo. Ele teceu um longo alerta sobre a cidade, que se encontrava apinhada de meliantes à espreita de um descuido. Entregou então, sem hesitar, a amálgama de suas vidas. Partiram em direção à hospedaria em uma charrete.

Bem-vindo à Barbacena! A placa confirmou as suspeitas dela. Um quarto para uma noite, anunciou o marido. Luzia estranhou o fato dele ter permitido que ela trouxesse mala tão grande para tão breve estada. Tomaram chá de erva cidreira e comeram uma fatia de broa de fubá. A quitanda a levou para as manhãs na fazenda, onde encontrava, diariamente, sobre a mesa do café, broas e queijos. Ela e as primas alcançavam a cozinha em carreira, com a mesma velocidade com que fugiam os cavalos indomáveis.

Antônio ordenou que ela trocasse de roupa. A mulher se alegrou com a possibilidade de um passeio a pé pela praça, de braços entrelaçados, à procura de amenidades. Preparou-se com zelo. Ela estava com a face corada, as pálpebras trepidavam. Quando ele a tomou pela mão, teve certeza de que havia deixado para trás a vida conjugal que vivera até ali. A existência passaria a se apresentar conforme a madrinha lhe prometera.

Finalmente as noites surdas ficariam no passado, seria perdoada por ter um “ventre oco”, por não ter entregue àquele homem o varão tão desejado, na verdade, por não ter ofertado fruto algum. Aprisionaria em local incerto e inacessível todas as lembranças cozinhadas em leite talhado, o mesmo leite que ele derramava em Luzia, uma semana depois de descerem as regras, para cumprir um dever.

Não faria parte desse novo estar no mundo Lindaura. Aquela mulher não se sentaria mais no banco detrás durante a missa, não tocaria a nuca de Antônio enquanto o padre pronunciava o costumeiro sermão sobre as vontades de um Deus que, supostamente, recompensaria toda conduta reta e estúpida, apesar de. Não haveria mais olhares de reprovação, burburinhos ou risos. Luzia não faria mais preces, exigindo que uma doença ruim os levasse, caminharia com a cabeça erguida depois de incontáveis domingos sendo jabuti.

Andaram pareados pelas ruas até adentrarem, enfim, pela porta colossal e imponente. O marido ordenou que ela se acomodasse na poltrona de couro. Tentava adivinhar que lugar era aquele quando Antônio voltou acompanhado de dois homens de vestes brancas, traziam no peito algum tipo de credencial.

Tonho apontou para a mulher e disse: é ela. Os homens a seguraram e a arrastaram pelo corredor. Tentou suplicar, buscar mais uma vez a mão hostil do esposo. Mas sentiu romper a pele um líquido que a queimou. Ainda em torpor, viu Lindaura aguardando por Antônio na porta do hospital, onde, anos mais tarde, a loucura lhe abraçou.

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Elaine Moraes
Minas Não Há Mais

Jornalista e professora. Da vida deseja apenas afeto, longas conversas e contar histórias.