Roubavam, mas era diferente

Maurício Angelo
Minas Não Há Mais
3 min readJun 21, 2018

Insone no aeroporto, os dedos frenéticos a ouvir os áudios do celular, a voz trôpega de uma madrugada tardia, já acordando do seu leito de morte, ele me disse: roubavam, mas era diferente. Os caminhoneiros não vão recuar, não. È pra levantar faixa de “intervenção militar já!”, gente. Agora. Não é pra reagir. O importante é passar a mensagem. O exército não vai fazer nada. Precisamos espalhar os pedidos de intervenção militar pelo país. Espalhe pra geral, a greve vai até o fim. Roubavam, mas era diferente, ele me disse, sem nem piscar.

Não vacilou por um segundo, afirmou, convicto: roubavam, mas era diferente. Era diferente. Tinha violência, sim. Mas não era essa bagunça. Era diferente. Sem nem um chiste, um maneirismo, nenhum indicativo de que estava brincando. Falava sério: roubavam, mas era diferente. Matavam, escondiam, torturavam, mentiam, dissimulavam, censuravam, perseguiam, manipulavam, humilhavam, linchavam, passavam com a planadora por cima e jogavam os restos na Baía de Guanabara. Mas era diferente. Que há de se fazer? Era, sim, diferente, ele me disse.

E fitava os seus olhos, atento. Esperando qualquer fraquejada, qualquer suspiro, qualquer riso disfarçado de canto de boca. Nada. Roubavam, mas era diferente. A frase ecoava na minha cabeça zonza por dias a fio sem dormir. Era diferente. Aquele homem não tinha nenhuma dúvida de que era diferente. Ele tinha vivido aquilo. Seus quase 70 anos não o deixavam mentir. Era, sabia? Era. Ah, que saudade. Que nostalgia funda que calava na alma daquele animal. Diferente. Não lhe importava nada, apenas babava por dentro, sedento, sugando cada oportunidade de vê-los de novo no poder. Era diferente.

Há poucas coisas que um banco de aeroporto não te faça falar. Pensei. Há poucas coisas que um banco de aeroporto não lhe enfie na espinha, vendo o tempo passar sempre devagar, os cafés caríssimos abandonados nas mesas de sachês vedados, atendentes a gritar pelos últimos desesperados, painéis luminosos a atualizar o destino mal calculado, empregados mal pagos vagando como zumbis, totens que nunca funcionam, figuras bisonhas saídas de hotéis executivos, salas de embarque lotadas, velhos em cadeiras de rodas, privilegiados desfrutando cada migalha do seu privilégio, o biscoito seco a ferir a gengiva inflamada, a cortesia hipócrita da convenção.

Era diferente. Sua loja que vendia peixes na BR construída durante o milagre econômico era um sintoma. O milagre era eral. As negociatas que fazia com grãos no mercado futuro também. A violência imparável na periferia de Belém. Obras intermináveis, buracos cavados só para que fossem tapados novamente. Terra revirada em meio ao caos. Um rio contaminado de esgoto, os mosquitos a devorar a paciência dos não iniciados, o mormaço opressivo da garoa que nunca termina. Era diferente. Não importa. Era.

E eu comecei a acreditar. A convicção repetida tantas vezes é sedutora demais para ser ignorada. Era diferente, que maravilha. Diferente! Fazia sentido. Tanta gente pensava assim em tantos lugares distintos, não podia ser coincidência, nem combinação. Era diferente. Estava buscando as respostas nos lugares errados, depositando minhas esperanças em santos falidos, lendo livros caducos, dando chances demais. Era diferente! Ignorância minha não perceber isso antes, cego pela experiência, repleto de conceitos fechados, trovejando senso comum pelas narinas. Era diferente!

Estamos juntos, eu disse. Finalmente eu compreendia, como uma epifania pela botina na fuça, a revelação verde oliva, a unção autoritária final. Roubavam, mas era diferente. Tudo fazia sentido.

Nada será como antes sendo exatamente igual.

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Maurício Angelo
Minas Não Há Mais

Jornalista e escritor. Autor de “Meu Mundo é Hoje” e “11 Rounds”, de contos e “Latitude 19 & Outros Hematomas”, de crônicas e poemas.