Sobre Thomas Bernhard, repetição, diatribes, monolitos e claustrofobia

Maurício Angelo
Minas Não Há Mais
9 min readMay 10, 2018

Thomas Bernhard é um monolito. O Bernhard de “Extinção”, sobretudo. 500 páginas sem um único travessão, um único espaço, um único respiro, divididas apenas em dois maciços parágrafos. Sua prosa é propositadamente claustrofóbica. 500 páginas de diatribes com os dentes cerrados, a faca na boca atravessando o pântano. Bernhard não faz concessões, não alivia, não facilita. Usa a repetição como recurso, como estilo, como parte da narrativa, como meio e como fim. É fácil entender porque incomoda tanto.

A repetição é a maneira que temos para saber com clareza que estamos vivos. A repetição é diferente da rotina. A rotina lubrifica as engrenagens sociais. A repetição opera de diferentes maneiras, em diferentes aspectos, com diferentes resultados. Vi alguém dizer, no Goodreads, em tom pejorativo, que Bernhard é “a broca de dentista da literatura contemporânea”. Desconfio que ele concordaria com a sentença e até sentiria alguma satisfação com ela.

Me interessa sobremaneira a repetição enquanto recurso estilístico e, como tudo, pode ser bem ou mal usada. A repetição na música funciona como liga, como ameaça, prova ou contemplação. Estilos inteiros tem na repetição a essência de sua razão de ser: o drone, o ambient, o harsh noise, o stoner, o sludge, o minimalismo, o no wave, etc. Ler Bernhard é como atravessar um disco inteiro do Merzbow, apreciar o niilismo claustrofóbico e pesado de um Swans em “Public Castration Is A Good Idea”, a dissonância de um Glenn Branca, a massa sonora do Isis ou embarcar na observação dark do ambient e minimal techno de um Gas.

Exemplos de estilos, artistas e discos que exigem mais do público. Que levam a sua proposta ao limite, que demandam um comprometimento maior. Da mesma maneira que não dá para ler Thomas Bernhard impunemente. Aniquilação absoluta é o que propõe Bernhard em “Extinção”, seu último romance, de 1986 — para muitos, o melhor — infelizmente esgotado nas livrarias brasileiras. Nas 500 páginas de destruição completa, frase a frase, linha a linha, Bernhard acaba com a Áustria, a família do personagem (um a um), o nazismo, a igreja católica, os modos, o espírito de uma época, as convenções sociais, ou mesmo a literatura — sobretudo alemã — como o que extraí neste trecho:

“E, se hoje qualquer um que escreva cartões postais se intitula escritor, disse a Gambetti, eu próprio, mesmo depois das centenas de escritos que já ensaiei e que já compus, não me denomino escritor. Aliás odeio a maioria dos escritores, disse a Gambetti, amo pouquíssimos, mas estes com todo o fervor que disponho. Evitei minha vida inteira os escritores, os escriturários, como prefiro defini-los, sobretudo os alemães, disse a Gambetti, minha vida inteira também não me sentei com eles à mesma mesa, pois, assim disse a Gambetti, conhecer um escritor e sentar com ele à mesma mesa, isso eu imagino como a coisa mais repulsiva que se possa conceber. (…) Os escritores como um todo são a gente mais repulsiva que existe, disse a Gambetti, nos meus primeiros anos de estudo eu de fato procurava os escritores, os importunava, como tenho de admitir, os surpreendia e por fim os tomava de assalto, como tenho de admitir, disse a Gambetti, me insinuava em sua presença a fim de espreitá-los. Depois de minhas visitas eu os odiei sem exceção e não pude mais ler nenhuma de suas obras, Gambetti. Todos esses escritores a quem visitei e mais ou menos espreitei, hoje os considero pessoas baixas, sórdidas mesmo, estúpidas mesmo, que alcançaram uma certa fama literária, disse a Gambetti, mas cuja companhia posso dispensar, pois não me oferecem nada além de sua mediocridade. Tudo nessa gente é medíocre, disse a Gambetti. Tudo nessa gente é pequeno-burguês e lamentável. Tudo nessa gente fede a maldade sórdida e a baixeza filistéia, cumulada com megalomania.”

Em outra passagem, sobra também para a fotografia:

“Tirar uma fotografia é zombar de uma pessoa, Gambetti, dissera, nesse sentido todos os que fotografam, mesmo se fizerem disso uma profissão e provavelmente até uma grande arte, nada mais são que zombeteiros da humanidade. A fotografia em si é a maior zombaria que existe, por assim dizer a maior de todas as zombarias do mundo. Mas hoje, dissera a Gambetti, já existem cem vezes mais pessoas fotografadas do que reais, vale dizer naturais, isso deveria dar o que pensar.”

O estilo de Bernhard vai ao extremo, como em “Extinção” e suas diatribes são, por diversas vezes, cômicas. Franz-Josef Murau não é Bernhard, claro, ao mesmo tempo que o escritor guarda com o personagem semelhanças inegáveis, como seu desprezo e sua repulsa pela Áustria, mais que meramente alegórica, como pode ser atestado em “Origem”, esta sim uma autobiografia, das mais marcantes, sublimes e bem estruturadas que já li, fundamental para compreender a formação do homem e do escritor Bernhard. Publicados em um único volume pela Cia das Letras, “Origem” trata-se, na realidade, de cinco relatos autobiográficos lançados separadamente entre 1975 e 1982: “A causa”, “O porão”, “A respiração”, “O frio” e “Uma criança”. Todos eles, aliás, monolitos de um parágrafo único. Logo no início de “A Causa” seu asco pela Áustria fica evidente:

“Povoada por duas categorias de pessoas, os negociantes e suas vítimas, a cidade só se deixa habitar de modo doloroso por aquele que ali aprende e estuda, de uma forma que há de molestar toda e qualquer natureza, ou mesmo de perturbá-la e destruí-la com o passar do tempo, uma cidade, portanto, muitas vezes habitável apenas de modo pérfido-letal. As condições climáticas extremas, por um lado, sempre irritantes e enervantes, de todo modo insalubres a quem habita e, por outro, a arquitetura salzburguiana, sob tais condições climáticas atuando sempre de forma devastadora sobre o estado de espírito das pessoas; o clima pré-alpino, que, tenham esses pobres coitados consciência disto ou não, é decerto prejudicial à saúde, oprime com consistência cabeça, corpo e tudo mais desses seres inteiramente expostos a semelhantes condições naturais, produzindo sem cessar e, com incrível desconsideração, moradores irritantes, enervantes, insalubres, humilhantes, ofensivos, dotados de grande vileza e baixeza — tudo isso, enfim, segue gerando salzburguianos, os naturais dali e os que para ali se mudaram, todos perseguindo a estreiteza de suas obsessões, de seus absurdos, da própria estupidez, de seus negócios e melancolias brutais, fontes inesgotáveis de renda para todos os médicos e todas as funerárias possíveis e imagináveis, entre os muros gélidos e úmidos adorados por predileção, mas odiados com a força da experiência vivida pelo aprendiz e estudante que fui nessa cidade trinta anos atrás”.

Sobrevivendo a uma infância e adolescência duríssimas entre os anos 30 e 50, a inúmeras doenças (e seu périplo por hospitais e procedimentos invasivos para tentar curar complicações pulmonares ocupa boa parte do livro), sobrevivendo ao nazismo, ao internato, a ausência do pai, a relação tortuosa com a mãe, à morte do avô, figura mais importante na vida de Bernhard, quando ele deixa entrever algum agradecimento e algo próximo da ternura:

“Os avós são os professores, os verdadeiros filósofos de cada um de nós; eles sempre escancaram as cortinas que os outros vivem fechando. Quando estamos com eles, vemos o que é real, não vemos apenas a plateia, mas o palco também, e vemos tudo que se passa nos bastidores. Há milênios, os avós criam o demônio onde, sem eles, só haveria o bom Deus. Graças a eles, ficamos conhecendo o drama por inteiro, e não apenas a farsa de um fragmento miserável e mentiroso. Os avós enfiam a cabeça dos netos onde ao menos há algo de interessante, ainda que nem sempre elementar, para se ver e, com essa sua atenção sempre voltada para o essencial, nos redimem da pobreza desoladora em que, sem eles, logo sufocaríamos inexoravelmente.”

Franz-Josef Murau não é Bernhard, mas guarda com ele a pecha de encrenqueiro, de persona non grata, de quem tem por hábito revelar o que os outros detestam e não tem coragem de encarar ou assumir. Outra passagem de “Origem” é singular para demonstrar como escritor e personagem se confundem:

“A fim de se salvar, os interlocutores não acreditam e com frequência descreem do que há de mais óbvio. As pessoas se recusam a ser perturbadas pelo encrenqueiro que lhes tira o sossego. Sempre fui esse tipo de encrenqueiro, a vida toda, continuo sendo e sempre vou ser o encrenqueiro que meus parentes sempre julgaram que eu era; até onde minha memória alcança, já minha mãe me chamava de encrenqueiro, assim como meu tutor, meus irmãos, sou sempre o encrenqueiro, a cada momento, em cada linha que escrevo. Minha existência sempre perturbou, o tempo todo. Sempre perturbei e irritei as pessoas. Tudo que escrevo, tudo que faço é perturbação e irritação. Minha vida inteira, toda a minha existência nada mais é que perturbação e irritação ininterruptas. Porque chamo a atenção para fatos perturbadores e irritantes. Existem aqueles que deixam os outros em paz e aqueles que perturbam e irritam, categoria à qual pertenço. Não sou o tipo de pessoa que deixa os outros em paz, nem quero ser uma pessoa assim”.

A existência em si, lembra ele, é tudo lugar-comum.

O que vale mais, o palavrório vazio ou a essência elementar? Fica-se no nonsense. Ouvi tudo, não segui coisa nenhuma. Continuo experimentando ainda hoje: não saber no que vai dar é algo que fascina o solitário que voltei a ser. Há tempos não pergunto mais pelo sentido das palavras, que só fazem tornar tudo mais incompreensível. A vida em si, a existência em si, é tudo lugar-comum. Quando nos lembramos do passado, como faço agora, as coisas vão pouco a pouco se resolvendo por si mesmas. A vida toda convivemos com pessoas que não sabem nada sobre nós, mas afirmam constantemente saber tudo; nossos parentes e amigos mais próximos não sabem nada, porque nós mesmos pouco sabemos de nós. Passamos a vida inteira nos investigando, vamos sempre até os limites dos nossos recursos intelectuais, e desistimos. Nossos esforços terminam nos exaurindo até a inconsciência, e em depressão fatal, sempre mortífera. O que não ousamos dizer a nós mesmos, porque somos de fato incompetentes, outros tem a ousadia de nos dizer, recriminando-os e, deliberadamente ou não, ignorando tudo que há em nós e dentro de nós. Vivemos todos sendo descartados pelos outros e, a cada novo dia, precisamos nos reencontrar, nos reajuntar e nos recompor. Com o avanço da idade, pronunciamos nós mesmos veredictos mais duros e temos de suportar a dureza redobrada dos veredictos dos outros. A incompetência impera em todos os relacionamentos e, com o tempo, acaba por produzir a natural indiferença. Depois de anos de suscetibilidade e vulnerabilidade, tornamo-nos já quase insuscetíveis e invulneráveis, registramos os golpes, mas hoje não somos mais ultra-sensíveis como no passado. Desferimos golpes mais duros e suportamos golpes mais duros. A vida fala uma língua mais sucinta, mais aniquiladora, que é a que nós próprios falamos hoje, já não somos sentimentos a ponto de ainda ter esperança. A desesperança nos trouxe clareza sobre as pessoas, as coisas, as relações, o passado, o futuro e assim por diante. Atingimos a idade na qual somos nós mesmos a prova viva de tudo que nos sucedeu ao longo da vida.

Bernhard teve uma carreira extremamente prolífica — quase inimaginável diante de uma vida conturbadíssima, característica presente, é verdade, na vida de tantos escritores — com dezenas de romances, peças de teatro, novelas, contos, poemas e outros escritos. Nesta boa análise sobre a obra de Bernhard, Antônio Xerxenesky afirma que:

“A negatividade brutal de Bernhard parece derivar de Beckett; suas diatribes às vezes lembram a Viagem ao fim da noite, de Céline; seus poemas são comparados aos de Paul Celan, especialmente por terem sido escritos tendo como pano de fundo um passado nacional-socialista recente. Em suma, Bernhard tem mais em comum com os classificados como modernistas do que com outros nomes da literatura contemporânea. Na sua obra não há espaço para a alteridade, para a abertura em direção ao outro. A sua escrita se dá como forma de desempacotar tudo, a guerra, a falta de esperança, o pior de si — como afirma em Origem. É uma experiência que só se mostra possível a partir da proximidade com a morte”.

Brutalíssimo, sufocante, repetitivo, mórbido e mordaz, apesar das referências e comparações sempre possíveis, Bernhard ocupa lugar único no cenário da literatura do século XX, o século dos extremos que ele representa tão magistralmente bem.

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Maurício Angelo
Minas Não Há Mais

Jornalista e escritor. Autor de “Meu Mundo é Hoje” e “11 Rounds”, de contos e “Latitude 19 & Outros Hematomas”, de crônicas e poemas.