A Armadilha Do Ego

Natri (Fabio Natrieli)
MIND o>er matter
Published in
7 min readAug 28, 2021

Faça a imagem de uma pessoa que pratica yoga e medita. O que diz o senso comum?

O senso comum nos induz a pensar que as pessoas que meditam, que são bem sucedidas nesta empreitada pessoal, com o passar do tempo, tornam-se menos centradas em si, tornam-se pessoas melhores e mais compreensivas com os demais.

Mas, será que é assim mesmo?

Nem sempre.

Isso é o que nos sugere dois artigos publicados sobre o assunto, que veremos mais abaixo.

Os dois artigos sugerem algo curioso: as pessoas que são boas em meditar e praticar yoga "sentem que são melhores que as outras pessoas no geral".

O resumo do artigo, publicado no periódico Psychological Science, diz o seguinte:

"Muitas vezes acredita-se que as práticas mente-corpo, como ioga e meditação, instilam um “ego silencioso”, o que implica menos auto-aprimoramento. Em dois experimentos, no entanto, Gebauer et al. (2018) demonstraram que as práticas mente-corpo podem, na verdade, aumentar o autoaprimoramento, particularmente porque tais práticas se tornam bases autocentradas para a autoestima (…) Em suma, fornecemos novas evidências contra a perspectiva do aquietamento do ego e em apoio à interpretação da autocentralização das práticas mente-corpo."

Ou seja, ao invés da prática meditativa controlar o eu, o ego, é como se o resultado fosse o oposto do que se pretende.

A pessoa tem a sua autoestima melhorada e, como consequência, ela se sente melhor que as outras pessoas.

Mais ou menos como esta tirinha resume bem:

Claro que isso não é uma regra e tampouco significa que tais práticas tenham sempre uma influência negativa na vida das pessoas. Como tudo na vida, depende do uso que cada um faz daquilo que recebe.

Aliás, cabe dizer que isso tampouco é novidade.

O que os autores empiricamente observaram apenas confirma o que os grandes mestres sempre souberam e advertiram aos seus discípulos: o ego é ardiloso.

Não é mera coincidência que tanto a soberba como a cobiça figurem como pecados capitais.

Não deve ser à toa que o livro de Eclesiastes comece assim: "Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade."

Poderíamos também lembrar a advertência feita reiteradas vezes ao longo da bíblia sobre não julgar, sobre apontar o cisco no olho do outro e ignorar a trave no seu.

Tampouco é mera coincidência que logo no começo da bíblia, em Gênesis, também se recomenda que “lembra-te que és pó, e que ao pó hás de voltar”.

Aliás, sobre pó, tem algo a mais que pode ser dito.

Como escreveu o teólogo Felipe Magalhães, na tradição cristã, "muito se repete um mantra-oração: Jesus, manso e humilde de coração, fazei de nosso coração semelhante ao vosso."

Tal oração encontra a sua base na própria Bíblia, quando o próprio Jesus convida os seus discípulos a imitá-lo "“[…] aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração” (Mateus, 11,29).

Humildade e humilhação possuem a mesma raiz etimológica. Ambas derivam da palavra húmus, que pode também ser traduzida como terra, chão. Então, uma perspectiva é relacionar os humildes e humilhados a uma situação de pobreza, seja material ou espiritual, de estarem rebaixados em sua dignidade ao nível do chão, jogados à terra.

Mas, ainda de acordo com o teólogo Felipe Magalhães, "(…)para além desse lugar usual possível, para a palavra humildade, interessa-nos, aqui, refletir a partir de outro lugar, que também se radica no contexto etimológico da palavra: húmus. Curiosamente, também a palavra homem, do latim homo, pertence à mesma família da palavra húmus. Para um cristão, a associação com a narrativa bíblica do Gênesis é inevitável. Do barro, do chão, Deus modela Adão, que, literalmente, significa o terroso.

"Tornar-se humildade, nesse contexto, corresponde a assumir uma virtude. Esse é o ponto de partida, aliás, da espiritualidade quaresmal. Na quarta-feira de cinzas, celebração em que é dada a largada para o caminho de conversão em preparação à Páscoa, católicos e católicas são marcados, em suas frontes, com cinza, enquanto são exortados: 'Lembra-te que és pó, e que ao pó hás de voltar’, em clara referência bíblica. Bonita a dimensão simbólica de tudo isso: ao assumir o caminho de converter-se, isto é, de voltar para Deus numa mudança de mentalidade, é preciso perceber qual lugar ocupamos na vida, diante de nós mesmos, dos outros e de Deus. Ser humilde significa, então, não dar para si uma importância maior que a que realmente se tem. Não se trata de modéstia, definitivamente, mas de reconhecer a si mesmo, num processo profundamente espiritual, de dar-se o valor que realmente se tem."

Também não deve ser coincidência que, em oposição à soberba, ao orgulho, à cobiça e à vaidade, tenhamos a temperança, a humildade, a modéstia e a prudência como virtudes a serem cutlivadas, tanto para os gregos como para a tradição cristã, para não falarmos de outras tradições mais.

Inclusive, os gregos e cristãos compartilham as mesmas 4 virtudes cardeais clássicas, que são a justiça, fortaleza, prudência e temperança, que compõem as 7 virtudes celestiais, quando somadas com a fé, esperança e caridade.

Ainda existe na tradição cristã, além das sete virtudes celestiais que citamos acima, as sete virtudes derivadas do poema épico Psicomaquia, escrito pelo poeta cristão Prudêncio do século IV, intitulando a batalha das boas virtudes e vícios malignos.

Aliás, também não é à toa a indicação de anjos caídos em textos apócrifos.

Neles os anjos são corrompidos pela cobiça e pela vaidade e desejando maior poder, são expulsos do Paraíso para, geralmente, mudar de lado, caindo em desgraça. O mais famoso dos Anjos Caídos é o próprio Lúcifer, que teria sido o mais sábio, poderoso e o mais belo anjo criado por Deus, que caiu por inveja, soberba, cobiça e vaidade.

Esta ideia de anjo caído não se encontra apenas na tradição cristã, seja protestante ou católica. Os mais atentos encontrarão ecos de tais referências entre os mitos antigos até suas reproduções modernas, seja no embate entre Cronos e Zeus a Luke Skywalker e Darth Vader. A essência deste mito se repete como um aviso que sobrevive ao tempo por permanecer atual, porque apesar da mudança de época, aparentemente não se muda a natureza humana tão facilmente.

Portanto, o resultado do estudo não deve causar espanto ou surpresa, sendo não apenas compreensível, mas esperado e previsível.

O que não significa que possa ser generalizado. Fato é que é próprio da natureza humana se deixar levar pela tentação de querer ser (ou imaginer ser) melhor que os outros.

A prática espiritual deve nos levar a conseguir sermos melhor do que uma pessoa: quem se era ontem. É um processo individual, não comparativo.

A ideia não é ser melhor que os outros, mas para os outros. Eis a diferença.

A tentação de nos atribuirmos méritos especiais pelo nosso avanço mental e espiritual é algo natural e previsível. Por isso, também foi dito: “entre vocês não deve ser assim: ao contrário, aquele dentre vós quiser ser grande, deverá ser servo […]” (Marcos 10,43).

Ou seja, o estudo não revela uma novidade, constata empiricamente o que intutitivamente já há muito se sabia: a armadilha do ego. Ele pode nos pregar peças, justamente quando pensamos que o temos sob controle. Para isso também há técnica e recomendação, já descritas na bíblia: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.” (Mateus 26,41).

Isso também está contido na nossa cultura ocidental. Quem não se lembra do final do filme "O Advogado Do Diabo"?

Bem antes do primeiro estudo ter sido publicado, Mooji escreveu sobre como é fácil se engajar em uma causa nobre e cair na armadilha do ego logo em seguida:

"Se você acha que é mais “espiritual” andar de bicicleta ou usar transporte público para se locomover, tudo bem, mas se você julgar qualquer outra pessoa que dirige um carro, então você está preso em uma armadilha do ego.

Se você acha que é mais “espiritual” não ver televisão porque mexe com o seu cérebro, tudo bem, mas se julgar aqueles que ainda assistem, então você está preso em uma armadilha do ego.

Se você acha que é mais “espiritual” evitar saber de fofocas ou notícias da mídia , mas se encontra julgando aqueles que leem essas coisas, então você está preso em uma armadilha do ego.

Se você acha que é mais “espiritual” fazer Yoga, se tornar vegano, comprar só comidas orgânicas, comprar cristais, praticar reiki, meditar, usar roupas “hippies”, visitar templos e ler livros sobre iluminação espiritual, mas julgar qualquer pessoa que não faça isso, então você está preso em uma armadilha do ego.

Sempre esteja consciente ao se sentir superior.
A noção de que você é superior é a maior indicação de que você está em uma armadilha egóica.

O ego adora entrar pela porta de trás. Ele vai pegar uma ideia nobre, como começar yoga e, então, distorce-la para servir o seu objetivo ao fazer você se sentir superior aos outros; você começará a menosprezar aqueles que não estão seguindo o seu “caminho espiritual certo”.

Superioridade, julgamento e condenação.
Essas são armadilhas do ego.”

Não caiamos nela.

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