A beleza do trivial

Natri (Fabio Natrieli)
MIND o>er matter
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7 min readMay 25, 2015

Todos nós temos uma tendência natural a valorizar somente grandes eventos de nossas vidas. Repare: à medida que desprezamos as tarefas rotineiras, costumamos valorizar excessivamente aqueles (poucos) momentos extraordinários.

Estamos sempre inquietos, pensando no próximo feriado; no próximo projeto; férias; no próximo carro; no lançamento do próximo telefone; naquele grande show; na chegada do filho; do próximo filho e do próximo e por aí vai.

Que momentos como estes, extraordinários, são ótimos de serem vivenciados, todos concordamos. De fato eles dão um sabor especial à vida. Quando os experimentamos, parece que a vida faz mais sentido.

Até a nossa própria fisiologia é assim. Nosso cérebro parece trabalhar melhor quando recebemos recompensas por aquilo que almejamos e por fim conquistamos. Dizem os cientistas que ao completarmos objetivos, o nosso cérebro libera um hormônio (neurotransmissor) chamado dopamina, que nos dá a sensação de prazer. Isso explica, em parte, a motivação que temos de continuar em frente, objetivo após objetivo. Este conhecimento também ajuda a explicar o sucesso dos videogames ao longo da história.

Portanto, nada mais natural que o homem sinta-se satisfeito com os picos de emoção a cada meta conquistada. Por exemplo, um estudante sentir prazer ao conquistar o título de Doutor, depois de se esforçar por anos na graduação, mestrado e doutorado. Natural também um profissional sentir-se especialmente feliz por receber um aumento ou ser contratado para o emprego que tanto desejava. Da mesma forma, isso se dá com o esportista, que sente-se realizado quando cruza a linha de chegada daquela maratona que projetou completar com antecedência — e se você reparar, não à toa, todos os aplicativos de corrida também usam dos conceitos de gamificação para incentivar o usuário a baterem as suas metas na corrida, com todos aqueles prêmios de medalhas virtuais, como reconhecimento ao esforço a cada meta alcançada.

Enfim, parece que existe uma relação entre a carga de esforço empregada em um objetivo e o prazer que isso gera a quem o conquistou, como recompensa natural e imediata. Mas veja, conquanto prazeirosos estes momentos extraordinários são, por sua própria natureza e definição, são também escassos. Momentos extraordinários têm de ser assim, obrigatoriamente: intensos e fugazes. Não fosse assim, tampouco nós saberíamos apreciá-los. É justamente porque são escassos que lhes atribuímos tanto valor. Como na economia.

Até aí, tudo certo. O problema começa quando estes momentos de êxtase eclipsam o brilho da vida em seu dia-a-dia. O problema é a gente começar a acreditar que os intervalos entre o final de semana são apenas dias para se esquecer.

Se aprendermos a olhar o que chamamos de rotina com outros olhos, existe a possibilidade de enxergarmos a beleza da vida em todos os seus detalhes. Assim, evitamos desperdiçar boa parte da vida vivendo apenas na entressafra dos momentos extraordinários.

É como diz aquela frase: “A vida é o que acontece enquanto você faz planos”.

Eu imagino que quando estiver em meu leito de morte, não vou ficar pensando, saudoso, sobre o quão fantástica foi aquela viagem a Paris, ou como foi incrível quando concluí o Mestrado, ou de como fiquei feliz de receber uma promoção, ou de como me senti realizado quando comprei um carro novo.

Não estou aqui menosprezando tais prazeres. A satisfação que temos em atingir os objetivos certamente deixa uma marca em nossa alma e também nos renova de energia para irmos além, para traçarmos outra meta e assim, de meta em meta, caminhamos. Contudo, seria um tremendo desperdício de tempo e espaço se só nos permitimos sentir prazer em viver estes momentos especiais.

O prazer de viver eu quero sentir no dia-a-dia, a cada hora, em cada minuto, a cada respirar, a cada batida do coração… a todo instante. No presente. Aqui e agora.

O prenúncio da morte, suponho, me fará rememorar, de forma nostálgica, sobre todas as coisas mais triviais da minha vida e não sobre grandes eventos e conquistas.

Certamente, eu vou me lembrar com carinho do dia-a-dia com a minha esposa, com todas as dificuldades que tivemos — e temos! — ; e de como superamos todas nossas limitações e diferenças para construir algo tão grandioso para nós, nossos filhos e outros tantos mais. Vou sentir saudades do apartamento velho e pequeno em que vivemos momentos felizes ali na Teodoro Sampaio.

Eu vou olhar cada ruga no rosto dela, se tal privilégio me for concedido — sim, porque embora muitos temam a velhice, envelhecer é um privilégio que muitos não desfrutam — , e vou me lembrar das coisas mais simples da vida, que não são simplórias, como por exemplo, o fato de gostarmos de nos deitar apertados no pequeno sofá da sala para assistir filmes.

“A felicidade é simples. Difícil é ser assim tão simples”

Eu vou me lembrar, querendo voltar no tempo, de quando saíamos para passear com nosso filho, ainda bebê, pelas ruas do bairro, despretensioamente, após um dia de trabalho, empurrando o carrinho e falando sobre coisas boas e também sobre nossas dúvidas e aflições.

Eu vou olhar para meu filho e me lembrar das alegrias que ele me deu e sequer imagina, de como ele, meu filho, me fazia sentir a pessoa mais especial e amada do mundo; do sorriso que ele abria assim que me avistava, tão breve eu pisava dentro de casa, de volta do trabalho. Vou querer voltar no tempo e revivê-lo engatinhando para meus braços, desejando meu abraço.

Pense em alguém que você ama e que já não está mais aqui. Hoje, imagino que tanto faz as condições em que você estaria com tal pessoa— com dinheiro, sem dinheiro, com os mais variados problemas—, tudo isso seria um pormenor sem qualquer importância.

Faz algum tempo, eu tive um momento de epifania com a natureza depois de uma longa meditação. Quando eu digo longa, quero dizer longa mesmo.

Foi um sentimento indescritível. Foi como reaprender a sentir o mundo ao meu redor. Isso aconteceu em uma manhã tranquila, quando eu caminhava em meio a um pouco de natureza.

Aquele dia, tudo estava igual como sempre esteve. Era um pátio e um pequeno jardim que eu conhecia bem. Tudo estava como sempre esteve. Acontece que eu estava diferente (por conta da longa meditação). Eu estava “ouvindo” mais do que o habitual. Coisas banais me tocaram: senti a brisa mexendo os galhos da árvore, o barulho que fazia, percebi os raios de Sol me aquecendo a face e senti a beleza de tudo aquilo, que, em verdade, sempre estiveram presentes ali, mas que eu nunca tinha notado ou valorizado daquela forma.

Imediatamente, eu fui tomado por uma emoção muito forte e chorei de alegria, regozijo, mas ainda mais que isso, em um misto de alegria e agradecimento. Parecia que ali eu estava vivo como poucas vezes havia me sentido e que a Natureza, singela mas trivial, era de fato a única Verdade e não as coisas que o homem fabrica e que a gente tanto valoriza, a ponto de matarmos uns aos outros por isso.

Difícil até de explicar. Mas é a beleza do trivial.

Não devemos nos deixar enganar pela cortina de fumaça da realidade, nem sermos traídos por confiarmos exclusivamente em nossos sentidos mais vulgares, que nos sugerem que esse mundo ilusório que nos cerca e nos cega — que os hindus sabiamente chamavam de Maya — é tudo que há, negligenciando aquilo que temos de melhor e mais nobre dentro de nós.

A crise do mercado, o dinheiro, a falta de dinheiro, problemas de relacionamento, todos os problemas que enfrentamos, tudo não passa de uma grande distração que só nos afasta do cerne de estarmos aqui. Conhecer a nós mesmos e prestar serviço aos outros.

O que de fato importa é tudo aquilo em que, frequentemente, não colocamos atenção.

Eu certamente vou sentir falta de todas estas pequenas grandes coisas que, hoje, poderiam passar desapercebidas se me deixasse levar pela superficialidade das circunstâncias, que sabemos ser passageiras e efêmeras.

Certa vez, Rubem Alves contou esta história sobre uma conversa com uma amiga sua e sobre a tal felicidade.

“(…)Eu estava conversando com uma amiga e ela me contou o seguinte: ‘Rubem, eu agora mesmo faria um trato com Deus. Eu Lhe daria um ano de minha vida se Ele me desse uma das noites em minha casa. Porque de noite lá em casa, em frente ao borralho do fogão à lenha, estava o meu pai, a minha mãe… E tinha pipoca. A mãe dizia, ‘eu vou lá fora, buscar umas folhas de laranja para fazer um chá pra nós’. E toda a noite, meu pai falava pra ela, ‘mulher, você vai ficar estuporada’. Toda noite o meu pai falava e ela nunca ficou estuporada. Isso pra mim é parte do céu. Eu acho que que cada um tem o seu céu diferente. O que a gente quer no céu é recuperar a felicidade efêmera que a gente teve em algum momento. Portanto, cada pessoa tem uma felicidade diferente’”.

Talvez, a grande beleza da vida não tenha nada de especial, pelo contrário, esteja em tudo aquilo que a vida tem de mais trivial.

“Que a felicidade não dependa do tempo, nem da paisagem, nem da sorte, nem do dinheiro. Que ela possa vir com toda simplicidade, de dentro para fora, de cada um para todos. Que as pessoas saibam falar, calar, e acima de tudo ouvir. Que tenham amor ou então sintam falta de não tê-lo. Que tenham ideais e medo de perdê-lo. Que amem ao próximo e respeitem sua dor. Para que tenhamos certeza de que: “Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade”.

Carlos Drummond de Andrade

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