Controlar o vento ou ajustar as velas?

Natri (Fabio Natrieli)
MIND o>er matter
Published in
7 min readApr 28, 2016

Todos nós gostamos de ter, ou de pensar que temos, as coisas sob controle.

Ter controle do mundo ao nosso redor é uma ideia reconfortante, ainda mais sabendo que nós somos naturalmente avessos às mudanças e alimentamos o medo pelo desconhecido.

Sofremos quando as coisas não saem como desejamos e quando as pessoas não agem como esperávamos que elas agissem.

Buscamos fórmulas para termos controle total sobre os resultados de nossas ações. Sofremos quando isso não acontece: "Puxa, mas eu fiz tudo certo, eu segui o script direitinho, como é que as coisas não aconteceram como eu queria?”

Paradoxalmente, naquilo que podemos de fato exercer algum controle — nós mesmos — é justamente onde menos colocamos atenção.

Em Administração, por motivos óbvios, existe uma preocupação latente sobre gestão e controle. Uma das abordagens mais populares sobre o tema, que tem a ver com ter controle, é a questão da cultura organizacional. Há anos, acadêmicos e gestores debatem se é ou não possível gerenciar a cultura de uma organização. Tem gente que acha que sim. Tem gente que acha que não.

Uma forma de pensar a possibilidade de controle é entender, primeiro, o tipo de sistema que se deseja gerenciar.

Para o que estamos falando aqui, podemos classificar os sistemas em dois tipos: complicado e complexo.

avião da KLm sendo montado, um sistema complicado

Um avião, como um Boeing 747, é um sistema complicado. Existem milhares de pequenas partes que precisam trabalhar juntas simultaneamente. Apesar disso, tudo no sistema pode ser mapeado; até o menor parafuso e mesmo que você mude uma parte, ainda é possível prever suas consequências e também, dispondo de um projeto, repor qualquer peça sem qualquer prejuízo à estrutura.

Um prato de spaghetti, um sistema complexo

Agora veja um prato de spaghetti: apesar de ter apenas algumas dezenas de partes, é impossível prever como o spaghetti vai se comportar conforme seus fios são consumidos. Além disso, é bastante improvável que, mesmo com a receita em mãos, você o reproduza identicamente ao outro, fio por fio. É esta característica que faz dele um sistema complexo.

Quem imagina que é capaz de ter o controle sobre tudo e todos, deve imaginar que o mundo é sistema complicado, como o Boeing 747.

Mas, olhando bem ao redor, acredito que, para para a maioria de nós, o mundo seja um sistema complexo, como o spaghetti.

Se admitirmos isso (o mundo como um sistema complexo), então, por lógica, devemos admitir que é virtualmente impossível controlá-lo em todas as suas minúcias.

Se este pensamento estiver correto, é uma ilusão pensar que a gente exerce controle sobre qualquer coisa, e até sobre uma boa parte de nós mesmos.

Se você discorda, se você realmente acha que possui total controle sobre você mesmo, me explique como aquela sua corrida desesperada para ir ao toilette ou um ataque de raiva, surto significa controle.

No campo das decisões, não é lá muito diferente: estudos recentes de psicologia, neurociência e economia comportamental sugerem que muito das nossas decisões são mais motivadas pelo nosso inconsciente do que conscientemente.

Agora, com isso eu não quero tirar a sua esperança em ter total controle sobre as coisas: se você tiver um mapa detalhado do projeto do universo descrevendo toda sua mecânica, contendo todas as possibilidades de manifestação de todas as suas peças constituintes, em todos os níveis possíveis, conhecendo a lógica com que foram criadas, capaz de prever a totalidade das ações e reações de tudo e todos, juntando o passado, presente e futuro em uma estrutura coerente, única e administrável, e que tenha como resultante as suas expectativas atendidas, bem, for este o seu caso, então sim, apesar de complicado, você tem todo o controle que deseja no sistema.

Você pode controlar um experimento em laboratório, mas não a dinâmica da história. Você pode controlar a temperatura em que a água ferve, mas não a economia.

Para todos os outros que, como eu, não se identifica com o caso acima, talvez seja suficiente termos cada vez mais domínio sobre nós mesmos, fazendo a parte que nos cabe — de acordo com o que cada um reconhece como sendo a sua parte — , sem nos preocuparmos tanto em controlar os resultados da ação.

Será que não está aí manifestada a forma mais elevada de renúncia?

Não a renúncia em que o indivíduo vira as costas para o mundo e abdica de interagir com as coisas que lhe são próprias, como o trabalho, mas uma renúncia na qual ele permanece ativo, trabalhando, cuja renúncia se reflete em não desejar usufruir do fruto do seu trabalho.

Por incrível que pareça — incrível porque quando falamos em renúncia, muitos de nós somos remetidos à imagem de um guru asceta meditando sozinho no topo da montanha — , esta ideia de renúncia ao fruto do trabalho, mas não ao dever do trabalho, é um conceito bastante reforçado no Bhagavad Gita:

“Floridas são as palavras das pessoas não sábias que seguem os Vedas* ao pé da letra, ó Partha; elas dizem, ”além disto, não há nada!”

Suas mentes estão cheias de desejos, sua meta mais alta é o paraíso, sua preocupação é uma boa reencarnação, todas suas ações e rituais estão realizadas unicamente para conseguir prazer e poder.

Para aqueles que estão apegados aos prazeres e ao poder, que estão ligados com isto, a vontade decidida, dirigida firmemente até o Samadhi, é inacessível!

Os Vedas ensinam sobre as três gunas! Eleva-te sobre estas, ó Arijuna! Seja livre da dualidade e permaneça constantemente em harmonia, indiferente as posses terrenas e arraigado no Atman!

Para aquele que conheceu ao Brahman, os Vedas são tão úteis como um estanque pequeno em uma área inundada!

Considera só o trabalho que fazer e não as recompensas que receberás por havê-lo feito! Que não seja teu impulso obter as recompensas de tua atividade! Mas tampouco te entregues à inatividade!

Renunciando o apego à recompensa por teu trabalho, faz-te igualmente equilibrado tanto durante os êxitos como durante os fracassos, ó Dhananjaya! O yoga se caracteriza pelo equilíbrio!”

Bhagavad Gita 2:43–48

(*Os Vedas são os livros antigos que determinavam a cosmovisão pagã dos hinús antes da vinda de Krishna.)

Entenda trabalho, neste caso, como algo além de sua profissão. Portanto, não estamos falando de abdicar do salário, da recompensa do seu trabalho. Estamos falando do seu trabalho como ócio, um trabalho intelectual, qualquer coisa que lhe dê alguma satisfação na vida.

Estamos questionando qual é a sua cota de responsabilidade em relação à desordem que você tanto reclama, como questionou Freud.

Parece que no final das contas, estamos falando sobre ação à omissão.

É por isso, sob esta ótica, que gosto muito deste trecho específico do livro do Herman Hesse, prêmio Nobel de Literatura em 1946:

“Esses meninos que partiram tem para mim, apesar de tudo, alguma coisa de imponente, assim como o anjo rebelde Lúcifer tem certa grandiosidade. Talvez tenham feito uma coisa errada, podemos admitir que cometeram um erro, mas, seja como for, fizeram alguma coisa, realizaram algo, ousaram dar um salto e é preciso coragem para isso. Nós que fomos aplicados, pacientes e ajuizados, não fizemos nada, não demos salto algum.” — Herman Hesse, O jogo das contas de vidro

Neste sentido, existe também um ditado grego que é bastante pertinente em relação a ideia de se ter controle sobre o resultado da ação, ou ainda, sobre fazer o trabalho e usufruir do fruto do trabalho:

Não é assim por acaso que se manifesta a própria natureza?

O Sol não escolhe para quem irá dirigir os seus raios; nem a árvore seleciona quem receberá a sua sombra e tampouco ambos se preocupam em controlar as consequências de suas ações.

Por um acaso, não é a Natureza o sistema mais equilibrado e perfeito que conhecemos até então?

E toda a Natureza é um desejo de serviço?

Esta frase, aliás, sobre o desejo de serviço da natureza, abre um de meus poemas favoritos, da poetisa chilena, Gabriela Mistral, outro prêmio Nobel de Literatura, recebido em 1945, que cito abaixo.

É sobre este tipo de trabalho que estamos falando, o de Servir.

O Prazer de Servir

"Toda a Natureza é um desejo de servir.
Serve a nuvem, serve o vento, servem os vales.
Onde haja uma árvore que plantar, planta-a tu;
Onde haja um erro que emendar, emenda-o tu;
Onde haja um esforço que todos evitam, aceita-o tu.

Sê aquele que afasta a pedra do caminho,
O ódio dos corações e as dificuldades de um problema
Existe a alegria de ser são, e a alegria de ser justo,
Mas existe sobretudo, a formosa a imensa alegria de servir.
Como seria triste o mundo se tudo já estivesse feito,
Se não houvesse um roseiral que plantar, uma obra que iniciar!
Que não te atraiam somente os trabalhos fáceis.

É tão belo fazer a tarefa a que outros se esquivam!
Mas não caias no erro de que só se conquistam méritos
Com os grandes trabalhos;
Há pequenos serviços que são imensos serviços:
Adornar a mesa, arrumar os bancos, espanar o pó.
Aquele é o que critica, este é o que destrói;
Sê tu o que serve.

O serviço não é tarefa só de seres inferiores.
Deus, que dá o fruto e a luz, serve.
Poder-se-ia chamá-lo assim: Aquele que serve.
E Ele, que tem os olhos em nossas mãos, nos pergunta todo dia:
'Serviste hoje? A quem? À árvore, a teu amigo, à tua mãe?'"

se você gostou deste texto, recomendo o texto abaixo:

--

--