O materialismo não é lógico e nem pode ser verdadeiro

Natri (Fabio Natrieli)
MIND o>er matter
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10 min readMar 5, 2021

Olhe para o mundo ao seu redor. Você já parou para pensar sobre a realidade? Ou, mais profundamente, o que queremos dizer quando falamos que alguma coisa é real?

Um sonho, por exemplo, ele existe ou não? Bem, a história que se passa em seu sonho pode não existir, mas a experiência do sonho aparentemente existe.

Qual é a sua visão de mundo sobre a natureza de todas as coisas?

A ideia de que o mundo material, o mundo dos fenômenos, sensível, é apenas parte de um todo maior se sustentou por milhares de anos. Guardadas as respectivas diferenças de cada tradição, esta noção mais ampla de que existem realidades não acessíveis ao homem diretamente sempre esteve presente na literatura humana, seja nas tradições orientais, da Índia, China; das religiões judaico-cristã, gnósticas, maniqueístas; seja através da filosofia antiga dos gregos; da filosofia medieval, dos árabes e europeus. Isso até o estabelecimento da filosofia moderna que, dentro de um contexto mais amplo de desenvolvimento técnico-científico, passou a compreender melhor e, portanto, explicar o mundo dos fenômenos com base na metodologia científica.

Esta junção de fatores deu força à doutrina que chamamos de materialismo.

Segundo o Wikipedia, "o materialismo é uma forma de monismo filosófico que afirma que a matéria é a substância fundamental da natureza e que todas as coisas, incluindo estados mentais e consciência, são resultados de interações materiais. De acordo com o materialismo filosófico, mente e consciência são subprodutos ou epifenômenos de processos materiais (como a bioquímica do cérebro humano e do sistema nervoso), sem os quais não podem existir. Este conceito contrasta diretamente com o idealismo, onde mente e consciência são realidades de primeira ordem às quais a matéria está sujeita e as interações materiais são secundárias."

Apesar de não ser uma ideia original do modernismo, afinal filósofos antigos, como os atomistas, já defendiam concepções filosóficas puramente materiais, é só a partir da modernidade que a concepção materialista de mundo ganha realmente tração para fundamentar as bases dos trabalhos de Hobbes (em contraste com o dualismo de Descartes); Diderot; mais à frente o trabalho do antropólogo ateu alemão Feuerbach; que vai influenciar as ideias de Karl Marx e Engels. A dupla de filósofos alemães irá propor o famoso conceito de materialismo histórico:

A concepção materialista da história parte da proposição de que a produção dos meios de sustentação da vida humana e, ao lado da produção, a troca das coisas produzidas, é a base de toda estrutura social; que em todas as sociedades que surgiram na história, a maneira como a riqueza é distribuída e a sociedade dividida em classes ou ordens depende do que é produzido, de como é produzido e de como os produtos são trocados. Deste ponto de vista, as causas finais de todas as mudanças sociais e revoluções políticas devem ser buscadas, não nos cérebros dos homens, não nos melhores insights dos homens sobre a verdade e a justiça eternas, mas nas mudanças nos modos de produção e troca. Eles devem ser buscados, não na filosofia, mas na economia de cada época particular.
- Friedrich Engels, Socialism: Scientific and Utopian (1880)

Depois de Marx, boa parte do conhecimento acadêmico se desenvolve sobre as bases materialistas, o que nos levou ao positivismo lógico: uma teoria que se desenvolveu a partir do positivismo, que sustenta que todas as afirmações significativas são ou analíticas ou conclusivamente verificáveis.

Acontece que, mais ou menos, na mesma época que emerge o positivismo lógico, o próprio desenvolvimento tecnológico, em uma das áreas mais precisas da ciência, das hard sciences, a física, mais especificamente de uma área nova da física, conhecida como mecânica quântica, colocaram em xeque a crença no materialismo puro e simples.

Se a própria física relativista do começo do século XX — ao mostrar que a matéria e energia são estados intercambiáveis — , já insinuava que o conceito convencional de matéria, como sendo algo tangível até sua mais ínfima parte, estava obsoleto; a física quântica, a ciência mais precisa que temos, emerge com força e postula algo ainda mais desconcertante. Todas as coisas que vemos não são bem coisas.

Além disso, de acordo com o modelo cosmológico vigente mais aceito, apenas uma pequena porcentagem do universo é composta pela "matéria" que conhecemos, sendo todo o resto supostamente composto de "matéria escura" e "energia escura". Usamos o termo supostamente porque não há consenso sobre isso e porque quando os cientistas escrevem "escura" significa simplesmente que eles ainda não sabem do que ela é feita. Nem podemos saber se um dia saberemos identificá-las. Ou seja, no estado atual das coisas, 95% da densidade do universo é composta por alguma coisa que nos é, por ora, indetectável.

Com o desenvolvimento da física quântica, a manutenção do conceito de matéria vigente no começo do século XX se tornou insustentável. Por exemplo, foi o próprio Werner Heisenberg, físico teórico alemão, prêmio nobel de física de 1932, que escreveu:

A ontologia do materialismo se apoiava na ilusão de que o tipo de existência, a ‘realidade’ direta do mundo ao nosso redor, pode ser extrapolada para a gama atômica. Essa extrapolação, no entanto, é impossível … átomos são não coisas."

Como resposta a este dilema, o materialismo tomou uma forma mais ampla, que muitos têm como sinônimos: o fisicalismo — a visão de que tudo o que existe é, em última análise, físico. Ainda citando o Wikipedia, "o fisicalismo filosófico evoluiu do materialismo com as teorias das ciências físicas para incorporar noções mais sofisticadas de fisicalidade do que a mera matéria comum (por exemplo, espaço-tempo, energias e forças físicas e matéria escura)."

As filosofias contraditórias ao materialismo ou fisicalismo incluem idealismo, pluralismo, dualismo, panpsiquismo e outras formas de monismo.

Paradoxalmente, Heisenberg, físico teórico, com base na ciência moderna, foi apoiar-se na filosofia, especialmente na filosofia platônica, para estabelecer o que se chamou a Interpretação de Copenhague.

Como escreveram Leite e Simon (2010), em artigo entitulado "Werner Heisenberg e a Interpretação de Copenhague: a filosofia platônica e a consolidação da teoria quântica", o uso que Heisenberg fez da filosofia grega pode ser considerado como um dos principais elementos na construção de uma doutrina homogênea e unitária dessa interpretação:

"O que resta então? Após todas as interdições epistemológicas, existe algum mínimo rastro de uma ontologia do mundo quântico na visão de Heisenberg? Ao distinguir a Interpretação de Copenhague do “positivismo”, que “toma as percepções sensoriais do observador como elementos básicos da realidade”, o físico alemão afirma que a Interpretação de Copenhague “considera as coisas e processos (passíveis de uma descrição clássica), isto é, o real, como o fundamento de toda a interpretação física”.

O real, contudo, não é o do materialismo: além de “coisas”, ele é composto por “processos”. O fato de nosso conhecimento ser incompleto “por si mesmo”, em função das leis quânticas, não evita a possibilidade de postulação da existência desse real. No lugar dos pontos materiais, do império da res extensa, Heisenberg vê processos e simetrias fundamentais essencialmente platônicas, tidas por ele como “uma característica genuína da natureza” (Heisenberg, 1995, p. 111).

E aqui chegamos aos números e ao pensamento de outro relevante pensador, Kurt Friedrich Gödel, filósofo e matemático austríaco, considerado um dos mais importante lógicos da história, ao lado de nada mais nada menos do que o próprio Aristóteles.

Muito resumidamente, a proposta de Gödel foi usar a própria matemática para demonstrar que a matemática não é capaz de sempre provar afirmações verdadeiras por meio de cálculos. Ele, então, basicamente dividiu a possibilidade de conhecimento do mundo em duas principais vertentes.

A primeira, ele denominou de cosmovisão materialista-cética-positivista, que se apresenta como a base para o raciocínio científico-natural.

A segunda, Gödel identificava como uma cosmovisão filosófica, que ele identificava como metafísica idealista.

Eis um exercício lógico, não formulado diretamente por ele, mas pelo Dr. John H Spencer, físico teórico, em seu livro "The Eternal Law: Ancient Greek Philosophy, Modern Physics, and Ultimate Reality" para rejeitar a crença no materialismo nos moldes que Gödel pensava:

1. As leis da física são fundamentais para todas as ciências.

2. As leis da física são relações matemáticas.

3. Relações matemáticas dependem de números.

4. Todos os números são construídos a partir de 1 e 0 (“2” é apenas 1 + 1, e zero é a ausência de qualquer 1).

5. O próprio zero não tem fisicalidade (afinal, não representa nada).

6. Um em si não tem fisicalidade (você pode encontrar 1 árvore ou 1 carro, mas você não pode encontrar um “1” puro em si mesmo na fisicalidade — se você não acredita em mim, eu o convido a procurá-lo).

7. Visto que os números representam “algo” que não é físico, as leis da física representam e / ou dependem, em última instância, de algo que não é físico.

8. Portanto, devemos concluir que: (a) as leis da física são reais, mas não físicas, o que torna o materialismo falso; ou (b) as leis da física não são reais, o que torna irreal a fundação de toda a ciência.

9. Apesar de seu aparente sucesso extraordinário, se o fundamento da ciência é irreal, então, em última análise, não pode fornecer nenhuma base para a verdade objetiva na realidade e, portanto, não pode ser dito que prova que o materialismo (ou qualquer outra coisa) seja objetivamente verdadeiro.

E aqui, um parênteses.

Você já pensou sobre a natureza do número? Existe este ente matemático?

Ou seja, os números existem em si ou nós os inventamos para descrever a realidade? Bem, de certo modo fazemos isso com as letras também.

Sim, é verdade. Acontece que, diferentemente de um alfabeto, os números parecem estar contidos na natureza. Na elegante matemática que encontramos seja no formato de uma flor e no formato de uma galáxia, como o número Phi.

Ou seja, os números existem de fato?

Se sim, onde estão? Se não existem, o que são aqueles padrões que vemos na natureza, a todo momento, como o Phi, a proporção áurea?

Fecha parênteses.

Gödel, à frente do seu tempo, associa esta divisão entre vertentes filosóficas a determinados espectros políticos. Assim, parece antecipar a cisão ideológica que irá aprofundar-se cada vez mais com o tempo, até chegar à certa precariedade e incoerência que temos no cenário atual, na qual questões político-ideológicas se sobrepõem às evidências dos dados sobre temas objetivos e, ao mesmo tempo, em áreas do conhecimento que são intrisicamente subjetivas, a priori, o relativismo cerceia perspectivas conflitantes com a sua doutrina, como se o relativismo fosse capaz de prover uma base objetiva para isso. O que é simplesmente contra intuitivo. Assim ele escreveu:

Desse modo, obtemos imediatamente uma divisão em dois grupos: ceticismo, materialismo e positivismo de um lado, espiritualismo, idealismo e teologia de outro(…) O esquema também se mostra fecundo, porém, para a análise de doutrinas filosóficas admissíveis em contextos especiais, em que ou se as arranja dessa maneira ou, em casos mistos, se busca seus elementos materialistas e espiritualistas. Assim, poderíamos dizer, por exemplo, que o apriorismo pertence em princípio à direita e o empirismo à esquerda. Por outro lado, no entanto, também existem formas mistas como uma teologia com base empirista. Além disso, pode-se ver também que o otimismo pertence, em princípio, à direita e o pessimismo à esquerda. Pois o ceticismo é certamente pessimismo em relação ao conhecimento. [Além disso] o materialismo tende a considerar o mundo como uma pilha desordenada e, portanto, sem sentido de átomos. Além disso, a morte parece ser a aniquilação final e completa, enquanto, por outro lado, a teologia e o idealismo veem sentido, propósito e razão em tudo. Por outro lado, o pessimismo de Schopenhauer é uma forma mista, ou seja, um idealismo pessimista. Outro exemplo de uma teoria evidentemente à direita é a de uma direita objetiva e valores estéticos objetivos, enquanto a interpretação da ética e da estética com base no costume, na educação, etc., pertence à esquerda.

Para finalizar, vale citar a lógica pela qual Gödel expressa, com suas próprias palavras, a sua descrença no materialismo e positivismo como o único caminho viável para a construção de conhecimento racional do mundo.

“Meu ponto de vista filosófico:
1. O mundo é racional.
2. A razão humana pode, em princípio, ser desenvolvida de forma mais elevada (por meio de certas técnicas).
3. Existem métodos sistemáticos para a solução de todos os problemas (também arte, etc.).
4. Existem outros mundos e seres racionais, que são de outro tipo e superior.
5. O mundo em que vivemos não é o único em que vivemos ou vivemos.
6. Incomparavelmente mais é cognoscível a priori do que é conhecido atualmente.
7. O desenvolvimento do pensamento humano desde a Renascença é totalmente unilateral.
8. A razão na humanidade será desenvolvida em todos os lados.
9. O formalmente correto é uma ciência da realidade.
10. O materialismo é falso.
11. Os seres superiores estão conectados aos outros seres por analogia, não por composição.
12. Os conceitos têm uma existência objetiva (da mesma forma os teoremas matemáticos).
13. Existe uma filosofia científica (exata) {e teologia} (isso também é mais fecundo para ciência), que trata dos conceitos da mais alta abstração.
14. As religiões são, na maioria das vezes, más, mas a religião não é.”

Gödel parece sugerir o que ele considera um erro do Zeitgeist, o espírito do seu tempo, que tende ao materialismo positivista, por considerá-los obstáculos ao desenvolvimento da razão humana e da própria ciência.

Esta preocupação foi registrada em sua declaração, em artigo datado de 1961, sobre o desenvolvimento moderno dos fundamentos da matemática à luz da filosofia, à qual esta lista citada acima estava claramente conectada. Ele escreve:

"Particularmente na física, este desenvolvimento [da filosofia em direção ao ceticismo, materialismo e positivismo] atingiu um pico em nosso tempo, em que, em grande medida, a possibilidade de conhecimento dos estados objetivos ​​das coisas é negada, e afirma-se que devemos nos contentar em prever os resultados das observações. Este é realmente o fim de toda ciência teórica no sentido usual (embora esta previsão possa ser completamente suficiente para fins práticos, como fazer aparelhos de televisão ou bombas atômicas)."

Ele parece afirmar claramente que a tendência esquerdista e unilateral em direção a cosmovisão materialista-cética-positivista poderia ameaçar todas as ciências teóricas. O que ele, apesar de matemático, rejeita, por óbvio. É, antes, um exímeo filósofo que busca a verdade, e, como todo lógico, vai até aonde o argumento o levar.

Para ele, Gödel, a filosofia possui dois atributos:

  1. Guiar a ciência;
  2. Oferecer respostas para as tradicionais perguntas em relação ao sentido do mundo.

Atribuir sentido às coisas não é uma tarefa quantitativa apenas, mas qualitativa. Então dividir o mundo entre uma ciência “real", empírica, materialista no sentido que explica a realidade e uma outra teórica pode parecer mais apropriado, como ele sugere nas duas escolas de suas cosmovisão. Mas uma das grandes contribuições que Gödel deu foi usar a própria matemática para demonstrar, através dela, logicamente, porque o materialismo é fundamentalmente falso e contraproducente. Se aplicado à risca, ele corrói a si mesmo.

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