O paradoxo das 3 peneiras de Sócrates na Internet

Natri (Fabio Natrieli)
MIND o>er matter
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10 min readNov 16, 2016
A morte de Sócrates, de Jacques-Louis David

Alguns anos atrás, eu recebi uma história sobre as 3 peneiras de Sócrates. Com certa frequência, eu a recebo novamente, via redes sociais, via email ou messengers.

Para quem não recebeu ou não se lembra, a história é a seguinte:

Conquanto trata-se de uma história muito interessante, que de forma simples e direta nos faz pensar sobre como deveríamos ser prudentes ao emitir a nossa opinião sobre alguém, o fato é que a própria história em si não passaria nas peneiras que postula.

Pelo menos não em uma delas, a da verdade.

Não porque a história em si não tenha valor, mas simplesmente porque ela não é verdadeira, como muitas pessoas acreditam e repassam.

Como se sabe, Sócrates não escreveu nada. Nem uma linha.

Tudo o que sabemos sobre Sócrates vem de duas fontes: Xenofonte e Platão. Sobretudo através de Platão.

Até por isso, durante algum tempo, chegou-se a debater se Sócrates havia realmente existido ou se não havia sido apenas uma personagem idealizada por Platão.

Mas por que Platão inventaria um Sócrates?

Motivos não lhe faltavam.

Platão precisava encarnar o seu homem ideal em um novo tipo de herói. Não um herói que fosse um Deus. Tampouco em um semi-deus. Mas um herói que fosse homem, de carne e osso, que incorporasse os ideais platônicos, cuja virtude principal é a Justiça, em sua prática diária e que vivesse a filosofia no dia-a-dia e não somente na retórica, como faziam os sofistas.

Sócrates, a quem Platão chama de "o mais justo dos homens", era o exemplo vivo das virtudes cardinais gregas: Sabedoria, Fortaleza, Temperança e Justiça. A mais importante de todas as virtudes era a Justiça, por ser a resultante das outras três primeiras, quando essas eram ordenadas em uma sociedade ideal ou como deveria ser organizada a alma humana.

Aliás, os mais atentos perceberão que esses quatro princípios ainda hoje estão contemplados na doutrina da igreja católica.

Isso não deve causar qualquer espanto, dado que Santo Ambrósio de Milão, Santo Agostinho de Hipona e São Tomás de Aquino absorveram e adaptaram muito da obra de Platão e Aristóteles dentro do esquema do catolicismo.

imagem do wikipedia

Em seus escritos, Platão expressa de forma bastante contundente a sua aversão aos heróis cultuados pelos gregos, aqueles criados por Homero, que era parte fundamental da educação dos atenienses.

Platão deixa bem claro que deseja substituir os falíveis heróis atenienenes — demasiado humanos para o tipo ideal de sociedade que ele imaginava— por um novo ideal de herói, o Filósofo, que vive a vida da mente, não teme a morte e não é escravo do apetite do corpo.

Então, eis aí um excelente motivo para Platão criar a personagem Sócrates. Personificar o filósofo ideal.

Isso não significa que Sócrates não existiu ou que não foi um homem admirável.

Três principais fontes contemporâneas citam Sócrates e é justamente o cruzamento delas que resulta em consenso que Sócrates de fato existiu. Também é bastante provável que Platão realmente o admirava.

Isso posto, é verdade também que os principais especialistas da obra de Platão parecem concordar que, em sua fase mais madura, Platão "usa" Sócrates para expor suas próprias ideias. Por exemplo, o mundo das ideias e a teoria das formas é muito mais condizente com a filosofia de Platão do que a de Sócrates.

Seja como for, eu, pessoalmente, nunca encontrei nada referente à passagem da peneira em qualquer obra de Platão.

Além disso, existem outras histórias sobre o mesmo tema, praticamente idênticas, inclusive no que tange à linguagem do conto das 3 peneiras, que é muito distante da forma com que Platão escreve seus diálogos.

Esse é justamente o caso dessa publicação de 1872, “Miscellaneous Poems,” de Mary Ann Pietzker, que contém quase que exatamente a mesma história, das 3 peneiras:

A mesma história ainda pode ser encontrada em outros livros, como do Rotary International.

Existe uma versão que é mais popular na língua inglesa, exatamente igual a que citei no começo da matéria, só que tem Buda como personagem central ao invés de Sócrates.

Isso, de alguma forma, invalida a história das três peneiras?

Em absoluto!

Só termos ciência que o Sócrates em questão é romanceado e que está ali como personagem e não figura histórico, dado que o autor estava aparentemente ciente de que ao fazê-lo, daria mais peso e crédito a história — afinal, trata-se de Sócrates!

Assim como fizeram o mesmo usando Buda como personagem.

A verdade, entretanto, é que a história não remete aos filósofos Sócrates e, portanto, nem a Platão diretamente.

Quer ver mais um exemplo emblemático?

Existe uma frase atribuída a Sócrates que também é muito popular na internet, que diz assim: “O segredo da mudança é focar toda a sua energia, não lutando contra o que é velho, mas construindo algo novo”.

uma busca no Google demonstra como a frase é atribuida a Sócrates

Eu, particularmente, não só gosto da frase, como acredito piamente no conteúdo da sua mensagem.

Acontece que ela não foi dita pelo filósofo Sócrates e sim pela personagem que leva o nome de Sócrates, no best-seller de Dan Millan, o livro “O caminho do Guerreiro”, mais especificamente, na página 130, como podemos ver abaixo:

frase de “Sócrates”, personagem do livro de Dan Millan e não do filósofo

Eis aí o problema da internet e a razão pela qual as 3 peneiras de Sócrates, que em verdade, não lhe diz respeito em nada, são tão importantes nos dias de hoje: as pessoas compartilham histórias e notícias de todos os tipos, sem checar a fonte, sem se preocupar com a veracidade e sem qualquer comprometimento com a razão.

Basta que alguém, hábil com as palavras e minimamente esperto, pegue uma frase qualquer e assine como um autor célebre, como por exemplo Sócrates, Platão, Shakespeare — ou mesmo Clarice Linspector — e pronto, a frase se espalha na rede como um vírus.

Tanto Platão como Sócrates tinham por meta instigar as pessoas a pensar, a livrar-se do pensamento comum através do uso da razão; fazê-las questionar o status quo e não replicar conceitos a torto e a direito sem antes examiná-los a fundo.

Inventar factóides que corroborarassem com a sua própria verdade, seja para fortacelecer a sua crença no próprio saber, seja com o objetivo de vencer discussões e, por fim, ter razão, era justamente a base da retórica sofista, a quem ambos, Sócrates e Platão, tanto criticavam.

Posto isso, repare o tanto de notícias claramente fraudulentas que você recebe todos os dias via redes sociais.

Isso, por si só, daria um texto em separado. Uma análise sobre como somos sucestíveis a acreditar e compartilhar informações que sustentem narrativas com as quais nos identifiquemos, mesmo que não sejam verdadeiras e que tenhamos uma certa noção disso.

Às vezes, fico pensando o que pode explicar a quantidade de compartilhamentos que páginas com notícias claramente fantasiosas, como sites como o “semprequestione”, conseguem nas redes sociais.

Uma hora é notícia que "pesquisadores descobriram a cura do câncer", outra hora é notícia que "as pirâmides de todo mundo foram ativadas e agora emitem luz do seu topo" (tem até foto para comprovar… apesar de ser photoshop mal feito); depois é notícia que o Planeta X está vindo se chocar com a Terra e que "pesquisas diversas da NASA falam sobre isso" ou então que "pesquisadores descobriram a cidade perdida de Atlândida com pirâmides de cristal no fundo do oceano" e por aí vai.

Veja o exemplo do vídeo abaixo:

No canal do produtor, que é israelense, podemos ver outros vídeos publicados por ele, que deixam claro se tratar de um especialista em efeitos especiais digitais.

Não é preciso ir muito mais afundo. Deixo que cada um tire as suas próprias conclusões sobre a probabilidade da veracidade do vídeo.

Com a tecnologia cada vez mais acessível, tanto para segmentar posts para públicos específicos como para produzir conteúdo de vídeo, será cada vez mais fácil ludibriar quem não for astuto o suficiente para separar o bom conteúdo do mau; gente apressada que aperta o botão compartilhar assim que recebe algo que vá de encontro com o que acredita — e deseja arduamente acreditar, acima de tudo.

Abaixo, coloquei alguns printscreens de notícias que volta e meia ressurgem na minha linha do tempo, oriundas desses sites de reputação duvidosa.

Em todos esses sites, nunca tem nenhum link para um documento oficial, nenhuma referência para o estudo citado ou alguma fonte minimamente confiável.

Tudo não passa de notícias muito suspeitas e fotos grosseiras com chamadas sensacionalistas. Ainda assim, muitas pessoas replicam sem pestanejar.

Sites de assuntos políticos picaretas (e com isso quero dizer sites que defendem ideologias cegamente sem qualquer preocupação com fatos) funcionam da mesmíssima forma.

São esses sites que publicam notícias falaciosas, mentiras objetivas, onde não há margem para subjetividades ou interpretações, como afirmar que o juiz Sergio Moro é filiado ao PSDB.

Esse fenômeno não é privilégio da esquerda ou direita, acontece igualmente nas duas orientações.

À parte da política, cuja finalidade é a manipulação do eleitorado, a maioria dos sites que publicam mentiras têm objetivos bastante claros.

Como eu sei que muita gente ignora como se dá o funcionamento desses portais e como eles rentabilizam com publicidade digital, vou tentar explicar algo, de forma sumária.

Sabe qual é a verdadeira razão pela qual esses sites, como "semprequestione" ou "curapelanatureza" e tipos afins, existem?

Porque o criador do site é um observador astuto do universo digital. Ele sabe que tem um grande número de pessoas que gosta muito de todos esses assuntos e também sabe que essas pessoas sentem-se carentes por receber informação sobre esses temas mais controversos, uma vez que esse tipo de notícia, digamos, "alternativa", não se encontra nos principais portais de notícias e veículos de mídia.

Então, eles criam um site com cara de portal de informarção, e postam notícias sem qualquer critério ou referências e através da força das redes sociais, eles alavancam a sua própria audiência.

Quanto maior a audiência do site, ou seja, quanto mais visitas eles recebem, mais dinheiro eles ganham vendendo espaço publicitário.

Portanto, esses sites existem para vender publicidade.

Sabe como eles ganham dinheiro com publicidade?

Através de você — isso mesmo, você! — que trabalha de graça para eles, gerando-lhes audiência quando compartilha as notícias fantásticas que eles disponibilizam… ou inventam.

E, sinceramente, eu não os culpo. Eles não fazem nada de ilegal. Pode até ser imoral, talvez seja, mas no fundo, tudo o que eles fizeram foi perceber um filão de mercado a ser explorado e responderam a isso. Eles estão buscando o seu ganha-pão, como todos nós.

Se as pessoas não se preocupam em checar os fatos, isso é um problema delas, não deles.

Esta questão se tornou tão problemática que a palavra do ano de 2016 do dicionário Oxford foi "post-truth", que pode ser definido como "um adjetivo relativo a circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos emocionais."

Já que as pessoas não parecem muito preocupadas em verificar fatos de forma minimamente razoável, principalmente aqueles que são, digamos assim, convenientes com sua visão de mundo, já existe tecnologia que pretende equacionar a falta de bom senso humano: extensões de navegadores identificam notícias falsas automaticamente e Google e Facebook prometem bloquear anúncios para esses sites duvidosos, como você pode verificar nos links acima e manchetes que destaquei abaixo.

Notícias recentes que tratam da problemática dos factóides na web

Então, a minha sugestão é que botemos todos a cabeça (razão) e o coração (intuição) para funcionar antes de sairmos por aí compartilhando qualquer notícia. Negue-se a ser fantoche na mão de gente que usa temas que você adora — e pelos quais você diz ter o maior respeito — e faz disso uma verdadeira máquina de caça-níquel ou ferramenta política.

Antes de compartilhar algo, ainda que sua intenção seja a melhor possível, pare e reflita se você não está sendo massa de manobra de outros interesses, que nada tem a ver com o que você acha que está promovendo.

Ainda que a as 3 peneiras de Sócrates não sejam de Sócrates coisa alguma — e eis aí o seu paradoxo — , vale aplicá-las quando for compartilhar qualquer tipo de conteúdo nas redes sociais.

Se você acredita em algo, não importa o quê — filosofia de esquerda, de direita, ovnis, medicina alternativa, religião, alguma corrente filosófica — e, com a melhor das intenções, deseja transmitir esse conhecimento para outras pessoas que perguntam por ele, sugiro ouvir as palavras de Pedro:

“Estejam sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós” (1 Pedro 3:15)

Esteja preparado a responder a razão da esperança que habita em você. Replicar notícias falaciosas (ou minimamente duvidosas) não sugere preparo, pelo contrário, demonstra uma certa dose de ingenuidade, com um misto de imprudência e intuição pouco apurada. Em suma, qualidades que vão no sentido contrário do que Pedro recomenda: refletem despreparo.

Não é preciso ter grande cultura, ser algum tipo de intelectual, dominar latim ou ser profundo conhecedor de tecnologia para evitar propagar inverdades a esmo na internet. Basta boa-vontade, prudência e bom senso.

Segundo o wikipedia, “bom senso é um conceito usado na argumentação que está estritamente ligado às noções de sabedoria e de razoabilidade, e que define a capacidade média que uma pessoa possui, ou deveria possuir, de adequar regras e costumes a determinadas realidades considerando as consequências, e, assim, poder fazer bons julgamentos e escolhas. Podendo, assim, ser definido como a forma de “filosofar” espontânea do homem comum, também chamada de “filosofia de vida”, que supõe certa capacidade de organização, auto-controle e independência de quem analisa a experiência de vida cotidiana… O bom senso está ligado à ideia de sensatez, sendo uma capacidade intuitiva de distinguir a melhor conduta em situações específicas que, muitas vezes, são difíceis de serem analisadas mais longamente.”

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