O sentido da vida, segundo o Gita -Parte II

Natri (Fabio Natrieli)
MIND o>er matter
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23 min readFeb 14, 2021

Qual é o sentido da vida?

Este texto faz parte se uma série de artigos que se propõe a reunir o que algumas das maiores mentes e tradições espirituais, religiosas e filosóficas pensaram sobre este tema ao longo da história humana.

No primeiro texto, que segue abaixo, não nos propusemos a responder à pergunta, mas entramos dentro dela, ou seja, o que nós queremos dizer quando usamos a palavra sentido dentro da pergunta “qual é o sentido da vida"?

Vimos que, em suma, uma vida com sentido é uma vida que aponta para algo além de nós mesmos.

No segundo texto, começamos a nossa análise sobre uma das mais antigas tradições que a humanidade tem registro: o hinduísmo, dos Vedas, dos Upanixades e do Bhagavad Gita.

Para isso, no texto anterior, introduzimos alguns conceitos sobre o hinduísmo, situamos onde o Bhagavad Gita, tema do nosso estudo, se encontra dentro das escrituras sagradas hindus e contamos um pouco sobre o contexto da história que ele narra.

A história se passa com Arjuna, um guerreiro, que está em pleno campo de batalha e em grande conflito, relutante em lutar. Isso porque ele sabe que em ambos os lados daquela guerra estão pessoas que ele conhece, que foram seus professores, pais de famílias, filhos de conhecidos da comunidade. Independente de quem vença, a guerra trará sofrimento e consequências terríveis para todo a sociedade.

Para que lutar então? Esta é a pergunta que ele se faz. Por que ele deve agir e não simplesmente largar tudo e ir embora?

Para a sua sorte, a deidade Krishna é o cocheiro que dirige a sua carruagem. Arjuna questiona Krishna sobre o que deve fazer, porque ele está dividido e decidido que não deve lutar.

Ao contrário do que muitos poderiam imaginar como resposta de um Deus a este conflito, Krishna não prega que ele baixe as armas e abdique de lutar; pelo contrário, a divindade diz à Arjuna que o que ele sente é uma falsa piedade; e que ele tem o dever de lutar!

Arjuna, então, reconhece estar confuso sobre o seu entendimento sobre a vida, se prostra aos pés de Krishna como seu discípulo e pede que ele lhe ensine sobre o dharma (o caminho correto).

O Gita é basicamente os ensinamentos de Krishna para Arjuna, começando pela ideia de disciplina (yoga).

Krishna propõe três tipos de disciplinas (yoga) que ajudarão Arjuna a compreender melhor o seu (e o nosso) papel no mundo.

Isto tudo que vimos até agora nos serviu como uma breve recapitulação do que tratamos nos dois primeiros artigos.

Neste artigo, iremos aprofundar neste tema, nas três disciplinas, nos três yogas, que Krishna irá apresentar a Arjuna.

Então, cá estamos de volta ao campo de Kurukshetra, o campo da épica batalha em que está Arjuna, que metaforicamente é o campo da batalha que todos enfrentamos dentro de nós mesmos no dia a dia, quando nos deparamos com escolhas existenciais difíceis, profundas. O campo de batalha que travamos dentro de nós entre fazer o que queremos e o que reconhecemos como certo, quando temos de fazer escolhas entre "o querer" e "o dever".

O que vimos nos dois primeiros artigos é que, segundo o Gita, uma vida com significado está relacionada com uma ideia de desapego, de desapegar-se do eu, do ego, das suas vontades, dos desejos. A ideia é mostrar o valor que existe no desapego sensorial, em se livrar da necessidade de agir pensando no imediatismo de curto prazo.

A maioria de nós vive a vida de forma egocêntrica, agindo sempre em benefício próprio, mas o Gita nos alerta para o fato de que o mundo não gira em torno do nosso umbigo. Um leão caça a sua presa porque este é o seu dever, porque faz o que está inscrito em si, não porque é bom ou mau. Um vírus se espalha porque cumpre o que está inscrito em si, não porque é bom ou mau. As dualidades entre bom e mau, quente e frio são julgamentos que nós fazemos dos fatos do mundo. Portanto, para além desta percepção, um guerreiro deve lutar!

O que Krishna está mostrando é que Arjuna está se lamentando por coisas fugazes, pequenas e que há muito mais em jogo do que ele supõe, dada a sua limitada compreensão de como funciona o universo.

Não cabe a ele, Arjuna, se preocupar com o resultado da sua ação, mas apenas fazer a sua parte, cumprir o seu dever, sem apego pessoal às consequências.

Portanto, o Gita fala de uma vida com sentido ressaltando a importância do dever e da ação, olhando sempre para um contexto maior, não visando o que é efêmero, às particularidades, mas o que é eterno, grandioso.

Perceba que os orientais, de modo geral, possuem um senso de comunidade mais aflorado que nós, ocidentais.

Pegue, por exemplo, os soldados japoneses da segunda guerra, os kamikazes. Eles davam à vida pela causa que defendiam.

Obviamente, eles não estavam pensando em si quando assumiam jogar os seus aviões em navios americanos, mas em um contexto maior. Eles entendiam que perder as suas vidas na tentativa de salvar o seu povo era o certo a ser feito, eles entendiam que este era o seu dever como soldados.

Ainda segundo esta mesma razão, veja como o povo japonês reage diante de uma grande tragédia, vendo parte da ilha ser devastada por um Tsunami junto de um acidente nuclear; repare como eles fazem fila no mercado para pegar somente o necessário de comida para o curto prazo, ainda que não saibam o que o futuro lhes reserve, e compare como as pessoas se comportam em uma black friday no varejo americano.

Não precisamos nem ir tão longe para fazer este ponto claro. Mesmo aqui no Brasil temos histórias inspiradoras sobre dever. Temos o exemplo deixado pela professora Heley de Abreu Silva Batista, que deu a sua vida para salvar os seus alunos, crianças de 6 anos, que estavam presos na sala de aula que incendiava depois que um psicopata tacou fogo em si e na escola. Ela poderia ter pulado a janela e ido embora, e certamente sabia do risco que corria quando voltou para salvar mais crianças. Ela estava pensando em um contexto muito maior que a sua própria vida, a vida dos alunos e cumpriu o seu dever como professora, tentando salvar todas as crianças que estavam sob a sua responsabilidade.

Sei que todos estes exemplos são extremos, mas eu os usei justamente porque servem bem para exemplificar a mensagem que Krishna está passando para Arjuna e para todos nós.

O campo de batalha de kurukshetra é uma metáfora sobre este embate de forças que temos dentro de nós, quando nos vemos diante de escolhas difíceis, existenciais, entre o nosso querer pessoal em contraste com o dever com algo maior.

Este é o significado de svadharma, o dever sagrado pessoal. Por vezes seus caminhos podem parecer contraditórios, mas o seu dever como indivíduo não deve se opor ao dharma (o caminho correto, o dever universal), eles devem se alinhar. Como fazer isso? Chegaremos lá quando falarmos da yoga da devoção (bakhti yoga).

Posto isso, agora vamos aprofundar sobre o que podemos chamar de dever sagrado, este dever transcendental.

Svadharma, o dever particular que todos temos

No Gita, Krishna é incisivo sobre o dever que Arjuna deve honrar por ser um guerreiro, da casta dos guerreiros, e que abandonar o seu dever é viver na infâmia, que seria pior que a morte.

Aliás, a morte não é um mal em si, pois ela sequer existe, segundo o que está escrito no Gita.

Mas então você pode estar se perguntando, "qual a validade disso tudo para quem não vive em uma sociedade de castas, como a Índia?"

Para todos nós, que não vivemos em um sistema de castas, a mensagem continua extremamente relevante. Porque a maioria dos deveres que temos têm a ver com o que fazemos em nosso dia a dia. Os dilemas que enfrentamos estão intimamente conectados com o nosso dever.

Um ponto de suma importância que Krishna vai enfatizar ao longo do Gita, que muitos não colocam a devida atenção, é que nós não temos controle sobre os outros, não podemos ter controle sobre as consequências de todos os nossos atos, e muito menos sobre os fatos que acontecem no mundo, mas podemos ter total controle sobre nós mesmos, sobre as nossas decisões e as nossas ações.

Eu já escrevi um pouco sobre isso aqui, nestes dois artigos que seguem abaixo:

O que Krishna enfatiza nesta parte do texto que estamos analisando, o começo do Gita, é que devemos colocar a nossa atenção naquilo que temos controle, que devemos colocar atenção na escolha de como vamos agir, sem nos preocuparmos em controlar as consequências ou sobre todas as partes que nós não temos qualquer tipo de controle.

A maioria de nós hesita em agir não porque não sabemos o que devemos fazer, não porque não sabemos o que é certo ou o que é errado, mas porque estamos pensando em nossos desejos e apegos pessoais e, com base nisso, analisamos os fatos do passado e do futuro e fazemos comparações sobre o que deu certo ou errado e as possíveis consequências que podem advir desta nossa ação. Mas isso não nos impede de saber qual é a ação correta que devemos tomar em cada situação.

É sobre isso que trata as passagens abaixo:

VERSO 37: Ó filho de Kuntī (Arjuna), ou você será morto no campo de batalha e alcançará os planetas celestiais, ou conquistará e gozará o reino terrestre. Portanto, levante-se com determinação e lute.

VERSO 38: Lute pelo simples fato de lutar, sem levar em consideração felicidade ou aflição, perda ou ganho, vitória ou derrota — e, adotando este procedimento, você nunca incorrerá em pecado.

VERSO 39: Até agora, descrevi este conhecimento a você através do estudo analítico. Ouça agora enquanto eu o explico em termos de trabalho sem resultados fruitivos. Ó filho de Pṛthā, quando você agir segundo este conhecimento, poderá livrar-se do cativeiro decorrente das ações.

VERSO 40: Neste esforço, não há perda nem diminuição, e um pequeno progresso neste caminho pode proteger a pessoa do mais perigoso tipo de medo.

VERSO 41: Aqueles que estão neste caminho são resolutos, e têm um só objetivo. Ó amado filho dos Kurus, a inteligência daqueles que são irresolutos tem muitas ramificações.

VERSOS 42–43: Os homens de pouco conhecimento estão muitíssimo apegados às palavras floridas dos Vedas, que recomendam várias atividades fruitivas àqueles que desejam elevar-se aos planetas celestiais, com o conseqüente bom nascimento, poder e assim por diante. Por estarem ávidos em satisfazer os sentidos e ter uma vida opulenta, eles dizem que isto é tudo o que importa.

VERSO 44: Nas mentes daqueles que estão muito apegados à gratificação dos sentidos e à opulência material, e que se deixam confundir por estas coisas, não ocorre a determinação resoluta de prestar serviço devocional ao Senhor Supremo.

VERSO 45: Os Vedas tratam principalmente do tema dos três modos da natureza material. Ó Arjuna, torne-se transcendental a estes três modos. Liberte-se de todas as dualidades e de todos os anseios advindos da busca de lucro e segurança e estabeleça-se no eu.

VERSO 46: Todos os propósitos satisfeitos por um poço pequeno podem imediatamente ser satisfeitos por um grande reservatório de água. De modo semelhante, todos os propósitos dos Vedas podem ser cumpridos por aquele que conhece o seu propósito subjacente.

VERSO 47: Você tem o direito de executar seu dever prescrito, mas não tem o direito aos frutos da ação. Jamais se considere a causa dos resultados de suas atividades, e jamais se apegue ao não-cumprimento do seu dever.

VERSO 48: Desempenhe seu dever com equilíbrio, ó Arjuna, abandonando todo o apego a sucesso ou fracasso. Tal equanimidade chama-se yoga.

VERSO 49: Ó Dhanañjaya, mantenha todas as atividades abomináveis bem distantes através da prática do serviço devocional, e nesta consciência renda-se ao Senhor. Aqueles que querem gozar o fruto de seu trabalho são mesquinhos.

VERSO 50: Aquele que está ocupado no serviço devocional, livra-se tanto das boas quanto das más ações, mesmo durante esta vida. Portanto, empenhe-se na yoga, que é a arte de todo o trabalho.

Krishna está sugerindo que a nossa obrigação, ou melhor, o nosso dever está em agir e não em se perder em pensamentos sobre as consequências das nossas ações, porque assim perde-se o foco naquilo que realmente importa.

Veja, aqui cabe um breve comentário: não se trata de agir de forma totalmente inconsequente, mas sobre descobrir-se, saber quem você é, reconhecer-se, saber qual é o seu papel no mundo, e conectar o seu svadhrama (dever sagrado pessoal) com o dharma (o caminho correto) dentro de um contexto maior e não particular.

Em outro trecho, há mais um comentário relevante:

VERSO 62: Enquanto contempla os objetos dos sentidos, a pessoa desenvolve apego a eles, e de tal apego se desenvolve a luxúria, e da luxúria surge a ira.

VERSO 63: Da ira, surge completa ilusão, e da ilusão, a confusão da memória. Quando a memória está confusa, perde-se a inteligência, e ao perder a inteligência, cai-se de novo no poço material.

Qual é o ponto aqui? O ponto é muito interessante, embora possa soar estranho para a ideia de liberdade que o mundo ocidental e moderno possui: a liberdade advém da disciplina, e a disciplina do cumprimento do dever (svadharma) e não o contrário.

Para a sociedade moderna, para uma boa parte do mundo ocidental, o conceito de liberdade é oposto à ideia de disciplina. Ser livre é estar livre para fazer tudo aquilo que se deseja, que o corpo deseja.

O que Krishna propôs, e veremos que outras tradições irão pelo mesmo caminho, é uma completa inversão destes valores. No Gita, os seres humanos perdem a sua liberdade justamente quando sucumbem ao apetite insasiável do corpo, quando rendem o seu Eu aos prazeres sensoriais, quando agem impulsivamente, quando submetem a sua capacidade de decidir e agir, não mais guiados pelo dever, mas para gozar de forma imediata através do estímulo sensorial, quando se permitem serem controlados por sensações de frio e calor, de raiva ou desejo por todo tipo de coisa, sexo, comida e afins.

Aliás, como observou bem Pedro Kupfer, a própria palavra hatha (do hatha yoga, a prática de yoga que é bastante popular no ocidente, de fazer as posições e respirações) tem este sentido de sobrepor-se sobre a dualidade.

Em seu sentido estrito, a palavra hatha significa "força extrema". Porém, quando separamos as sílabas ha e tha, temos as palavras "sol-lua". Portanto, dentro de uma perspectiva esotérica, "sol-lua" significa trasncender a identificação do Eu com as dualidades típicas de maya, deste plano ilusório composto pelos contrários: sol e lua, calor e frio, dia e noite, etc. É o apego à esta dualidade, a causa do sofrimento humano.

O que isso quer dizer? Significa que o homem age por desejar a recompensa da sua ação. E caminha por sua existência variando entre esta dualidade, de bom ou ruim, do êxito, quando ele age e os frutos da sua ação são sensivelmente prazerosas, de acordo com o que ele queria, como quando ele sacia a fome, o seu desejo sexual, atinge o sucesso financeiro, quando se aquece; e do fracasso, quando as coisas não saem como ele queria, quando passa fome, quando se vê só, quando perde dinheiro, quando sente frio, etc.

O filósofo Rosseau reconhece que a sensibilidade é que motiva o homem a agir: "a sensibilidade é o princípio de toda ação. Um ser, ainda que animado, que não sentiria nada, jamais agiria, pois qual seria seu motivo para agir?"

Ou seja, para ele, a motivação de toda a ação está na nossa expectativa de recompensa que advém da nossa capacidade de sentir os prazeres sensoriais. O Gita não nega que assim seja, mas sugere que para alcançamos a liberdade, devemos agir de forma contrária: desapegar do desejo de querer desfrutar do resultado imediato à sua ação.

Aqui, é importante enfatizar um outro conceito muito importante no hinduísmo que não abordamos ainda, nem neste e nem nos textos anteriores. Um conceito que aparece nos Vedas e é essencial para contextualizar o argumento que Krishna faz, que é a ideia de maya.

Uma das melhores definições que encontrei para explicar o conceito de maya está na encilopédia Brittanica: "maya é a força poderosa que cria a ilusão cósmica de que o mundo dos fenômenos é real. Maya é, portanto, aquela força cósmica que apresenta o brahman infinito (o ser supremo) como o mundo fenomenal finito. Maya é refletida no nível individual pela ignorância humana (ajnana) da natureza real do Eu, que é confundida com o ego da experiência material, mas que na realidade é idêntica ao brahman."

Maya é a ilusão que constitui a natureza do universo material. Resumidamente, o ponto principal é que o mundo material é uma ilusão.

Veja bem, o fato de o mundo ser ilusório (maya) não é a mesma coisa que dizer que ele não existe. Ele existe, como ilusão. Talvez, uma boa metáfora para a compreensão da ideia de maya seja considerá-la como uma realidade virtual.

Como a própria escritura dos Vedas também sugerem a existência do Absoluto (Paramatman ou Parabrahman, o Espírito Universal), ou, também, Sat ("Aquilo") em oposição a Asat ou Praktiri (a natureza objetiva do mundo, maya, entendida como ilusória), Brahman (o Absoluto), compreende a natureza de maya, que apesar de ilusória, existe.

Posto isso, o que Krishna está sugerindo é que quando nos submetemos à vontade do corpo, quando nossas ações são mesquinhas, quando nos rendemos ao mundo sensorial, estamos lidando com aquilo que é ilusório, efêmero, privilegiando o corpo material, o ego; tudo isso em detrimento de interagir com o que é Absoluto, com o Atman (o Eu), sem nos conectarmos com Brahman (a consciência cósmica que perma tudo e todos).

Para cumprir o nosso Svadharma (nosso dever sagrado) precisamos nos reconhecer, deixar as ilusões e apegos de lado, compreendermos qual é o nosso papel dentro do cosmos e cumpri-lo. Fazer o nosso trabalho, sem nos preocuparmos com os frutos do trabalho, sem esperar nada em troca, como, por exemplo, algum tipo de reconhecimento.

Quando agimos assim, aí é que nos tornamos disciplinados e temos o controle da situação; é somente aí que ganhamos a liberdade, não aquela liberdade ilusória dos sentidos, mas a de ser.

VERSO 64: Aquele que livre de todo apego e aversão é capaz de controlar seus sentidos através dos princípios regulativos da liberdade pode obter a misericórdia completa do Senhor.

VERSO 65: Para alguém assim satisfeito [na consciência de Kṛṣṇa], as três classes de misérias da existência material deixam de existir; nesta consciência jubilosa, a inteligência logo se torna resoluta.

VERSO 66: Quem não está vinculado ao Supremo não pode ter inteligência transcendental nem mente estável, sem as quais não há possibilidade de paz. E como pode haver alguma felicidade sem paz?

VERSO 67: Assim como um barco na água é arrastado por um vento forte, até mesmo um só dos sentidos errantes em que a mente se concentre pode arrebatar a inteligência do homem.

VERSO 68: Portanto, ó pessoa de braços poderosos, o indivíduo cujos sentidos são restringidos de seus objetos com certeza tem uma inteligência estável.

VERSO 69: O que é noite para todos os seres é a hora de despertar para o autocontrolado; e a hora de despertar para todos os seres é noite para o sábio introspectivo.

VERSO 70: Aquele que não se perturba com o incessante fluxo dos desejos — que entram como os rios no oceano, o qual está sempre sendo enchido mas sempre permanece calmo — pode alcançar a paz, e não o homem que se esforça para satisfazer tais desejos.

VERSO 71: Aquele que abandonou todos os desejos para o prazer dos sentidos, que vive livre de desejos, que abandonou todo o sentimento de propriedade e não tem falso ego — só ele pode conseguir a verdadeira paz.

VERSO 72: Este é o caminho de uma vida espiritual e piedosa, e o homem que a alcança não se confunde. Se ele atingir esta posição, mesmo que somente à hora da morte, poderá entrar no reino de Deus.

O que Krishna está dizendo aqui é que ninguém pode alcançar o objetivo de vida que todos os seres almejam (paz e felicidade), quando se vive uma vida de escravidão e apego às coisas materiais. Não há como viver uma vida com sentido sem ter liberdade, e esta só advém da disciplina de cumprir o seu dever pessoal.

Mas qual é o nosso dever?

Bom, podemos entender dever de várias formas. No âmbito pessoal, pode ser a nossa profissão, os votos que assumimos, as promessas que fazemos. Além disso, nós temos deveres maiores, como cidadão de uma comunidade, no seu bairro, de uma sociedade, como a do seu país, de um ser humano, para com o mundo.

Em geral, as escolhas mais difíceis que temos de fazer na vida acontecem quando os nossos anseios pessoais entram conflito com os nossos deveres pessoais; e também quando os deveres pessoais e universais entram em rota de colisão.

O Gita trata justamente sobre este conflito entre os nossos deveres pessoais e os deveres com o Todo. Lembre-se que há duas dimensões do dharma (do dever, o caminho correto): um universal e outro pessoal.

É somente através da disciplina (yoga) que podemos dominar as tentações sensoriais transitórias e ilusórias que o mundo oferece. Ou seja, parte do nosso dever como ser humano é nos elevarmos sobre a matéria e não sucumbir diante dela.

Neste caso, no ponto em que estamos, Krishna está falando com Arjuna sobre a disciplina da ação, e, mais especificamente, que disciplina significa restringir de nós o desejo.

Por quê?

Porque no Gita, temos esta ideia de que o desejo nos é causado pelo mundo exterior, por coisas que estão fora de nós, através dos sentidos.

Que coisas?

Um doce que se torna irrestível assim que você o avista. O corpo de alguém que domina o seu desejo. Um carro novo. Uma vaga de emprego. Na sociedade moderna, estímulos é que não nos faltam: somos impactados por publicidade o tempo todo e, com alguma frequência, caímos na armadilha.

Neste sentido, todos estes desejos são coisas que acontecem com a gente, não algo que a gente faça. E a única forma que temos de não jogar este jogo, de não sermos joguetes na mão dos outros, do sistema, da sociedade e de corporações é adquirir um certo tipo de liberdade e esta liberdade só vêm da disciplina. Liberdade de escolher como agir para além destes impulsos e estímulos que recebemos de fora todo o tempo.

Um ponto central do Gita, talvez "O" ponto central do Gita, seja este: a ideia de que a liberdade advém da disciplina e não de se livrar da disciplina, mas de cumpri-la.

Ou seja, nós nos tornamos livres através da disciplina e não evitando a disciplina.

A importância do Yoga

Como dissemos, a própria origem da palavra Yoga remete à ideia de disciplina. Em seu contexto original, yoga não significa a prática de posturas e respirações, mas disciplina. Hatha Yoga, a prática da yoga popular que conhecemos aqui no ocidente, é uma forma das formas de yoga, de disciplina, mas não a única.

Aqui, o sentido de yoga, da disciplina, é aquela que nos permite realizarmos as coisas.

Essa ideia é comum à maiora de nós. Veja, qualquer pessoa que estuda música ou pratica esportes sabe que a disciplina é parte do processo para se atingir a excelência naquilo que se faz.

Mas então que tipo de disciplina temos de cultivar?

O Gita nos apresenta três tipos de yogas. A ideia é que uma vida com significado é o produto de uma vida disciplinada nestas três formas, da mais mundana à transcendental. Agora, vamos nos aprofundar nelas:

Introdução à ideia de Yoga

  • karma Yoga (ação)
  • Jnana Yoga (conhecimento)
  • Bakthi Yoga (devotion)

Karma Yoga

Vamos voltar ao livro. Arjuna, o guerreiro que está em conflito, quer saber por que ele deve agir por coisas tão mundanas?

Preste atenção a ela. Não é uma pergunta tola. Por que agir?

Afinal, se a justiça existe, se o Bem existe, se Deus existe, e se eu tenho uma compreensão limitada do universo, por que então eu deveria agir? Por que não deixar as coisas simplesmente como estão, como Deus as fez, como a justiça suprema se manifesta?

Lembre-se, é do hinduísmo a ideia de karma. Se você colhe as coisas que planta, qual a necessidade da interferência humana em todo este processo? A Justiça não precisa da nossa interferência.

Ora, se o cosmos é tão grande, se isso é tudo uma ilusão (maya), então Arjuna quer saber, não sem razão, por que ele deve agir, quando ele sabe que o resultado da ação será terrível? Por que simplesmente não deixar tudo para lá? Por que não focar no que é transcendental e deixar as coisas mundanas resolverem-se por si mesmas? Se o conhecimento (Jnana yoga) é tão importante, por que Krishna está insistindo para que Arjuna lute? Por que não pode aprender a lição pelo conhecimento transmitido sem passar pela experiência?

Krishna então lembra Arjuna que vivemos em um mundo material e que, em estando aqui, todos precisamos agir:

VERSO 3: A Suprema Personalidade de Deus disse: Ó Arjuna sem pecados, acabei de explicar que existem duas classes de homens que tentam compreender o eu. Uns se inclinam a compreendê-lo pela especulação filosófica empírica, e outros, pelo serviço devocional.

VERSO 4: Só por nos abstermos da ação não significa que estamos livres da reação, nem somente pela prática da renúncia pode-se atingir a perfeição.

Aqui temos um ponto muito interessante. Porque Arjuna imagina que o dilema dele está entre agir ou não agir. O que Krishna está lhe dizendo é que o homem está sempre decidindo agir. O seu dilema é entre duas ações e não entre uma ação e uma não ação. Lutar ou desistir, são ambas ações.

Krishna continua:

VERSO 6: Aquele que restringe os sentidos da ação, porém, cuja mente continua nos objetos dos sentidos, decerto ilude a si mesmo e é chamado de impostor.

VERSO 7: Por outro lado, se uma pessoa sincera utiliza a mente para tentar controlar os sentidos ativos e passa então a praticar karma-yoga [em consciência de Kṛṣṇa] sem apego, ela é muito superior.

Não há como fugir da ação. O ponto importante aqui é agir de forma correta. Fazer a coisa certa. Todo ato como um ritual, como um sacrifício, com todo o respeito. Como se todo ato fosse consciente, voltado para o mundo, útil. Não simplesmente comer porque apareceu um pedaço de chocolate à sua frente. Isso qualquer animal faz por instinto.

VERSO 8: Execute seu dever prescrito, pois este procedimento é melhor do que não trabalhar. Sem o trabalho, não se pode nem ao menos manter o corpo físico.

VERSO 9: Deve-se realizar o trabalho como um sacrifício a Viṣṇu; caso contrário, o trabalho produz cativeiro neste mundo material. Portanto, ó filho de Kuntī, execute seus deveres prescritos para a satisfação dEle, e desta forma você sempre permanecerá livre do cativeiro.

O resumo do karma yoga (disciplina da ação) é que a inação não é uma opção, porque mesmo a inação é uma forma de ação; então, quando estamos no campo de batalha e somos chamados à ação, devemos agir e não fugir da nossa responsabilidade.

O segundo ponto importante é que para uma ação ter um significado, ela precisa estar embuída de sacrifício, de respeito, algo que se faz de forma consciente, com todo o respeito por aquilo que se está fazendo; motivados por deveres e princípios nobres e não por impulsos que visam resultados imediatos.

Esta é a essência do karma yoga, do primeiro tipo de disciplina que Krishna propõe. A disciplina da ação.

Jnana Yoga

A ação é uma forma de yoga, mas insuficiente quando pensamos em ter uma vida plena de sentido. Por quê?

Porque se você age sem uma devida compreensão das coisas, a ação é superficial. A nossa ação serve para darmos vazão ao nosso Eu, para colocarmos em prática o nosso dever a serviço do mundo, e assim, aprofundar o nosso entendimento do universo.

É o conhecimento que nos ajudará a tomar as decisões corretas. É o conhecimento que nos proverá a base filosófica da nossa vida para sabermos disntiguir o que é efêmero, o que é apego e desejo, e o que está além de nós, que deve ser digno da nossa atenção e inspirar a nossa ação.

Então, o ponto aqui é que a disciplina da ação (karma yoga) seja motivada pelo conhecimento (jnana yoga) e não pelos desejos, pelos aspectos ilusórios dos sentidos e da realidade material (maya).

O que Krishna está dizendo para Arjuna é que este tipo de combinação, da ação com conhecimento, nos liberta da prisão que é ser sucetível a todos os estímulos que nos aconteceram de fora para dentro.

VERSO 41: Aquele que age em serviço devocional, renunciando aos frutos de suas ações, e cujas dúvidas foram destruídas pelo conhecimento transcendental, está de fato situado no eu. Assim, ele não está atado às reações do trabalho, ó conquistador de riquezas.

VERSO 42: Portanto, as dúvidas que, por ignorância, surgiram em seu coração devem ser cortadas com a arma do conhecimento. Armado com a yoga, ó Bhārata, levante-se e lute.

Ou seja, o conhecimento é importante porque a ação que é sábia demanda necessariamente conhecimento. Afinal, é o conhecimento que nos faz tomar as decisões certas, que nos ajuda a distinguir o que é importante do que não é importante, do que é duradouro do que é efêmero, o que é parte de nosso dever e o que é parte de nosso querer, de nosso desejo. Assim, quando analisa os seus atos, Arjuna pode saber se está cumprindo o seu dever ou agindo apenas de forma egoísta, gananciosa.

Outra razão que faz do conhecimento uma disciplina necessária é que ele corta os nossos laços (ou o mais correto seria dizer, corta as correntes) do desejo. Faz isso através do poder do discernimento.

O que nos leva à última das três formas de disciplina, a disciplina da devoção (bakhti yoga).

Bakhti Yoga

Primeiro, vamos comentar um pouco sobre o significado da palavra devoção aqui no texto. O sentido da devoção que temos no Gita é o de submeter os nossos próprios objetivos à ordem do cosmos.

Bem, veja que isso não é uma exclusividade do Gita apenas: "seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu"; ou então em “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz”.

Aqui, portanto, a ideia é a mesma que vemos manifestada na única oração que o Mestre Jesus ensinou, o Pai Nosso e na oração de São Francisco de Assis.

Tanto no Gita como no cristianismo e em todas as principais tradições antigas, não é a satisfação da nossa vontade individual que realmente importa, mas a que vem de Deus, do Universo, de Algo Maior (chame como quiser), mas que está além de nós mesmos enquanto meros indivíduos. Como escreveu Kalil Gibran:

“Sim que seja feita a vontade de Deus. Mas será que não vos conseguis erguer acima de vós mesmos para que Deus faça de vós instrumentos da Sua vontade e vos use para o nosso auxílio?” Kahlil Gibran — Pensamentos e Meditações — pág. 50

Se você não vê sabedoria nessas palavras citadas, faço um convite para um exercício mental. Pare e pense como seria o mundo se cada um fizesse apenas o que fosse do seu prório interesse.

Esqueça Deus, esqueça o cosmos. Vamos pensar pequeno. Vamos conseiderar que apenas o mundo material existe. Mesmo em tais termos, agir assim, ou seja, agir pensando num bem maior, funciona melhor para o estabelecimento de uma sociedade fraterna do que cada um por si, do que o olho por olho, dente por dente. Um mundo onde todos os indivíduos agissem pensando sempre em si, seria o verdadeiro caos. Aliás, veja quando isso acontece. É o caos.

Então, a ideia é pegar todos aqueles nossos desejos particulares, de comer isso, de fazer aquilo, de ser promovido, de alcançar determinado status e, assim, não agir de forma automática, sem refletir sobre aquilo, mas, antes, perguntar a nós mesmos: "qual é o papel que eu tenho de desempenhar? Qual é a ação correta a tomar aqui? Como eu posso alinhar os meus objetivos com os objetivos dos outros que estão ao meu redor, com o mundo, com a natureza, com o universo?"

Na prática, o que isso significa? Significa prestar atenção aos nossos atos, usar o conhecimento que temos e questionar se o que estamos fazendo é um ato de dever ou um ato egoísta.

Fazer isso com o mesmo respeito e a mesma preocupação com que Arjuna demonstra, quando está sinceramente preocupado em entender a motivação da sua ação.

Conclusão

Assim, a mensagem do Gita é que somente através destas três disciplinas, a prática destas três yogas, que podemos viver uma vida com sentido, a saber: sempre acionando o que devemos fazer, com conhecimento e devoção.

O que significa, em outras palavras, fazer as escolhas certas e agir cumprindo o dever que cada um tem, aprofundando-se em conhecimento para agir da forma certa, para saber identificar se o seu ato é egoísta ou altruísta, tendo como referência não os seus desejos pessoais, nem o que a sociedade lhe diz para fazer, mas considerando a ordem maior de todos o cosmos.

A chamada que o Gita nos faz é para viver uma vida coesa, coerente, consciente, integrada e baseada na razão.

Portanto, não basta acionar e fazer as coisas na vida.l a esmo, automaticamente. É preciso que haja um compromisso da nossa parte em ganhar conhecimento ao longo do tempo, em dedicar tempo para refletir sobre as nossas ações, e, mais do que isso, agir com um certo tipo de devoção às coisas.

Devoção que não precisa ser teísta ou seguir rituais religiosos. Uma devoção que faz você considerar um contexto maior em suas ações que apenas os seus desejos particulares, seja a sua família, a sua comunidade local, o seu país, o mundo inteiro e, quem sabe, até o universo todo. Por que não?

Tudo isso demanda disciplina. E disciplina não é fazer o que se quer, quando se quer. Para o Gita, isso é entregar o controle da nossa vida para todos aqueles fatores externos à nós.

Segundo o Gita, liberdade é autocontrole e autocontrole só se obtém com a disciplina, ou melhor, com estas três disciplinas especificamente: da ação, do conhecimento e da devoção.

No próximo texto, o último sobre o Gita dentro desta perspectiva sobre o sentido da vida, iremos aprofundar como tudo isso se relaciona entre a nossa vida individual e uma ordenação cósmica maior.

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