Porque não confiamos: falta de fé nas intenções.

Natri (Fabio Natrieli)
MIND o>er matter
Published in
6 min readApr 2, 2024

Confiança: leva-se anos para conquistar e segundos para perder e isso acontece uma vez só. O contrário de confiança é a desconfiança: falta de fé nas intenções, palavras ou ações de outra pessoa, geralmente resultante de experiências passadas, suspeitas ou falta de transparência.

Em filosofia, existe um conceito que é ao mesmo tempo muito bem fundamentado e de ordem extremamente prática para a vida e também para o mundo dos negócios.

O conceito chama-se “racionalidade comunicativa” e foi proposto por Habermas, um dos maiores filósofos vivos.

A premissa é a seguinte: nós, como seres evoluídos e racionais, usamos (ou
deveríamos usar) a nossa razão para entrar em consenso sobre algo, como
por exemplo algum ponto de discórdia que podemos ter. E isso acontece
muito em qualquer empresa. Eu acho que a estratégia X é melhor e você
considera que a Y vai dar mais resultado e isso vai gerar um embate de
ideias.

Desta “racionalidade comunicativa” se segue uma “ação comunicativa”. Isto é, nós conversamos e nos entendemos sobre algo e tal decisão vai gerar uma ação. Isso está baseado em outro conceito que se chama “atos de fala”, ou seja, algo “que fazemos com palavras”.

Resumidamente, a teoria do ato de fala postula que a função da fala vai muito além de simplesmente transmitir informações.

Falar é a expressão de uma ação e representa, portanto, uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo, inclusive dando sentido a ele.

Ato de fala é algo que fazemos com palavras.

Eu, agora, falando, estou agindo sobre você e sobre o mundo, sendo portanto, este meu ato de fala, uma ação realizada através do dizer.

Um ato de fala se realiza em três camadas distintas:

Um, que é locutória, que expressa palavras; ou seja, o ator de dizer a frase. Que é exatamente o que eu fiz agora. Eu expressei palavras.

O segundo tipo de ato de fala é um ato ilocucionário, que realiza algo dizendo; isto é, se eu digo “você está votando errado” ou “você está pisando no meu pé”, eu não tive a simples intenção de constatar que você está votando errado ou pisando em meu pé, mas de protestar e te fazer uma advertência que o seu voto é errado, no sentido que você deve fazer outra coisa — o que eu quero que você faça -, de mudar o seu voto, de tirar o pé do meu, ou seja, eu realizo algo ao dizer isso.

Se eu digo, “feche a porta!” eu não estou apenas querendo informar para você fechar a porta, eu estou querendo que você feche a porta.

O que nos leva ao nosso terceiro ponto, o terceiro tipo de ato: o ato de fala perlocucionário, que produz um efeito ao dizer.

A ideia é simpes: ao falar eu provoco um efeito em outra pessoa através da minha locução, influenciando assim os seus sentimentos ou pensamentos.

Então, quando eu falo “você está pisando em meu pé”, há três atos aí:

1. O ato locutório é falar as palavras;

2. O ato ilocucionário é dar o comando para que você tira o seu pé sobre o
meu;

3. O ato perlocucionário é eu conseguir pelo meu ato de fala que você
tire o seu pé sobre o meu.

A proposta do Habermas sugere que a ação comunicativa é uma interação racional guiada por objetivos ilocucionários, isto é, eu quero realizar algo através do meu ato de fala (como no exemplo em que eu desejo fazer você tirar o seu pé sobre o meu).

Portanto, a base da ação comunicativa não se dá por efeitos perlocucionários, ou seja, apenas influenciar sentimentos ou pensamentos a respeito do seu voto.

Na ação comunicativa, em tese, as pessoas discutem e argumentam tentando chegar a um acordo sobre o que é verdadeiro (Habermas vai chamar isto de constativo), o que deve ser feito (normativo), ou o que expressa os próprios estados pessoais de cada um deles (expressivo).

Mas é aqui que eu queria chegar, e só poderia chegar aqui, com toda a base anterior.

Deste ponto em diante, toda vez que eu e você iremos debater algum tópico, como por exemplo uma estratégia corporativa em que eu acredito uma coisa e você outra, nós estamos nos engajando em um processo de racionalidade comunicativa.

E se, como resultado da nossa discussão, tomamos uma ação subsequente que foi guiada pelo nosso acordo, pelo nosso consenso, então tomamos uma ação comunicativa.

Agora, preste muita atenção a isso. Porque é aqui que a coisa degringola.

É aqui que a maioria dos conflitos nas organizações se dá.

E por que isso importa? Porque administração é essencialmente duas coisas: gestão de pessoas e processos.

Peter Drucker tem uma famosa frase na qual sugere que:

“60% de todos os problemas das empresas resultam de falhas na comunicação.”

E isso tem tudo a ver com o que escrevi até agora.

Por quê?

Por um motivo simples: Habermas vai dizer que nós deixamos a razão comunicativa de lado quando eu digo algo para você com o objetivo que você faça algo — que é o que eu quero que você faça -, independente de eu saber se o que eu disse é verdadeiro ou correto.

Isto é, quando eu não estou falando honestamente, mas tentando manipulá-lo para você fazer o que eu quero que você faça.

Quando isso acontece, a comunicação deixou de ser racional; o orador está se engajando em uma comunicação “estratégica”.

Então, quando eu digo “feche a porta!” não se trata de uma ação comunicativa.

Quando estamos sendo honestos na comunicação, o nosso interlocutor pode discordar fundamentalmente sobre tudo o que falamos, mas há confiança mútua na relação porque ela parte de um princípio de honestidade: ambos estamos

Quando estamos sendo estratégicos na comunicação (no sentido que Habermas dá à palavra), este elo se rompe.

Por quê?

Ora, porque percebemos que o nosso interlocutor está sendo desonesto intelectualmente, que ele está tendendo nos manipular, que não acredita realmente naquilo mas o faz para obter vantagem.

Deixe-me dar um exemplo que vai ilustrar e resumir o conceito: eu lembro o caso de um amigo que trabalhou numa empresa que tinha bons resultados e ele tinha uma parcela de contribuição nisso, como outros mais. Dia após dia, ele ouvia promessas, congratulações mas a coisa ficava por aí.

No final das contas, nenhuma das promessas se cumpriram.

Ele me disse que, ali, rompeu-se um elo de confiança: ele havia saído da racionalidade comunicativa e caído na comunicação estratégica.

Dali não há volta.

Sabe quando o vendedor fala que aquela roupa está linda em você, que você deve comprá-la ou que você está fazendo um ótimo negócio e você sabe que ele não acredita naquilo? Sabe quando você vê claramente que o vendedor só está pensando em seu próprio lado e você é apenas um instrumento para ele atingir o seu objetivo, a sua meta.

Este é o sentimento de quando se quebra a ética da racionalidade comunicativa.

Quando percebemos que nosso interlocutor está pensando no ganho dele e somente no ganho dele, e é sempre assim, mas nunca no seu, isto é o que Habermas chama de comunicação estratégica.

Quando eu era muito novo, ainda criança, ouvi algo que me marcou profundamente:

“Um negócio quando é bom, é bom para todos.”

Eu sempre acreditei piamente nisso.

Às vezes, agir assim pode fazer com que você pareça ingênuo. A esperteza sempre toma a honestidade de intenções como uma forma de ingenuidade pueril. Ser honesto em uma relação onde há uma expectativa de honestidade e parceria entre as duas partes não deve ser visto como sinal de fraqueza. Isso não é ingeuinidade, é dar tempo e um voto de confiança, isto é, manter a oportunidade em pé por mais tempo que a conduta do outro mereceria, para que ela pudesse mudar e cumprir aquilo que ela própria dizia que iria fazer.

Se este assunto lhe interessa, eu tenho um vídeo no meu canal do Youtube onde explico de forma muito mais didática e profunda todos estes aspectos, com a diferença que lá uso o contexto político (mais amplo e mais orientado para a intenção da proposta de ação comunicativa de Habermas).

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