Saber ouvir é o exercício da humildade

Natri (Fabio Natrieli)
MIND o>er matter
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11 min readFeb 15, 2016

Neste mesmo dia — em 15 de Fevereiro, de 1564 — , nascia Galileu Galilei, umas das mentes mais brilhantes que a humanidade produziu, de tal modo que é quase redundante falar da sua genialidade.

Dizem que você conhece a árvore por seus frutos. Pois bem. Galileu foi chamado de “pai da astronomia observacional”, o “pai da física moderna”, o “pai do método científico” e o “pai da ciência moderna”.

No entanto, como os seus feitos em todas estas áreas são bastante conhecidos pela vasta maioria das pessoas, no dia do seu aniversário eu gostaria de chamar atenção para um fato em especial sobre a sua personalidade que tem pouco a ver com as suas contribuições mais célebres.

Para tanto, para fazer melhor explicado o ponto que desejo salientar, para dar a real dimensão da sua humildade, é preciso dimensionar o quão ele foi especial.

Considere o seguinte sobre Galileu: ele não foi “apenas” um físico, astrônomo, matemático e filósofo, cujo conhecimento revolucionou a ciência e mudou a história da humanidade, nos ajudando a ter uma compreensão completamente nova do Universo e nosso lugar nele; mais do que isso, ele foi um gênio em todos os sentidos da palavra — como, por exemplo, um Leonardo Da Vinci foi.

Ele aliou o seu conhecimento teórico à prática como artesão, dois fatores que lhe permitiram ir além dos demais cientistas da sua época. Por exemplo, ele teve de criar e construir parte dos seus próprios equipamentos, como o telescópio que lhe permitiu enxergar as 4 luas que orbitam Júpiter, fato este essencial para que ele pudesse avançar em suas ideias revolucionárias.

Mal comparando, é como se Mozart fosse capaz de construir seus próprios pianos, tecla por tecla, e propor inovações tecnológicas de modo a sofisticar o seu instrumento, além de ser o grande músico e compositor que conhecemos.

Tendo isso em mente, não seria nenhum absurdo supor que, por ser um homem extraordinariamente genial, Galileu pudesse nutrir um certo desinteresse por assuntos triviais, ou, por exemplo, que não apreciasse conversar com outras pessoas que não tivessem à altura de seu saber, certo?

Errado.

Porque ele dizia aprender com todos, como deixa claro na citação abaixo:

Aqui, fica uma sugestão para todos nós: quando estivermos conversando com alguém e, por qualquer motivo, considerarmos que não há nada que possamos aprender com o nosso interlocutor, lembremo-nos do Galileu e, se formos minimamente inteligentes, iremos prestar mais atenção e ouvir melhor o que está sendo dito.

Afinal, por mais inteligente que eu suponha que seja, quem sou eu para saber quem tem o que para me ensinar?

Se um homem brilhante como ele nunca conheceu homem algum de quem não pudesse aprender algo, será que justamente comigo seria diferente?

Aliás, como bem disse Bertrand Russell, parece que “o problema do mundo é que tolos e fanáticos estão sempre cheios de certezas, enquanto os sábios estão sempre cheios de dúvidas”.

Vejamos o que dizem outras pessoas mais:

De um lado, Sócrates, Platão, Galileu, Newton, Michelangelo — apenas para citar alguns gênios — , todos sempre dispostos a aprender até os últimos dias das suas vidas.

Do outro, os tolos e o apego às suas certezas pessoais.

Qual lado lhe parece mais interessante?

Aliás, se você reparar bem, talvez conclua que a grandeza de ser quase sempre está acompanhada de manifestações de humildade.

E aqui cabe um comentário. Humildade é muito diferente da falsa modéstia. Embora as duas manifestações sejam confundidas com alguma frequência, a humildade é a própria antítese da falsa modéstia. Afinal, ninguém pode ser humilde sobre virtudes que não possui.

Assim como assumir posições e emitir opiniões ainda que impopulares ou politicamente incorrentas não é sinônimo de falta de humildade, ou, ainda, características de alguém arrogante ou esnobe.

Esnobe, segundo o dicionário, significa:

1 Admiração e adesão fúteis e tolas a tudo que entra em moda.

2 Preocupação de imitar as pessoas de classe superior e conviver com elas, daí resultando falta de simplicidade e naturalidade nos costumes.

Ora, quem é esnobe então?

Aquele que, independentemente do seu próprio saber — se muito ou pouco, não importa — , e independente do seu nível ou de seu interlocutor — se analfabeto, mestre, doutor, erudito ou sábio, tanto faz —, sabe falar e sabe ouvir; ou então, realmente esnobe é a pessoa que ouve de forma seletiva, ou seja, sempre na dependência da posição social de quem está falando?

Pela própria definição que postamos acima, o esnobe só valoriza o que está acima de si, portanto, ignora todos aqueles a quem ele julga estarem em posições inferiores em sua forma de classificar a sociedade.

Afinal, ele está, segundo seus próprios critérios, em uma posição superior dentro de uma hierarquia. O que mais poderia ele, do alto do seu conhecimento, aprender justamente com quem ele julga ter menos (conhecimento, experiência ou posses) do que ele?

Agora pense comigo, se o esnobe só ouve e respeita quem ele considera estar em uma classe superior, não significa necessariamente que ele desperdiça todos os ensinamentos vindos de todas as outras posições?

Em agindo assim, o esnobe não está limitando o seu saber? Restringindo o seu aprendizado a um pequeno e seleto grupo de professores mesmo tendo o todo à disposição?

E, como consequência, não irá ficar cada vez mais incapaz de inspecionar as coisas por si só, ignorando tudo mais que está a seu dispor?

É o caso do aluno que receia pensar por si. Em querendo dar sempre a resposta certa é que se erra em primeiro lugar. Assim, permanece sempre na dependência do professor doutor, que ele julga ter todas as respostas. Quando, em verdade o bom professor doutor quer exatamente o contrário, que o seu orientando exerça a lógica e o pensamento crítico e seja independente.

É o que o próprio Buda recomenda a seus discípulos:

Não acredite em algo simplesmente porque ouviu. Não acredite em algo simplesmente porque todos falam a respeito. Não acredite em algo simplesmente porque está escrito em seus livros religiosos. Não acredite em algo só porque seus professores e mestres dizem que é verdade. Não acredite em tradições só porque foram passadas de geração em geração. Mas depois de muita análise e observação, se você vê que algo concorda com a razão, e que conduz ao bem e beneficio de todos, aceite-o e viva-o.

Se um gênio da estatura do Galileu afirma que é capaz de aprender com todos os homens, não estaria o esnobe, que só ouve os grandes sábios, esperando ele próprio se tornar um, incorrendo na maior ignorância de todas, tão alardeada por Sócrates: a de se pretender saber o que não se sabe?

Assim que os sofistas também pensavam ser sábios e ouviam-se apenas uns aos outros.

Tiveram a companhia de Sócrates e Platão e perderam a oportunidade de aprender com eles.

Ficaram cegos e surdos debatendo entre si. Discutiam tudo aquilo que ignoravam. Proferiam frases de efeito que não tinham qualquer significado além da arte da retórica. Alimentavam a ilusão de que de fato sabiam as coisas, e, assim, perdiam a chance de saber.

Aliás, é esta a etimologia da palavra sofista, "aqueles que sabem".

Curiosamente, Pitágoras, que sabia muita coisa, certamente muito mais que os sofistas, preferiu cunhar um outro termo para si, de modo que foi o primeiro pensador a se intitular filósofo, ou seja, "amigo da sabedoria".

Se você se deparasse com um sofista e com Pitágoras, qual você consideraria mais humilde? O que diz que sabe ou aquele que se apresenta como amigo da sabedoria?

Veja ainda que em nenhum dos casos citados, eu sugeri que a humildade esteja condicionada a TER muito ou pouco o que quer que seja — dinheiro, conhecimento, poder. Pelo contrário.

Não é preciso ter algo para ser humilde.

Basta ser.

Ser o quê?

Ser paciente e respeitoso, por exemplo. A humildade é uma consequência natural de outras virtudes.

Eu não sei bem se saberia definir o que é humildade. Porém, penso ser capaz de identificar certas condições que fazem de alguém reconhecidamente humilde. Dentre elas, saber falar e saber ouvir. Ou, em outras palavras, ensinar e aprender.

Talvez você esteja se perguntando "hum, tudo bem, eu até entendo que o ouvir esteja relacionado com aprender, mas como pode ter a ver com ensinar?"

É uma questão de lógica, diria até que, neste caso específico, irrefutável.

Se uma pessoa é humilde porque sabe ouvir, supomos que ela já reconhece que qualquer pessoa sempre pode ter algo a lhe ensinar, independentemente de quem seja, certo?

Se é assim, se ela pode aprender de todos, ela também pode ensinar a todos.

É a possibilidade de todos os seres sempre poderem aprender e ensinar a quem quer que seja.

A coisa toda fica tão justa que, se você analisar, a humildade é essencialmente incompatível com complexos de inferioridade e superioridade.

Quem é humilde não se exalta e nem se humilha, mas respeita a si e a todos.

Em suma, o humilde está aberto para aprender e está aberto para ensinar.

Assim como o altruísmo agride o egoísta, a humildade agride os vaidosos e orgulhosos.

Como alguém pode ousar querer lhes ensinar algo, logo eles, que tudo sabem?

Aliás, como se pode identificar um sábio?

Reconhece-se o sábio por aquilo que ele fala ou por aquilo que ele cala?

Mais do que falar bem ou saber calar, eu suponho que uma característica ainda mais importante do sábio seja a sua capacidade de ouvir.

Afinal, falar, até papagaio fala. Como diz o sábio taoísta, Chuang Tzu:

(…) Um cão não é bom, considerado apenas porque ladra bem, e um homem não é bom, considerado apenas por ser bem falante”.

Ou como está escrito na própria Bíblia:

O tolo não tem prazer na sabedoria, mas só em que se manifeste aquilo que agrada o seu coração. (Provérbios 18:2)

Ouvir, entretanto, é uma arte: isso inclui saber ouvir o que as pessoas dizem e também ouvir o que as pessoas não falam.

Para isso, é preciso treinar a paciência, a humildade, o respeito…

Precisa conseguir ser bastante coisa para ser capaz de ouvir. Ouvir até mesmo o que dizem os objetos, por exemplo.

Galileu, como veremos, era humilde suficiente para ouvir até o livro da natureza.

“Mas livro não fala?! Muito menos a natureza fala”

Pois é. Saber ouvir é uma arte. Voltaremos a isso.

E o que denota falta de humildade? Expor um conhecimento é falta de humildade?

Olha, pode até ser que sim, dependendo da forma como o tema foi exposto e com qual intenção.

Para o nosso ponto, tomemos Galileu como exemplo. Será que ele estaria sendo esnobe ao dividir seu conhecimento em astronomia com quem ignorava o assunto? Creio que não.

Agora, por outro lado, se ele se recusasse a ouvir o que o ignorante em astronomia teria para lhe ensinar ou mesmo que desdenhasse de suas dúvidas, aí sim, eu poderia dizer que Galileu era um esnobe, embora fosse um gênio.

Mas, veja, que o contrário é igualmente válido. Se Galileu estivesse disposto a passar o seu conhecimento para o ignorante e este se recusa ouvir, então, o ignorante não terá o conhecimento por também lhe faltar a humildade para recebê-lo.

Portanto, humilde não é quem tem mais disso ou daquilo e usa falsa modéstia; mas sim aquele que ouve a todos com atenção.

Já o esnobe, o vaidoso e o orgulhoso até ouvem, mas de forma bastante seletiva. Depende de quem lhes fala.

Quem sabe ouvir, encontra conhecimento até mesmo na ignorância.

Por isso, o tolo permanece refém da soberba de sua pretensa sabedoria e o sábio avança livre pela humildade de sua reconhecida ignorância.

Aliás, tem uma frase que diz assim:

Corrija um sábio e o fará mais sábio. Corrija um tolo e o fará teu inimigo.

Essa frase, aliás, é uma adaptação de um provérbio de Salomão, encontrado na Bíblia, mais especificamente em Provérbios 9:8–9:

“Não repreendas o escarnecedor, para que não te odeie; repreende o sábio, e ele te amará. Dá instrução ao sábio, e ele se fará mais sábio; ensina o justo e ele aumentará em entendimento”.

Ou, então, se você não é lá muito fã da bíblia (o que eu acho uma pena; independentemente da questão da religião, a bíblia é uma obra prima literária), ouve então ao Dalai Lama:

“Quando você fala, você está apenas repetindo aquilo que já sabe; mas quando você ouve, você aprende algo novo”

Herman Hesse é um dos meus autores preferidos. Ele também sugere uma relação entre ouvir e paciência, que é outra virtude do sábio.

Quanto mais humilde, paciente e respeitoso alguém for, quanto mais ouvir, mais tamanho terá. Quanto maior a pessoa, mais oportunidade terá de ser humilde.

Eis aí o paradoxo da humildade: é preciso primeiro se fazer SER alguma coisa grande para que, então, possa-se optar em ser humilde.

Aliás, isso me traz à tona uma outra frase, de Golda Meir:

“Não seja humilde. Você não é tão importante assim"

Galileu dava mostras de sua humilde não apenas em relação a outros homens, dizendo que aprendia com todos eles, mas também em relação à própria natureza, que inspecionava respeitosamente. À sua época, posso supor que os sacerdotes, cheios de saber, considerassem que lhe faltasse humildade, não só em relação a eles, como à igreja e ao próprio Deus. Talvez, o contexto de sua frase seja uma resposta para esta questão:

Como prêmio, através da contemplação — citando suas próprias palavras — , ele aprendeu a ouvir a voz do universo, que, para muitos, é irremediavelmente mudo. Assim, Galileu penetrou em uma área que, até então, pertencia apenas a Deus e ousou desafiar os seus “representantes” na Terra. Foi esta heresia, aliás, que o levou à prisão. Que importa? Não dissemos que a humildade não exalta e nem humilha? Haveria maior satisfação para ele do que ser capaz de ouvir o que o Universo estava a lhe dizer?

“A filosofia é escrita nesse grande livro, o Universo, o qual permanece continuamente aberto para a nossa contemplação. Mas o livro não pode ser entendido a não ser que primeiro se aprenda a linguagem e se leia as letras das quais ele está composto. Está escrito na linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas sem as quais é humanamente impossível compreender uma simples palavra dele: sem isso vagamos num labirinto escuro.”

Galileu Galilei: grande cientista e Grande Homem.

Mesmo com todo conhecimento adquirido, soube se manter humilde para continuar aprendendo até mesmo do mais ignorante dos homens que cruzasse o seu caminho.

Um homem brilhante que sabia que a Terra é um lugar para aprender e ensinar.

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