Todo julgamento é prova de fraqueza
Dizem que de médico e louco todo mundo tem um pouco. É verdade. Mas, se você reparar bem, muito mais do que médico e louco todo mundo tem muito é de juíz, e aquele tipo que é o dono-da-verdade.
Basta navegar um pouco pelas redes sociais e você irá se deparar com gemnte de todo o tipo, conservadores e progressistas, comunistas e liberais, ateus e religiosos, gente de direita e esquerda acusando uns aos outros por suas condutas ou formas de pensar. Em todos estes casos, todas as partes acreditam estar cobertas de razão e, por isso, sentem-se no direito de julgar moralmente as outras pessoas e suas escolhas. Veja, discordar é uma coisa. Julgar que a outra pessoa é imoral ou amoral porque ela não pensa como você, é outra, completamente diferente.
Ainda mais grave é que as pessoas parecem ignorar que, ao julgar os outros, estão negando a própria lógica de sua fundamentação e, com isso, agindo sem qualquer racionalidade. Eu explico.
Vamos pegar por exemplo uma pessoa que é religiosa ou espiritualizada. Quando uma pessoa assim julga seus “irmãos”, não está ela dando a maior prova de que não acredita que exista uma justiça maior?
Se, por exemplo, um espírita vive julgando e condenando os outros em vida, ele não está dando a maior prova de que não acredita na lei do karma, que sua doutrina prega? Porque se ele realmente tivesse fé que a lei do karma é implacável e absoluta — como, em teoria, deve ser -, isso bastaria para que ele tivesse paz de espírito suficiente de que a justiça é sempre feita! Então, para que serve o seu julgo?
O mesmo vale para os cristãos, principalmente os católicos e protestantes — principalmente eles porque acreditam em uma única vida e que a sua conduta em vida determinará o seu futuro, ou no céu ou no inferno. Se a pessoa confia que haverá um julgamento final, por que esta preocupação demasiada em pré-julgar as pessoas que, aos seus olhos, são pecadores? Por que elas se preocupam tanto com o casamento gay ou com aborto ou com o que quer que seja. É legítimo que discordem do seu ideal, mas se tais condutas são de fato repreensíveis aos olhos de Deus, os próprios pecadores não irão prestar contas sobre seus atos um dia? Então, em que adianta o cristão — apesar do próprio Jesus ter insistido arduamente, por mais de uma vez, a ilegitimidade de se julgar os outros — ,viver atacando pedras publicamente em todos aqueles que ele considera um pecador?
O mesmo vale para os muçulmanos e para os islâmicos. Peguemos, por exemplo, aquele pessoal fundamentalista do ISIS. Eles querem matar todo mundo que não é muçulmano porque, segundo a interpretação deles do alcorão, quem não se converte ao islamismo já está no caminho do inferno. Então, quer dizer que eles sentem-se no direito de agir como Deus e também eles julgar os pecados alheios? Não é esta a maior heresia de todas, a criatura querer tomar o lugar de Deus? Quando decidem eles fazer “justiça” com as próprias mãos não parecem admitir, sem perceber, que não confiam, ou seja, não têm fé suficiente, que seu Deus seja capaz de fazer este julgo quando chegar a hora?
Para os que creem — seja em Deus, Alá, Brahma — , basta as palavras do sábio Shams Tabrizi, que dizem ter sido instrutor do poeta sufi Rumi:
“Não se preocupe com truques e trapaças. Se algumas pessoas estão tentando armar contra você e machucá-lo, Deus também está armando para eles. Escavadores de buracos caem em seus próprios buracos. Não há mal que permanece sem ser punidos, não há bem que permanece não agraciado. Tenha fé na justiça e deixar o resto ser.” — Shams Tabrizi
E os ateus materialistas? Estes também não tem a menor razão para julgar ninguém. Porque se não existem valores morais absolutos, se Deus não existe ou não há uma verdade absoluta, então, significa dizer que tudo, absolutamente tudo é relativo. Se tudo é relativo, se não existe um certo e errado, se não há um norte moral absoluto que guie os seres humanos, se a vida é um acidente sem qualquer sentido e totalmente despropositado, então, todas estas ideias de justiça e moralidades são meras convenções sociais. Portanto, ninguém pode condenar o ISIS por decapitar pessoas por qualquer que seja o motivo. Ou, por exemplo, condenar a escravidão. Ou a corrupção. Se a morte é mesmo o fim de tudo e o conceito de certo e errado não existe em si, tudo é mera questão de interpretação sobre o que uma determinada sociedade diz ser certo ou justo. Então, em sendo tudo relativo, está tudo liberado. Os conceitos de bom e mau são apenas questões de como cada sociedade legitima suas narrativas. Se, por exemplo, um ateu materialista fala em justiça social, mal sabe ele que, automaticamente, ao clamar por uma ideia de justiça, está corroendo sua própria ideologia que prega que não existe uma ideia universal e absoluta de justiça e verdade. A justiça social não pode existir para quem não acredita em valores absolutos. Porque se não há justiça absoluta, toda ideia de justiça é relativa e, aí, vale tudo. O que pode ser justo para uns, pode não ser para outro. Clamar por justiça, neste contexto, não faz o menor sentido.
Pegue por exemplo o sujeito que diz defender a diversidade, mas é intolerante com quem pensa contra o seu senso de diversidade. Se não há valores morais absolutos, não há como alguém se opor ao preconceito. Simplesmente não há base moral para sustentar que o preconceito seja errado. E, em sendo as coisas assim, sem certo e errado, em sendo tudo apenas perspectivas relativas e constructos sociais de certo e errado, temos o paradoxo do preconceito: quem diz combater o preconceito está sendo preconceituoso com os preconceituosos.
Não estou aqui discutindo e muito menos fazendo juízo de valor moral sobre religiões, se uma religião é melhor que outra ou discutindo ateísmo. Estou apenas demonstrando a impossibilidade lógica que permita alguém supor que está em posição privilegiada para julgar quem quer que seja.