A Derrota do Próprio Governo na Guerra Imperialista

Vladimir Lenin

Sarah Carmesim
Miséria da Razão
9 min readSep 30, 2023

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Foto: Al Munson.

Durante uma guerra reacionária a classe revolucionária não pode desejar nada além da derrota do próprio governo.

Isso é um axioma, disputado apenas pelos partisanos conscientes ou os satélites dos sociais-chauvinistas. Entre os primeiros, por exemplo, estão Semkovski [1] do Comitê Organizativo em seu artigo para o Izvestia [2], e entre os últimos, Trotsky e Bukvoyed [3], e Kautsky na Alemanha. Desejar a derrota da Rússia, Trotsky escreve, é “uma concessão desnecessária concessão à metodologia do social-patriotismo, que substituiria a luta revolucionária contra a guerra e as condições que a derivam, com uma orientação — altamente arbitrária na presente situação — em direção ao menos pior” [4].

Isto é um exemplo de extrema fraseologia na qual Trotsky se utiliza para sempre justificar o oportunismo. Uma “luta revolucionária contra a guerra” é meramente uma exclamação vazia e sem sentido, algo que os heróis da Segunda Internacional dominam com primazia, exceto se significar ação revolucionária contra o próprio governo até mesmo em tempos de guerra. É preciso pensar um pouco antes de entender esse fato. Ação revolucionária contra o próprio governo em tempos de guerra inevitavelmente significa, não apenas desejar sua derrota, mas sim facilitar sua derrota. (“Caro leitor”: note que isso não significa “explodir pontes”, organizar greves mal sucedidas na indústria da guerra, e em general ajudar o governo a derrotar os revolucionários.)

As frases prontas de Trotsky fazem com que este perca o rumo em uma questão simples. Parece que para ele significa que desejar a derrota da Rússia significa desejar a vitória da Alemanha. (Bukvoyed e Semkovski são mais diretos em expressar esse pensamento que compartilham com Trotsky.) Mas Trotsky considera essa a “metodologia do social-patriotismo”! Para ajudar as pessoas que são incapazes de pensar por si, a resolução de Berna [5] tornou claro que em todos países imperialistas devem desejar a derrota do próprio governo. Bukvoyed e Trotsky preferem evitar esta verdade, enquanto Semkovski (um oportunista que é mais útil para a classe trabalhadora que os outros, graças a sua ingenuidade em insistir na sabedoria burguesa) disse o seguinte: “Isso não faz sentido, pois ambos Rússia e Alemanha podem ganhar” [6].

Tome como exemplo a Comuna de Paris. A França foi derrotada pela Alemanha mas os trabalhadores foram derrotados por Bismarck e Thiers! Se Bukvoyed e Trotsky pensassem um pouco, eles teriam percebido que adotaram o ponto de vista da guerra adotado por governos e sua burguesia, ou seja, se curvam à “metodologia política do social-patriotismo”, usando a fraseologia pretensiosa de Trotsky.

Uma revolução em tempos de guerra significa guerra civil; a conversão de uma guerra entre governos em guerra civil, por um lado, facilitados pelos revezes militares (derrotas) dos governos; por outro, não se pode desejar sucesso nessa conversão sem facilitar a derrota.

A razão pela qual os chauvinistas (incluindo o Comitê Organizativo e o grupo Chkheidze) [7] repudiam o “slogan” da derrota, pois esse slogan sozinho implica a chamada consistente por ação revolucionária contra o próprio governo em tempos de guerra. Sem tal ações, milhões de frases como a guerra contra “a guerra e as condições, etc.” não são nada.

Qualquer um que tente refutar o “slogan” da derrota do próprio governo na guerra imperialista, deve provar três coisas: (1) que a guerra de 1914–15 não é reacionária, ou (2) que a revolução derivada da guerra é impossível, ou (3) que a coordenação e ajuda mútua é possível entre os movimentos revolucionários em todos países beligerantes. O terceiro ponto é particularmente importante para a Rússia, um país muito atrasado, onde a revolução socialista imediata é impossível. Isso é porque os sociais-democratas russos têm que ser os primeiros a avançar a “teoria e prática” do “slogan” da derrota. O governo czarista estava correto em reiterar que a agitação conduzida pelo grupo Social-Democrata na Duma — que essa agitação enfraqueceu a “força militar” da Rússia e provavelmente irá causar sua derrota. Seria tolice ignorar esse fato.

Os oponentes do slogan da derrota estão simplesmente com medo de si mesmos quando reconhecerem o fato bem óbvio da conexão inseparável entre agitação contra o governo e ajudar em derrotá-lo.

É possível a coordenação e ajuda mútua entre o movimento russo, revolucionário no sentido burguês-democrático, e o movimento socialista no Ocidente? Nenhum socialista que abordou o assunto na última década duvidou disso, o movimento entre os proletários austríacos após Outubro de 1905 [8], provou ser possível.

Pergunte a qualquer social-democrata que se considera um internacionalista se ele aprova o entendimento entre os sociais-democratas em ação revolucionária contra todos governos em guerra. Muitos deles irão dizer que é impossível, como Kautsky já fez, provando todo seu social-chauvinismo. Trata-se de uma mentira deliberada e consciente, que contradiz os debates resolvidos no Manifesto de Basel [10]. Se isso estivesse certo, os oportunistas estariam corretos em vários aspectos!

Muitos irão se expressar na aprovação desse entendimento. Para isso devemos dizer: se essa aprovação não for hipócrita, é ridículo pensar que, em tempos de guerra e condução de uma, um entendimento “formal” seja necessário, como a eleição de representantes, o estabelecimento de reuniões, assinaturas de acordos, e escolhas de dias e horas! Apenas os Semkovskis são capazes de pensar isso. Um entendimento de ações revolucionárias mesmo em um país, pode ser conseguido apenas pela força do exemplo de ação revolucionária séria, lançando tal ação e a desenvolvendo. Entretanto, tal ação não pode ser iniciada sem a derrota do governo, e sem contribuir para esta derrota. A conversão da guerra imperialista em guerra civil não pode ser “feita” da mesma forma que a revolução não pode simplesmente ser “feita””. Se desenvolve a partir de uma série de diferentes fenômenos, aspectos, ocorrências, características e consequências da guerra imperialista. O desenvolvimento é impossível sem uma série de revezes militares e derrotas de governo ao sofrer golpes das próprias classes oprimidas.

Repudiar o slogan da derrota significa permitir que o ardor revolucionário se degenere em uma frase vazia, ou apenas hipocrisia.

Qual é o substituto proposto para o slogan? É aquele de “nem vitória nem derrota”. Isso, entretanto, não é nada além de uma paráfrase do slogan de “defesa da pátria”. Significa transferir a problemática ao nível da guerra entre governos (que, de acordo com o conteúdo do slogan, devem ser mantidos, e segurarem suas posições), e não ao nível da luta das classes oprimidas contra seus governos! Significa justificar o chauvinismo em todas nações imperialistas, no qual a burguesia está disposta a dizer — e eles dizem — que estão apenas lutando contra a derrota. “A significância de nosso voto no 4 de Agosto não foi a favor de uma guerra e sim contra nossa derrota”, David, um dos líderes do oportunismo, escreve em seu livro [11]. O Comitê Organizativo, junto de Bukvoyed e Trotsky, se sentam na mesma mesa de David quando defendem o slogan de “nem vitória, nem derrota”.

Examinando de mais perto, esse slogan é revelado como uma “trégua entre classes”, a renúncia da luta de classes por parte das classes oprimidas em todos países beligerantes, já que a luta de classe é impossível sem se aplicar golpes contra a “própria” burguesia, contra o “próprio” governo, onde golpear o próprio governo em tempos de guerra é (para informação de Bukvoyed), alta traição, significa contribuir para sua derrota. Aqueles que aceitam “nem vitória, nem derrota” podem apenas apoiarem a luta de classes de maneira hipócrita, sem “abalarem a trégua de classes”; em prática, tais pessoas estão renunciando a política do proletariado independente ao subordinar a classe para a burguesia absoluta de todos países em guerra e executando a tarefa de proteger nações imperialistas contra a derrota. A única política real, e não apenas abalando verbalmente a “trégua de classes”, de aceitação da luta de classes, é para o proletariado tirar vantagem das dificuldades experienciadas por seu governo e burguesia para assim derrubá-los. Isso, todavia, não pode ser atingido ou sequer almejado, sem desejar a derrota do próprio governo e contribuindo para essa derrota.

Quando, antes da guerra, os sociais-democratas italianos levantaram a questão da guerra em massas, a burguesia respondeu, sem dúvida corretamente de acordo com seu ponto de vista, que isso seria alta traição, e que sociais–democratas seriam tratados como traidores. Isso é verdade, assim como a fraternização nas trincheiras é alta traição. Aqueles que escrevem contra a “alta traição”, como faz Bukvoyed, ou contra a “desintegração da Rússia”, como Semkovsy o faz, estão adotando o ponto de vista burguês, não proletário. O proletariado não poderia lidar um ataque de classe contra seu governo um oferecer uma mão amiga a seu irmão, o proletariado do país “estrangeiro” que está de guerra contra “nosso lado”, sem cometer “alta traição”, sem contribuir para sua derrota, e a desintegração da “própria” potência imperialista.

Mas, apoiar “nem vitória, nem derrota” é conscientemente ou inconscientemente chauvinista; no melhor dos casos faz de alguém um conciliador pequeno burguês, um inimigo do proletariado, um partidário dos governos existentes e das classes dominantes.

Permita-nos analisar a questão por outro ângulo. A guerra não pode nada além de evocar nas massas os mais turbulentos sentimentos, que perturbam o estado comum e passivo da mentalidade de massa. Táticas revolucionárias são impossíveis se não estiverem ajustadas de acordo com esses novos sentimentos turbulentos.

Quais são as principais correntes desses sentimentos turbulentos? Tratam-se de: (1) horror e desespero, portanto, crescimento de religiosidade. Novamente as igrejas estão lotadas, os reacionários alegremente declaram “onde tiver sofrimento terá religião,” diz o arqui-reacionário Barrs. Ele está correto, também. (2) Ódio ao “inimigo”, um sentimento que é minuciosamente fomentado pela burguesia. (3) Ódio contra o “próprio” governo e a “própria” burguesia — o sentimento de todos trabalhadores conscientes, que a guerra é a “continuação das políticas” do imperialismo, que eles “contra-atacam” utilizando seu ódio ao inimigo da classe, e, que uma “guerra contra a guerra” é uma frase banal a não ser que signifique a revolução contra o próprio governo. Ódio contra seu governo e sua burguesia não podem ser proclamados sem que sua derrota seja desejada; não se pode ser um oponente de uma trégua civil sem ter ódio do governo e burguesia!

Aqueles que proclamam “nem vitória, nem derrota” estão ao lado da burguesia e dos oportunistas, pois eles não crêem na possibilidade de ação revolucionária internacional da classe trabalhadora contra seus governantes, e não desejam que essa situação se desenvolva, na qual, apesar de sem duvidas difícil, é a única tarefa apropriada para um proletariado, a única tarefa socialista. É o proletariado que deve se tornar o mais avançado dos beligerantes. Grandes potências, que através do intermédio de seus partidos, tiveram que adotar — especialmente tendo em vista a traição dos sociais-democratas franceses e alemães — táticas revolucionárias são exceto se “contribuírem para a derrota” de seu próprio governo, e que levem à revolução europeia, e a paz permanente do socialismo, e libertação da humanidade do horror, miséria, selvageria e brutalidade que agora prevalecem.

Vladimir Ilyich Lenin. 26 de Julho, 1915.

Referências

[1] Semen Jurgevitch Semkovsky (1882–1937). Filósofo e sociólogo, primo de León Trotsky. Foi membro do Comitê Organizativo Ucraniano até sua morte em 1937, quando foi executado sob acusações de terrorismo e traição.

[2] Partinie Izvestia N° 2. Março de 1906.

[3] David “Bukvoyed” Riazanov (1870–1938). Historiador, arquivista e revolucionário. Um dos fundadores do Instituto Marx-Engels, também executado em 1938 sob acusações de terrorismo.

[4] Nashe Slovo N° 105. Junho de 1915.

[5] Resoluções preparatórias para a conferência da Segunda Internacional em Zimerwald, Berna, em setembro de 1915, publicado no jornal Sotsial Demokrat N°. 40.

[6] Op. Cit. Izvestia.

[7] Fração interna do Comitê Organizativo do Partido Operário Social-Democrata Russo liderada por Nikolay Chkheidze.

[8] Referência a agitação política ocorrida na Áustria-Hungria após o manifesto publicado pelo Czar concedendo algumas liberdades políticas como um acordo para com as classes revolucionárias, agradando liberais e mencheviques. Os Bolcheviques denunciaram o manifesto como uma tentativa de conciliação onde a luta deveria persistir contra o regime. As revoltas em Viena acabaram por garantir o sufrágio universal.

[9] Die Neue Zeit. 2 de Outubro 2, 1914.

[10] Congresso extraordinário da Segunda Internacional convocado em decorrência da Primeira Guerra dos Balcãs, em 1912. O congresso reafirmou a posição comunista de “guerra contra a guerra”, onde caso conflitos imperialistas surgissem, os partidos e revolucionários deveriam se opor a ela e lutar para que essa se transforme em guerra civil.

[11] Assim escreve Eduard David (1863–1930), membro do Reichstag pelo Partido Social-Democrata Alemão e futuramente Ministro do Interior no governo de Philipp Scheidemann em 1919, em seu livro Sozialdemokratie und Vaterlandsverteidigung (Social-democracia e a Defesa da Pátria), de 1915.

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