Anarco-Marxismo Estadounidense com Tendências Liberais

Sarah Carmesim
Miséria da Razão
Published in
6 min readOct 29, 2020
Loja da Target após os tumultos em Minneapolis.

Em fevereiro de 1902, Vladimir Lenin publicou o panfleto O Que Fazer: Questões Candentes de nosso Movimento, autoproclamados marxistas de todas as tendências adotaram o texto como diretriz para atividade política, incluindo os dos Estados Unidos. Mas os marxistas nos Estados Unidos deixam claro por suas ações que eles não leram, entenderam ou se importam com a tese de O Que Fazer.

Faz sentido que o panfleto lançado por Lênin há cento e oito anos fosse ignorado por uma esquerda modernizadora que não só carece de conhecimentos teóricos, mas também capta seus fundamentos não do marxismo do qual tomam emprestado o nome de sua “ideologia”, mas dos desvios Lassalistas de Stálin em seus textos falsificadores que precederam o enterro do Partido Bolchevique e da revolução mundial, ou do altamente egocêntrico e acadêmico pensamento de Trotsky.

A esquerda dos Estados Unidos, balcanizada em inúmeras e minúsculas seitas de modernizadores possui uma característica bastante singular: não conseguiu se reinventar e formar um novo movimento de massa desde a perseguição e desmantelamento em escala federal do Partido dos Panteras Negras no final dos anos 60 e início dos anos 70. Enquanto em outras regiões do mundo, a Europa para uma comparação mais fácil, retrocedeu à hegemonia dos partidos social-democratas após o colapso da União Soviética e o cessar-fogo em massa de grupos terroristas armados como o Rote Armee Fraktion, as Brigadas Rossas, o Euskadi Ta Askatasuna, entre outros.

O desmantelamento dos sindicatos conduzido por Reagan nos anos 80 durante a aurora da hegemonia neoliberal, solidificou a separação completa da esquerda do operariado nos Estados Unidos. Ambos os movimentos se afastaram ao ponto de dissociar totalmente em objetivos e programa, o status quo Democrata-Republicano retirou um antigo — e último — reduto da extrema-esquerda estadounidense através do desmantelamento completo dos sindicatos ou com a fagocitose forçada dessas organizações pela AFL-CIO, nada mais do que uma seção do Departamento do Trabalho dos Estados Unidos.

Mas é muito fácil (e preguiçoso) agregar o fracasso total das organizações esquerdistas nos Estados Unidos apenas aos esforços do FBI e ignorar as contradições que já existiam no seio destas.

Fato permanece que a esquerda “marxista” nos Estados Unidos, como é evidente pelos protestos George Floyd, atingiu um nível de contentamento tão alto e organização política real tão baixo, que qualquer forma de explosão social espontânea e aleatória é vista com a perspectiva mais exagerada e absurda falta de crítica, característica que a aproxima mais do anarquismo que do marxismo.

Pode-se entender que um grande número de social-democratas e outros revolucionários na Rússia teriam certo afeto por movimentos espontâneos e táticas primitivas que constantemente não traziam resultados reais e só serviam para pôr em perigo a vida dos envolvidos: os camponeses e a incipiente classe trabalhadora. Esses social-democratas não se consideravam leninistas nem proclamavam manter os princípios do leninismo, diferente dos Marxistas estadounidenses. Uma rápida investigação da história russa nos mostra que o leninismo sobreviveu, enquanto o espontâneismo da Rabocheye Dyelo e outras organizações social-democratas, pereceu.

Quando os protestos na área ao redor da 3ª Delegacia de Minneapolis tiveram início, ninguém previu a proporção que eles tomariam. A revolta em Minneapolis foi uma súbita explosão de raiva popular. E, como é comum de tais eventos, foi de curta duração. Todavia, a virada liberalizadora dos protestos em Minneapolis, após o envolvimento da Guarda Nacional, não impediu que protestos radicais e violentos entrassem em erupção em todos os 50 estados, os quais também seguiram a tendência de Minneapolis e gradualmente se desradicalizaram, um a um.

Não é a primeira vez nos últimos anos que protestos extremamente liberais explodem e atraem apoio cego e acrítico entre a esquerda radical, o exemplo que esta autora mais conhece é a onda de manifestações populares iniciadas em 2013 no Brasil. Certos elementos da fraturada extrema-esquerda brasileira não tiveram dúvidas em se juntar a estes protestos contra a coalizão de centro-esquerda liderada pelo PT, inclusive depois de sua cooptação por elementos que futuramente se mostrariam serpentes fora do ovo, abandonando o programa original dos protestos (passe livre) por slogans vazios de significado (não vai ter copa).

Partidos como o PSoL ainda idealizam as ditas Jornadas de Junho, ignorando intencionalmente que estes protestos foram um dos momentos cruciais para entender a ascensão do fascismo brasileiro. Deve-se criticar a adesão dos protestos de 13 por parte deste grande pedaço da extrema-esquerda, eles foram criticados e ignorados até ser tarde demais quando percebeu-se a enorme armadilha que havia sido armada pela mídia e a burguesia nacional brasileira. É seguro dizer que a esquerda brasileira como um todo ainda está sofrendo o golpe de total confusão e desorganização que foi desferido a partir de 2013, a esquerda dos Estados Unidos comete o mesmo erro.

Comete o mesmo erro ao ignorar as alarmantes contradições que se erguem diariamente dentro do movimento, a maior e mais pungente delas foi o Capitol Hill Autonomous Zone (Zona Autônoma de Capitol Hill), o CHAZ, mais tarde rebatizado de Capitol Hill Occupied Protest (Protesto Ocupado de Capitol Hill), já que os próprios líderes reconheceram a desonestidade no nome original.

Sua total desorganização, entre outras coisas, levou à morte de dois adolescentes negros dentro da zona de ocupação. Algumas semanas após o desmantelamento do CHAZ/OP, esquerdistas radicais, especialmente anarquistas, ainda celebram o CHAZ, a grande experiência do nada por nada.

O erro nos Estados Unidos é muito mais perigoso para um movimento, pois não é massificado e relativamente “proletarizado” como no Brasil. O Partido dos Trabalhadores e grande parte da esquerda moderada local ainda consegue atrair a massa proletarizada para o seu estandarte, coisa que a esquerda nos Estados Unidos não mais consegue fazer.

Uma terceira onda de protestos radicais na Costa Oeste começou após a resposta exageradamente violenta das forças federais às grandes manifestações progressistas, em sua maioria compostas por liberais-radicais, em Portland. O governo federal falhou em seu tato de conter (contenção que se via desnecessária) os protestos e agravou uma situação que já estava sob controle. A violência generalizada por parte dos civis não foi devida ao dito radicalismo inerente (seja ele qual for) dos manifestantes, mas porque eles foram forçados por agentes externos a agirem com violência.

Portland, agora o epicentro dos protestos radicais nos Estados Unidos, mostra mais uma vez essa espontaneidade endêmica e perigosa. Milhares de manifestantes “combatendo destemidamente” os mercenários federais em suas caminhonetes brancas, outras centenas presas e feridas, mas para quê? Não há exigências sendo feitas, nenhum programa sendo defendido, apenas palavras vazias e slogans.

Os protestos em Portland revelam um comportamento generalizado do marxismo estadounidense em um microcosmo: é incapaz de organizar qualquer coisa por si mesmo, só segue, para provar-se útil, a asa de protestos liberais. Não é surpreendente quando a direita generaliza marxistas e anarquistas como sendo liberais, parte do mesmo grupo.

O marxismo modernizador com características estadunidenses não tem nenhuma diferença discernível de práxis e conhecimento teórico (ou falta de) dos anarquistas ou mesmo dos liberais radicais, a única diferença são os rótulos pelos quais eles decidiram se chamar.

Em outras palavras: pode-se simplesmente chamar o marxismo modernizador com características estadounidenses pelo que ele realmente é: anarco-marxismo liberal.

Factualmente, o anarco-marxismo estadounidense se distanciou da classe que se supõe emancipador: o proletariado.

O que o anarco-marxismo norte-americano tem feito pela classe trabalhadora em termos de organização?

Ou melhor ainda, o que o anarco-marxismo norte-americano tem feito pela população latina e negra dos Estados Unidos desde o desmantelamento do Partido dos Panteras Negras? Perdeu efetivamente esta camada oprimida do proletariado nas armas para gangues e na política para o status quo DNC-GOP. Tudo isso graças a sua inação e incapacidade de criar um programa de continuidade que estava além de personalidades e quadros específicos (embora isso pudesse ser dito de qualquer partido dito Comunista no ocidente).

Se o governo dos Estados Unidos não tivesse sido impulsivo em sua resposta a esses protestos, estes já teriam terminado.

É uma verdadeira pena que o governo dos Estados Unidos planeje desperdiçar milhões de dólares em um quarto red scare e desmantelar grupos que nunca representarão qualquer ameaça real para o status quo nos Estados Unidos em qualquer capacidade, mas assim é o fascismo e sua necessidade de criar-se inimigos.

Para que um movimento seja levado a sério, mesmo sem nenhuma perspectiva de revolta revolucionária hoje, ele deve ser capaz de se apresentar como uma organização capaz de ferir o capital no presente e derrubar o estado atual das coisas através de uma revolução violenta no futuro. Não se alienar da base, isolando-se com medo de sua própria sombra e refugiando-se em clubes de livros universitários ou organizações ativistas que são muito incompetentes ou muito pequenas para realmente fazer alguma coisa.

Por enquanto, o Anarco-Marxismo Estadunidense nada mais é do que uma coleção de objetos imóveis que simplesmente seguem a onda da História ao invés de assumir o controle da própria e orientar seu futuro.

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