Anarquia e Comunismo Científico
A ruína econômica e o declínio da produção são inegavelmente acompanhados pelo declínio da psique saudável do proletariado. Todas com a tendência de arrastar o proletariado ao nível de uma multidão raivosa e transformando elementos marcantes do trabalhador, com um recorde de atividade produtiva, em indivíduos sem classe — criam situações que mais ou menos favorecem tendências anarquistas. Em cima disso, os sociais-democratas criaram a confusão em relação ao anarquismo em sua adulteração de Marx. Como resultado se faz necessário que listemos o que separa o Marxismo, ou Comunismo Científico, do anarquismo.
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Comecemos pelo “objetivo final” nosso e o dos anarquistas. De acordo com a maneira que o problema é apresentado, comunismo e socialismo pressupõem a conservação do estado, já a “anarquia”, elimina o estado. “Defensores” do estado versus “adversários” do estado: este é o contraste em que anarquistas e marxistas são geralmente interpelados.
Deve-se saber que a impressão deste “contraste” não é apenas o trabalho de anarquistas, sociais-democratas também levam a culpa. Falar sobre o “estado do futuro” e o “estado do povo” ajudaram a espalhar tais ideais no reino da fraseologia e democracia. Além disso, alguns partidos sociais-democratas sempre irão fazer ênfase em sua natureza “estatista”. O slogan da social-democracia austríaca costumava ser “nós somos os verdadeiros representantes do estado”, esse tipo de pensamento se espalhou entre os demais partidos sociais-democratas além do austríaco. De certa forma, esse era o lugar comum em nível internacional que continua até os dias de hoje, já que os velhos partidos não foram completamente liquidados. É claro, essa “defesa do estado” nada tem a ver com os ensinamentos comunistas de Marx.
O comunismo científico vê o estado como organização da classe dominante, um instrumento de opressão e violência, é nessa base que não deve-se atar o estado com um “estado do futuro”. No futuro não existirão classes e nem opressão destas, e portanto nenhum instrumento que exprima tal opressão, ou seja, a violência estatal. O “estado sem classes” — uma noção que certamente vira a cabeça de sociais-democratas — é uma contradição viva, um absurdo, um abuso da língua. Mas se essa é a nutrição espiritual da social-democracia, não devemos culpar os revolucionários Marx e Engels.
A sociedade comunista é uma sociedade SEM ESTADO. Se este é o caso —e não há dúvidas que é o caso — qual é, na realidade, a distinção entre anarquistas e marxistas? Essa distinção, desta forma, desaparece quando se trata de examinar o problema da sociedade quando se trata do “objetivo final”?
Não, a distinção não existe. Mas pode ser encontrada em outros lugares, e pode ser definida como uma diferença entre uma produção em larga escala e centralizada contra a produção atômica e descentralizada. Nós comunistas acreditamos que a sociedade não deve apenas se emancipar da exploração de homem para homem, mas também garantir ao homem a mais possível independência da natureza que o cerca de forma que reduza o tempo mínimo “gasto em trabalho socialmente necessário”, desenvolvendo forças sociais de produção ao máximo e consequentemente a produtividade em si do trabalho social.
Nossa solução ideal é a produção centralizada, metodologicamente organizada em grandes unidades e, finalmente, a organização da economia mundial como um todo. Anarquistas, por outro lado, preferem tipos de relações de produção completamente diferentes: seu ideal consiste em pequenas comunas, que segundo sua própria estrutura, não possuem qualificação ou meios para gerir qualquer empreitada de grande porte, mas que conseguem atingir “acordos” entre si para criar uma rede de contratos cooperativos livres. De um ponto de vista econômico, esse tipo de sistema de produção está mais próximo de comunas medievais do que o modo de produção destinado a superar o sistema capitalista, mas esse sistema não é apenas um passo retrógrado: é também completamente utópico. A sociedade do futuro não será conjurada de matéria nula inexistente, nem será trazida por um anjo dos céus. Ela irá surgir das cinzas da sociedade antiga, das relações criadas pelo gigante aparato do capital financeiro. Qualquer nova ordem é possível e útil apenas se levar ao avanço das forças produtivas necessárias para que tal ordem desapareça. Naturalmente, o aprofundamento das forças produtivas é apenas concebível como continuação da tendência do processo de centralização como um nível de organização intenso na “administração das coisas” que substitui o “governo dos homens”.
Agora — o anarquista irá responder — a essência do estado consiste precisamente na centralização e se mantida a centralização da produção, deve-se também manter o aparato do estado, o poder da violência, em resumo: “relações autoritárias”.
Tal resposta está incorreta, pois pressupõe uma concepção anticientífica e um tanto infantil da concepção do estado. O estado, assim como o capital, não é um objeto mas uma relação entre classes sociais. É a relação entre classes obtida entre aquele que governa e aquele que é governado. Essa relação é a pura essência do estado. Morta e enterrada esta relação, o estado também é morto e enterrado. Ver na centralização uma característica essencial do estado é fazer o mesmo erro daqueles que veem o capital como modo de produção. Os meios de produção se tornam capital apenas quando eles são monopolizados na mão de uma classe que serve para explorar outra classe através do trabalho assalariado, portanto, quando os meios de produção são a expressão de relações sociais de exploração entre classes. Por si mesmos, os meios de produção devem ser admirados como instrumentos da luta do homem contra a natureza. É entendido, então, que estes não irão desaparecer na sociedade futura, mas sim, pela primeira vez, ser aproveitados da maneira que merecem.
É claro, houve um tempo em que o movimento dos trabalhadores não possuía clarividência para notar a diferença entre a máquina como meio de produção e a máquina como capital, ou seja, como instrumento de opressão. No entanto, naquela época os trabalhadores costumavam destruir as máquinas com as próprias mãos para que retornassem a meios primitivos de trabalho.
Aqui existe uma analogia com a posição de anarquistas “com consciência de classe” acerca da centralização de produção. Vendo que a centralização capitalista é um método de opressão, eles protestam, em sua simplicidade, contra toda e qualquer centralização em geral; sua ignorância infantil confunde a essência em sua forma social e histórica.
Deste modo, a distinção entre nós comunistas e anarquistas em torno da sociedade burguesa não reside em nós sermos pelo estado e eles contra o estado, mas sim que favorecemos a produção centralizada em grandes unidades ajustadas ao desenvolvimento das forças produtivas, onde anarquistas favorecem a produção pequena e descentralizada que não pode aumentar, mas sim diminuir, o nível das forças produtivas.
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A segunda questão essencial que divide comunistas e os anarquistas é sua atitude em relação à ditadura do proletariado. Entre o capitalismo e “a sociedade do futuro” está todo um período de lutas de classe, o período durante o qual os últimos restos da sociedade burguesa serão erradicados, e os ataques de classe provocados pela burguesia — já deposta, mas ainda resistindo — se acirram. A experiência da revolução de outubro mostrou que, mesmo após ter sido “jogada de costas no chão”, a burguesia ainda usa os recursos que lhe restam para continuar lutando contra os trabalhadores; e que, em última instância, depende da reação internacional de tal forma que a vitória final dos trabalhadores só será possível quando o proletariado tiver libertado todo o mundo da ralé capitalista e sufocado completamente a burguesia.
Por essa razão, é bastante natural que o proletariado faça uso de uma organização para esta luta. Quão maior, forte e sólida for essa organização, mais rápida é a vitória final. Tal organização transicional é o estado proletário, o poder e governo dos trabalhadores, sua ditadura.
Como toda forma de poder, o poder do proletariado é de fato violência organizada. Assim como todos estados, o estado proletário é um instrumento de opressão. É claro, não é preciso explorarmos a questão da violência. Tão circunspecção deve ser deixada ao bom cristão e o leitor de Tolstói, não ao revolucionário. Em relação à violência, é preciso ver contra quem ela é direcionada, apenas. Revolução e contrarrevolução são atos de violência em medidas equivalentes, mas renunciar a revolução apenas por esse motivo seria sem sentido.
O mesmo se aplica quando chegamos a questão do poder e a violência autoritária do proletariado. Certamente, essa violência é um meio de opressão, mas um aplicado contra a burguesia. Isso implica um sistema de reprimendas, mas estas por sua vez são direcionadas contra a burguesia. Quando a luta de classes atinge seu ápice de tensão e se torna guerra civil, não é possível falar-se de liberdade individual, é necessário falar sobre sistematicamente reprimir a classe dos exploradores.
O proletariado deve escolher entre duas alternativas: ou esmagar a burguesia de uma vez por todas e se defender de seus aliados internacionais, ou não. No primeiro caso o trabalho deve ser organizado, conduzido, moldado sistematicamente e levado até o limite dos recursos. Para isso o proletariado necessita uma força organizada, a todo custo. Essa força é o poder do estado do proletariado.
Diferenças de classe não desaparecem do mundo no balançar de uma caneta. A burguesia não desaparece como classe após a perda de seu poder político. Similarmente, o proletariado permanece proletariado, mesmo após sua vitória. De certo, assumiu sua posição como classe dominante e deve manter essa posição ou mesclar-se à sociedade, que é profundamente hostil contra ele. Este é o problema histórico que emerge, não existem rotas de dois caminhos para a solução de tal enigma. A solução é apenas: como força motriz da revolução, o proletariado tem o dever de manter sua posição dominante até que tenha com sucesso remodelado outras classes à sua imagem. Assim — e apenas assim — o proletariado desmantela sua organização estatal e o estado “morre”.
Anarquistas assumem uma posição diferente em relação ao período de transição e a diferença entre nós e eles se afunila, em efeito, a ser a favor ou contra o Estado-Comum do Proletariado, contra ou a favor da Ditadura do Proletariado.
Para os anarquistas, todo poder, inclusive o poder geral, é inaceitável sejam as circunstâncias, pois acumulam-se opressões não importa se forem direcionadas contra a burguesia. Por essa razão, e no atual estado da revolução, os anarquistas são um só com a burguesia e partidos colaboracionistas em levantar o furor contra o poder do proletariado. Quando anarquistas caem aos prantos contra o poder do proletariado eles não são mais “esquerdistas” ou os “radicais” que geralmente os rotulam; pelo contrário, eles se tornam revolucionários ruins, incapazes de liderar uma luta de classes organizada e sistemática contra a burguesia. Ao renunciar a ditadura do proletariado, eles se privam da mais importante arma na luta; ao lutar contra a ditadura, eles desorganizam o proletariado e suas forças, roubando suas armas e, objetivamente, prestando socorro à burguesia e seus agentes traidores sociais.
É fácil detectar qual é a noção fundamental para a posição dos anarquistas em relação à sociedade do futuro e sua posição acerca da ditadura do proletariado, se resume a sua aversão — uma questão de princípios, por assim dizer — à técnicas sistemáticas e ações em massa organizadas.
É de acordo com a teoria anarquista que o anarquista consistente deve ser averso ao poder soviético e lutar contra o mesmo. Mas, dado que tal posição seria absurda para trabalhadores e camponeses assumirem, o número de anarquistas que os levam à essa posição por questão pura de princípios, não é grande, muito pelo contrário, vários anarquistas se satisfazem com uma cadeira nos poderes legislativos e executivos do aparato estatal do proletariado, como no Comitê Executivo Central dos Sovietes.
Essa contradição é óbvia, uma despedida do verdadeiro ponto de vista anarquista. Mas é entendido que os anarquistas não podem ter sequer um pingo de aversão pelos Sovietes. No melhor dos casos, eles apenas “exploram os sovietes” e estão prontos para desmantelá-los. Desta situação emerge uma diferença mais prática: a tarefa principal é dar poder poder às organizações de massa proletárias — os Conselhos de Fábrica — ampliando sua base de ação e as organizando; enquanto os anarquistas visam obstruir esse trabalho.
Também divergimos largamente nos caminhos a tomar no que concerne a moldar a práxis econômica durante o período da ditadura do proletariado. A condição fundamental para a vitória econômica sobre o capitalismo consiste em garantir que a “expropriação dos expropriadores” não se torne uma atomização ou que seja repartida em partes iguais. Qualquer compartilhamento igual produz donos de propriedade e a grande propriedade capitalista portanto nasce, e dessa maneira a divisão das posses de ricos leva, por necessidade, ao renascimento da mesma classe de ricos.
É vital que a classe trabalhadora não execute uma divisão que favoreça a pequena burguesia ou aos trapos, mas que os meios de produção sejam devidamente expropriados e usados social e coletivamente de maneira sistemática e organizada.
E por isso, por sua vez, isso é apenas possível onde a expropriação dê-se de maneira organizada e realizada sob a égide das instituições proletárias; de outra maneira, a expropriação se torna uma complexidade desorganizada que se torna em simples “apropriação” por indivíduos privados de o que deveriam ser bens sociais.
A sociedade russa — e particularmente a indústria e agricultura — passa por um período de crise e ruína total. Estas dificuldades tremendas não resultam apenas na óbvia desestruturação das forças produtivas, mas também da massiva desorganização de toda economia. Como resultado, os trabalhadores devem, mais do que nunca hoje em dia, tomar conta de todo o inventário e supervisionar os meios de produção, residências, produtos de consumo em demanda e por assim vai. Tal supervisão é apenas possível onde a expropriação não é resultado do trabalho de indivíduos ou grupos privados mas sim dos órgãos do poder proletário.
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Nós evitamos propositalmente argumentar contra anarquistas como se eles fossem delinquentes, criminosos, bandidos e por aí vai. É importante, para os trabalhadores, entenderem exatamente onde ficam as trapaças e falsidades de seus ensinamentos e práxis nociva.
Não podemos ter uma briguinha superficial como ponto focal de nosso argumento. Tudo que já foi dito explica, em si, porque são precisamente os anarquistas que fazem nascer bandos de “expropriadores”, que tomam recursos apenas para seus bolsos e porque os anarquistas atraem delinquentes. Em todo movimento existirão elementos disruptivos que exploram a revolução para seu próprio ganho. Mas onde a expropriação é executada sob o controle de organizações de massa, é muito mais difícil para que situações de benefício privado emerjam.
Por outro lado, quando um grupo crítica participações em ações de massa organizadas por princípio e prefere as ações de grupos livres que “tomam as próprias decisões, de maneira autônoma e independente”, cria-se o cenário mais agradável possível para que as “expropriações” não se tornem diferentes da ação do ladrão de rua.
Expropriações individuais, confiscos e afins não são apenas perigosos por quebrarem a criação de um aparato de produção e controle, mas também porque tais ações completamente desmoralizam os homens que as executam, privando-os de consciência de classe e tornando-os inúteis para a colaboração com seus camaradas abandonando esses princípios para um único grupo ou um único “indivíduo livre”.
Existem dois lados da revolução dos trabalhadores: o lado destrutivo e o criativo e reconstrutivo. O destrutivo se revela acima de tudo no processo de dizimação do estado burguês. Oportunistas da social-democracia afirmam que de nenhuma maneira a captura de poder pelo proletariado deve destruir o estado capitalista; mas que tal “destruição” existe apenas na mente de alguns indivíduos. Na realidade, a captura de poder pelos trabalhadores pode se tornar uma realidade apenas através da destruição do poder da burguesia.
Os anarquistas possuem um papel positivo a representar na destruição do estado burguês, mas, em termos organizacionais, eles são incapazes de criar um “novo mundo”; e, por outro lado, uma vez que o proletariado tenha tomado o poder, quando a tarefa mais urgente for a construção do socialismo, os anarquistas têm um papel quase exclusivamente negativo, minando atividades construtivas com suas ações desorganizadas.
O Comunismo e a revolução comunista — é a causa do proletariado, da classe ativamente produtiva, através do aparato de produção em larga escala. Para todas as outras classes pobres, eles podem apenas se tornar agentes da revolução comunista se dedicando a proteger a retaguarda do proletariado.
A Anarquia não é a ideologia do proletariado, mas de grupos sem classe e inativos, sem conexão com o trabalho produtivo: a ideologia de uma horda de oportunistas (lumpenproletariat), uma categoria de pessoas drenando recursos do proletariado, da burguesia arruinada, de intelectuais decadentes, pedintes expelidos por suas famílias e empobrecidos, uma amálgama de pessoas incapazes de criar qualquer coisa nova e de valor, apenas de tomar para suas mãos através de “confiscos”. Tal é o fenômeno social da anarquia.
Anarquia é o produto da desintegração da sociedade capitalista. A complexão dessa miséria renasce do colapso das ligações sociais, a transformação do povo que eram antes membros de certa classe em indivíduos atomizados que não mais dependem de qualquer classe, que vivem “por si mesmos”, não trabalham, e que, para proteger seu individualismo, não tomam conhecimento de organização. Essa é a miséria produzida pelo barbarismo do regime capitalista.
Uma classe saudável como o proletariado não pode deixar-se contagiar com o vírus da Anarquia. A Anarquia pode emergir de uma de suas extremidades se a classe trabalhadora estivesse prestes a entrar em ruptura, como sinal de enfermidade. E a classe trabalhadora, lutando contra sua dissolução econômica, deve lutar contra sua dissolução ideológica, no qual o produto é a Anarquia.
Nikolai Bukharin, Abril de 1918.
Traduzido do inglês por Sarah Carmesim, texto original aqui.