Ativismo

Sarah Carmesim
Miséria da Razão
Published in
8 min readOct 14, 2022

É necessário que insistamos na palavra. Tal qual certas infecções sanguíneas, que causam uma séria gama de doenças, exceto aquelas que podem ser curadas em um asilo, o ativismo é uma doença do movimento operário que requer tratamento contínuo.

O ativismo sempre conclama possuir entendimento correto das circunstâncias da luta política, e que é “igual à situação”, mas é incapaz de engajar em uma avaliação realista sobre correlações de força, enormemente exagerando as possibilidades dos fatores subjetivos da luta de classes.

É portanto natural que aqueles afetados pelo ativismo reajam a esse criticismo acusando seus adversários de subestimar os fatores subjetivos da luta de classes e da redução do determinismo histórico ao mecanismo automático, que também é o caso da crítica burguesa do Marxismo.

É por isso que dizemos o seguinte no Ponto 2 da Parte IV de nossas “Teses Fundamentais do Partido”:

[…] o modo capitalista de produção se expande e prevalece em todos países, sob seus aspectos sociais e técnicos, de uma maneira mais ou menos contínua. As alternativas das forças de classe em confronto estão ao invés disso ligadas aos acontecimentos da luta histórica geral, ao contraste que já existia quando a burguesia [começou] a governar [sobre] as classes feudais e pré-capitalistas, e ao processo político evolutivo das duas classes históricas rivais, burguesia e proletariado; sendo tal processo marcado por vitórias e derrotas, por erros de método tático e estratégico. [1]

Isto equivale a dizer que afirmamos que a etapa da retomada do movimento operário revolucionário não coincide apenas com os impulsos das contradições do desenvolvimento material, econômico e social da sociedade burguesa, que pode experimentar períodos de crises extremamente graves, de conflitos violentos, de colapso político, sem que o resultado seja a radicalização e adoção de programas revolucionários por parte dos trabalhadores. Isso é, não existe mecanismo automático no campo de relações entre a economia capitalista e o partido revolucionário do proletariado.

Poderia ser o caso, tal qual nossa situação atual, que o mundo social e econômico da burguesia esteja infestado de tremores que produzem conflitos violentos, mas sem que o partido revolucionário obtenha como resultado sequer a menor possibilidade de expandir suas atividades, sem as massas sujeitadas às mais atrozes explorações e massacres fratricidas serem capazes de desmascarar os agentes oportunistas, que implicam seu destino em disputas imperialistas, sem que a contrarrevolução afrouxe seu punho de ferro sobre a classe dominante e as massas de despossuídos.

Dizer: “uma situação objetivamente revolucionária existe, mas o elemento subjetivo da luta de classes, o partido de classes, é deficiente”, está errado em cada momento do processo histórico; é uma exclamação completamente sem significado, uma absurdidade patente.

Na verdade, em cada onda de luta, até a que pose grande ameaça à existência do governo burguês, até quando parecer que tudo (o estado, a hierarquia social, o aparato político burguês, os sindicatos, o sistema de propaganda) tenha chegado a um ponto crítico, de destruição, a situação não será revolucionária, mas pode quase sempre ser contra revolucionária, se o partido revolucionário da classe estiver fraco, não desenvolvido e teoricamente instável.

Uma situação de profunda crise na sociedade burguesa é suscetível à subversão revolucionária quando “…as ‘classes baixas‘”’ não querem viver nos velhos modos e as ‘“’classes altas‘”’ não podem sustentar esses velhos meios…” [2] [3], isso é, quando as classes governantes não podem efetivamente operar seu mecanismo de repressão, e quando “…uma maioria de trabalhadores… percebe que a revolução é necessária”.

Tal conscientização por parte dos trabalhadores só pode ser exprimida no partido, que por sua vez é o fator determinante na transformação da crise burguesa em catástrofe revolucionária de toda sociedade.

É portanto necessário, em ordem e salvar a sociedade do “mare magnum” [4] em que caiu, que a classe dominante não pode ajudar, pois é incapaz de descobrir novas formas de liberação das forças produtivas de maneira que gerem um novo desenvolvimento, um órgão coletivo revolucionário de ação e prática que irá canalizar e iluminar o desejo subversivo das massas.

O “não querer viver nos velhos meios” das massas, o desejo de lutar, o impulso de agir contra o inimigo da classe, pressupõe-se que seja dentro das fileiras da vanguarda proletária que é chamada para desenvolver a função de guia das massas revolucionárias, a cristalização da sólida teoria revolucionária.

No partido, a consciência precede a ação, diferente do que ocorre entre as massas e a nível individual.

E se, todavia, alguém dizer que isso não é nada novo, nada realmente moderno, e que desejamos transformar o partido revolucionário em um pequeno círculo de estudiosos, de observadores teóricos da realidade social? Nunca.

No Ponto 7 da Parte IV de nossas “Teses Fundamentais do Partido”, de 1951, lê-se:

Apesar de pequeno em números e possuindo poucas [conexões] com as massas proletárias, e de fato ciosamente apegado a suas tarefas teóricas, que são de prima importância, o Partido, por causa de sua verdadeira apreciação de suas tarefas revolucionárias no presente período, recusa se tornar um círculo de pensadores ou teóricos buscando novas verdades, de ‘renovadores’ considerando a verdade anterior insuficiente, e veementemente se recusa ser considerado como tal. [5]

Não poderia ser mais claro!

A transformação da crise burguesa em guerra de classes e revolução pressupõe o colapso objetivo dos campos sociais e políticos do capitalismo, mas isso não é sequer possível se a grande massa dos trabalhadores não estiver alinhada ou influenciada pela teoria revolucionária disseminada pelo partido, uma teoria que não pode ser improvisada nas barricadas. Mas será essa teoria destilada dentro de salões fechados por trabalhadores intelectuais sem conexão com as massas?

Em resposta à essa acusação estúpida feita pelos fanáticos do ativismo, um pode corretamente responder que a infatigável e assídua defesa do patrimônio crítico e doutrinário do movimento, que todo dia se dedica nas tarefas de imunização ao revisionismo, a explicação sistemática, à luz do Marxismo, das mais recentes formas de organização da produção capitalista, o desmascarar das tentativas do oportunista de apresentar “inovações” como medidas anticapitalistas, etc.; toda essa luta, a lutas contra o inimigo da classe, a luta por educar a vanguarda revolucionária, é uma luta ativa que não se chama ativismo.

Você acredita seriamente que (enquanto a gigantesca máquina burguesa se dedica, dias e noites a fio, em refutar a teoria revolucionária, ou seja, demonstrar que demandas socialistas podem ser realizadas contra Marx e contra Lenin, e quando partidos políticos e governos estabelecidos juram que governam, ou seja, oprimem as massas, em nome do comunismo) a exaustiva tarefa de restaurar a crítica revolucionária Marxista, é meramente um empreendimento teórico?

Quem ousaria negar que se trata também de atividade política, uma luta ativa contra o inimigo de nossa classe? Apenas aquele possuído pelos demônios do ativismo pode pensar em tal.

O movimento, mesmo em momento de fraqueza em números, que trabalha em seus jornais, encontros, discussões de fábrica, para libertar a teoria revolucionária de adulterações sem precedentes, das contaminações oportunistas, portanto realiza trabalho revolucionário, trabalho para a revolução proletária.

Em nenhum momento pode ser dito que concebemos as tarefas do partido como um “luta de ideias”.

Totalitarismo [6], Capitalismo de Estado, e a derrocada da revolução socialista na Rússia não são “ideias” as quais nos opusemos com nossas próprias ideias: são fenômenos históricos reais que evisceraram o movimento proletário ao levá-lo pro terreno traiçoeiro de formações partisanas antifascistas, fileiras fascistas, frentes nacionais, pacifismo, etc.

Aqueles que mesmo em menor número e expelidos da luz da “macro política” carregam nas costas o trabalho de interpretar de maneira Marxista esses fenômenos reais e a confirmação das previsões Marxistas, estão certamente realizando atividade revolucionária, pois estão estabelecendo deste ponto em diante o local de partida para a revolução proletária.

A retomada do movimento revolucionário não requer, para sua realização, a crise do sistema capitalista como potencial eventualidade; a crise do modo de produção capitalista já é uma realidade. A burguesia experimentou todos estágios possíveis de sua carreira histórica, Capitalismo de Imperialismo marcam os extremos limítrofes de sua evolução, as contradições fundamentais do sistema persistem e se tornam mais agudas. A crise do capitalismo não transformou a situação em crise revolucionária da sociedade, em guerra de classes, e a contra revolução triunfa ao passo que o caos capitalista piora, pois os trabalhadores são esmagados sobre o peso de sua derrota trinta anos atrás e os erros estratégicos cometidos pelos partidos comunistas da Terceira Internacional, erros que levaram o proletariado a olhar as armas da contrarrevolução como suas.

A retomada do movimento revolucionário ainda permanece fora de vista, pois a burguesia, ponto em prática corajosas reformas no método organizativo da produção e do Estado (Capitalismo de Estado, totalitarismo, etc.), causou um golpe desorientador, causando dúvida e confusão, não contra as fundações críticas do Marxismo, que permanecem intactas, mas sim à capacidade das vanguardas proletárias de aplicar esses métodos Marxistas com precisão na interpretação do atual estado do desenvolvimento capitalista.

Em tais condições de desorientação teórica, o trabalho de restaurar o Marxismo contra distorções oportunistas trata-se meramente de uma tarefa teórica?

Não, é uma luta dedicada e substancial contra o inimigo da classe.

O ativismo pomposo procura transformar as rodas da história em passos de valsa, balançando seu quadril ao passo da sinfonia eleitoral.

É uma doença infantil do comunismo, mas se espalha maravilhosamente no sanatório da política, onde o movimento dos trabalhadores vai morrer.

Requiescant in pace. [7]

E então, quase como mágica, eles se mobilizam tal qual uma divisão blindada quando enviados para conquistar núcleos de fábrica de nossos grupos — para contar nossos membros você realmente não irá necessitar de calculadora — e conclamar, fazendo-os rir, que patos e galinhas, os blocos imperialistas, são idênticos em peso, forma e cor, possuem forças iguais, tal sofismo exausta o fluído de sua análise de conjuntura, que eles negam que qualquer outra pessoa seja capaz de realizar; finalmente desistem em prol da tentação mortal das fáceis cadeiras parlamentares ou algum ministério governamental…

Todos os salmos do ativismo se encerram em glória eleitoral. Em 1917, vimos a conclusão sórdida do supra ativismo da Social Democracia, após décadas de atividade inteiramente devotadas à conquistas parlamentares, comissões insossas de sindicato, e influência política que os banhou na aura imparável do ativismo. Quando a hora chegou para a insurreição armada contra o capitalismo, entretanto, o único partido que foi capaz de engajar nessa insurreição foi aquele que tinha experiência em “trabalhar entre as massas” durante anos de preparação, o único que havia mais que qualquer outro trabalhado para preservar a teoria Marxista. Pareceu então que aqueles que possuíam sólido treinamento teórico marcharam contra o inimigo da classe, enquanto aqueles que possuíam um “glorioso” patrimônio de atividades vergonhosamente engasgaram em suas palavras e pularam para o lado do inimigo. [8]

Portanto, estamos familiarizados com os fanáticos do ativismo. Comparados a eles, palhaços de circo são cavalheiros. Por isso, dizemos que existe apenas uma maneira de evitar seu contágio: o clássico chute na bunda.

Amadeo Bordiga,

1952.

Traduzido por Sarah d’Avila.

São Paulo, 14 de Outubro, 2022.

Original disponível em: http://www.sinistra.net/lib/upt/intpap/pitu/pituccodas.html

Notas de Rodapé

[1] Partido Comunista Internacional. Teses Fundamentais de Nosso Partido. Trecho adaptado da Língua Inglesa. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/bordiga/works/1951/fundamental-theses.htm

[2] LENIN, Vladimir. Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. Trad. Luiz Fernando. Rio de Janeiro: Editora Global, 1989.

[3] O texto Esquerdismo: Doença Infantil serve como linha geral para a inspiração do texto, principalmente a primeira sessão. Todavia, a frase citada está presente em outro texto de Lenin: O Colapso da Segunda Internacional, disponível em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1915/csi/ii.htm, que por sua vez tem sua tradução, mas de uma versão posterior de 1916, onde a frase não existe mas o ponto de Lenin permanece, este está em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/01/falencia.htm. (N.T.)

[4] Mar profundo.

[5] op. cit. Teses Fundamentais, etc.

[6] Totalitarismo, em Bordiga, não se refere a agora hegemônica visão liberal do fenômeno, estabelecida por Hannah Arendt e outros, passiva de crítica por sua insuficiência e banalização do termo, mas sim a concepção original elaborada justamente na Itália nos anos imediatamente subsequentes a marcha de Roma e a tomada de poder pelos Camisas Negras: a extremação do estado como aparato de repressão social e controle econômico-produtivo, entre outros fatores. (N.T.)

[7] Descanse em Paz.

[8] Lenin também discorre acerca deste mesmo tema, sem tocar no assunto eleitoral, polêmica que engajaria mais pra frente, em op. cit. Esquerdismo. Especificamente no segundo capítulo: Uma das condições fundamentais do êxito dos bolcheviques, pp. 13–17. (N.T.)

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