Grito e Choro sobre Kronstadt

Sarah Carmesim
Miséria da Razão
Published in
15 min readNov 28, 2023
Créditos: Mary Lee Agnew

Por Leon Trotsky

“Frente popular” de denunciadores

A campanha em torno de Kronstadt tem sido executada com extremo vigor em certos círculos. Faz até parecer que a revolta de Kronstadt não aconteceu dezessete anos atrás, mas sim ontem. Participando na campanha com zelo idêntico e sob os mesmos slogans estão os anarquistas, mencheviques, sociais democratas do comitê de Londres, tolos independentes, o jornal de Miliukov, e, ocasionalmente, a imprensa capitalista. Uma “frente popular” única!

Apenas ontem aconteceu de eu cruzar com os seguintes dizeres em um periódico semanal mexicano reacionário, católico e “democrático”: “Trotsky ordenou a execução de 1500 (?) marinheiros de Kronstadt, os mais puros dos puros. Sua política quando no poder não é nada diferente da de Stalin.” Como é sabido, os anarquistas de esquerda traçaram as mesmas conclusões. Quando pela primeira vez na imprensa respondi brevemente as questões de Wendelin Thomas, membro da Comissão de Inquérito de Nova Iorque, o jornal dos Mencheviques russos imediatamente se pôs em defesa dos marinheiros e… de Wendelin Thomas. O jornal de Miliukov também o fez. Anarquistas me atacaram com ainda mais vigor. Todas essas autoridades afirmam que minha resposta foi completamente inútil. Essa unanimidade é mais marcante já que os anarquistas defendem, sob as ideias de Kronstadt, genuíno comunismo anti-estado; os Mencheviques, na época da revolta, abertamente defendiam a restauração do capitalismo; e Miliukov a defende até hoje.

Como pode a revolta de Kronstadt causar tanta indignação em anarquistas, mencheviques e contra revolucionários liberais, ao mesmo tempo? A resposta é simples: todos esses agrupamentos estão interessados em comprometer a única corrente genuinamente revolucionária, que nunca negou suas cores, e nunca se comprometeu com seus inimigos, e sozinho representa o futuro.

É por isso que entre os emocionados acusadores do “crime” em Kronstadt se encontram vários ex-revolucionários e semi–revolucionários, pessoas que perderam seus programas e princípios e que acham necessário atrair atenção da degradação da Segunda Internacional ou da perfídia dos anarquistas espanhóis. Mesmo assim, os stalinistas não podem abertamente aproveitar a campanha em Kronstadt já que eles, naturalmente, esfregam as mãos com prazer; pelos ataques contra o “trotskismo”, contra o marxismo revolucionário, e a quarta internacional.

Por que particularmente essa fraternidade tomou interesse por Kronstadt? Durante os anos da revolução nós combatemos muitas vezes com Cossacos, camponeses, e até mesmo algumas camadas de trabalhadores (alguns grupos de trabalhadores dos Urais organizaram um regimento voluntário para o exército de Kolchak). O antagonismo entre trabalhadores como consumidores e camponeses como produtores e vendedores de pão estão no cerne desses conflitos. Sob pressão da necessidade e privação, os trabalhadores se viram diversas vezes divididos em campos opostos e hostis, dependendo de suas ligações fracas ou fortes com a vila. O exército vermelho também se viu sob a influência do interior. Durante a guerra civil mais de uma vez foi necessário desarmar regimentos descontentes. A introdução da Nova Política Econômica (NEP) atenuou a fricção mas não a eliminou. Pelo contrário, pavimentou o caminho para o renascimento dos kulaks (camponeses ricos) e levou, ao início dessa década, à renovação da guerra civil na vila. A revolta de Kronstadt é apenas um episódio na história das relações entre a cidade proletária e a vila pequeno-burguesa. É possível entender esse episódio apenas em conexão com o curso geral do desenvolvimento das lutas de classe durante a revolução.

Kronstadt divergiu de uma série de outros movimentos e revoltas pequeno-burguesas apenas pelo seu efeito externo maior. O problema aqui envolveu uma fortaleza marítima dirigida pela própria Petrogrado. Durante a revolta diversas proclamações foram emitidas e várias transmissões de rádio foram feitas. Os sociais-revolucionários e anarquistas, fugindo de Petrogrado, adornavam a revolta com frases e gestos “nobres”. Tudo isso deixou rastro impresso. Com a ajuda desses materiais “documentados” (ex: falsos rótulos), não é difícil construir uma lenda em cima de Kronstadt, cada vez mais exaltadas desde 1917, o nome Kronstadt foi cercado de aura revolucionária. Não é à toa quando a revista mexicana citada acima ironicamente chama os marinheiros de Kronstadt de “ mais puros dos puros”

O jogo envolvendo a autoridade revolucionária de Kronstadt é uma das facetas mais relevantes dessa campanha falsária. Anarquistas, Mencheviques, liberais e reacionários tentam distorcer os fatos como se no início de 1921 os Bolcheviques viraram suas armas contra os marinheiros que garantiram a vitória da insurreição de outubro. Aqui reside o ponto de divergência para todas falsidades subsequentes. Aquele que deseja descobrir todas mentiras devia ler o artigo do camarada J.G. Wright na Nova Internacional (fevereiro de 1938). Meu problema é outro: tenho o desejo de descrever o caráter de Kronstadt de um ponto de vista mais geral.

Grupos sociais e políticos em Kronstadt

A revolução é “feita” diretamente por uma minoria. O sucesso da revolução é possível, entretanto, apenas quando essa minoria consegue encontrar sucesso, ou pelo menos neutralidade amigável, por parte da maioria. A mudança constante nos diversos estágios da revolução, como a transição de revolução para contrarrevolução é diretamente determinada pelas mudanças na dinâmica política entre a minoria e a maioria, entre a vanguarda e a classe.

Entre os marinheiros de Kronstadt haviam três camadas políticas: proletários revolucionistas, alguns com passado sério de treinamento; a maioria intermediária, a maioria de origem camponesa; e finalmente, os reacionários, filhos de kulaks, vendedores e padres. Nos tempos do Czar, a ordem nos navios e na fortaleza só podia ser mantida enquanto os oficiais, agindo através das camadas reacionárias de oficiais e marinheiros, submetia a grande parte da camada intermediária sob sua influência ou terror, assim isolando os revolucionistas, a maioria maquinistas, atiradores e eletricistas, os trabalhadores da cidade.

A revolta do encouraçado Potemkin em 1905 se baseou inteiramente nas relações entre essas camadas, na luta entre o proletariado e a pequena burguesia reacionária pela influência sob os mais numerosos membros da camada intermediária de camponeses. Aqueles que não entenderam a problemática, que corre por todo movimento revolucionário na frota, devem ficar em silêncio sobre os problemas da revolução russa em geral. E por grande parte foi, e ainda é de diversas maneiras, uma luta do proletariado e a burguesia por influência sobre o campesinato. Durante o período dos Sovietes a burguesia aparecia frequentemente através dos kulaks (a camada superior da pequena burguesia), da intelectualidade “socialista”, e agora na forma da burocracia “comunista”. Esse é o mecanismo básico da revolução em todos seus estágios. Na frota se mostrava de maneira mais centralizada e portanto mais dramática.

A composição do Soviete de Kronstadt refletia a guarnição e tripulações. A liderança do soviete no começo do verão de 1917 já pertencia ao partido bolchevique, que era gerido nas melhores sessões de marinheiros que incluíam em suas fileiras diversos revolucionários do movimento clandestino que foram libertados das prisões de trabalho forçado. Mas me lembro que ainda nos tempos da revolta em Outubro a insurreição bolchevique era formada por menos que a metade do soviete de Kronstadt. A maioria era formada por SRs e Anarquistas. Não haviam mencheviques em Kronstadt. O partido Menchevique odiava Kronstadt. Os oficiais SRs não possuíam atitude melhor. Os SRs de Kronstadt rapidamente se tornaram oposição a Kerensky e formaram brigadas de choque dos ditos SRs de “esquerda”. Eles se apoiavam nos camponeses e na guarnição da costa. Os anarquistas, por sua vez, eram o grupo mais heterogêneo. Entre eles estavam verdadeiros revolucionários como Zhuk e Zheleznyakov, mas esses elementos eram mais próximos dos Bolcheviques. Grande parte dos “anarquistas” de Kronstadt representavam a pequena burguesia e estavam num nível revolucionário mais baixo que os SRs. O presidente do soviete era um homem sem partido, “simpático aos anarquistas”, e em essência um pacato lojista subserviente às autoridades czaristas e depois… à revolução. A ausência completa de Mencheviques, o caráter de “esquerda” dos SRs, e o choro anarquista da pequena–burguesia era resultado da feroz luta revolucionária na frota e a influência dominante das seções revolucionárias dos marinheiros.

Mudanças durante a guerra civil

As características sociais e políticas de Kronstadt que, se desejado, podem ser provadas por muitos fatos e documentos, já é suficiente para iluminar os eventos sucedidos em Kronstadt durante os anos da guerra civil como um resultado de sua fisionomia ter mudado além do reconhecimento. Precisamente esse importantíssimo aspecto da questão, não é mencionado pelos acusadores, por ignorância e malevolência.

Sim, Kronstadt escreveu uma página heroica na história da revolução. Mas na guerra civil iniciou-se intensa despopulação da cidade e de toda frota no Báltico. Ainda no começo da revolta de Outubro, o destacamento de marinheiros de Kronstadt foram enviados para prestarem assistência em Moscou. Outros destacamentos foram enviados ao Don, para a Ucrânia, para distribuir o pão e organizar o poder local. Kronstadt parecia inabalável. De diferentes frentes enviem dezenas de telegramas sobre a mobilização de novos destacamentos “confiáveis” de trabalhadores de Petersburgo e marinheiros do Báltico. Mas, no início de 1918, e até antes de 1919, as frentes começaram a reclamar que os novos contingentes de Kronstadt eram insatisfatórios, indisciplinados, não confiáveis em batalha e faziam mais mal do que bom. Após a liquidação de Yudenich no inverno de 1919, a frota do Báltico e a guarnição em Kronstadt estavam desnudas de todas as forças revolucionárias. Todos elementos entre eles foram usados contra Denikin no sul. Se em 1917–18 o marinheiro de Kronstadt se destacava entre seus pares acima do nível geral no Exército Vermelho e formava um quadro de destacamentos confiáveis e eficientes para o regime Soviético em diversos distritos, os marinheiros que permaneceram na “pacífica” Kronstadt até 1921, não serviam para nenhuma das frentes na guerra civil, seu nível era consideravelmente inferior, em geral, comparado ao resto do Exército Vermelho, e incluía uma quantidade alta de elementos desmoralizados.

A baixa moral por conta da fome e boatos aumentaram bastante no final da guerra civil. Precisamente em Kronstadt a guarnição que não fazia nada e possuía tudo que precisava, a desmoralização atingiu grandes dimensões. Quando condições se tornaram críticas na faminta Petrogrado o comitê político mais de uma vez discutiu a possibilidade de um empréstimo interno de Kronstadt, onde uma quantidade significativa de provisões antigas seria mantida. Mas os delegados de Petrogrado responderam: “Você não irá conseguir nada deles pela bondade. Eles especulam tecidos, carvão, e pão. No presente momento em Kronstadt toda espécie de ralé tem levantado a cabeça.” Essa era a real situação, diferentes das idealizações açucaradas após o ocorrido.

Deve ser acrescentado que os marinheiros da Letônia e da Estônia com medo de serem enviados ao front e se preparavam para cruzar a fronteira e buscar refúgio nas suas terras burguesas, Letônia e Estônia, se juntaram à frota do Báltico como “voluntários”. Esses elementos eram essencialmente hostis à autoridade soviética e demonstraram esse comportamento abertamente nos dias da revolta em Kronstadt. Todavia, muitos trabalhadores letões, antes trabalhadores do campo, mostraram heroísmo exemplar em todas as frentes da guerra civil. Não podemos, portanto, misturar os revoltosos em Kronstadt com os outros. É importante reconhecer diferenças sociais e políticas.

Raízes sociais da revolta

O problema para um estudioso sério consiste em definir as bases de circunstâncias objetivas do caráter social e político do motim em Kronstadt e seu lugar no desenvolvimento da revolução. Sem isso, o “criticismo” é reduzido à lamentação pacifista de Alexander Berkman, Emma Goldman, e seus imitadores. Esses gentios não possuem o menor entendimento dos critérios e métodos da pesquisa científica. Citam as proclamações de insurgentes como zelosos padres citando textos sagrados. Reclamam que eu não levo em consideração os “documentos”, ex: o evangelho de Makhno e seus apóstolos. Levar esses documentos “em consideração” não significa levá-los à sério. Marx uma vez disse que é impossível julgar partidos ou pessoas baseando–se no que elas diziam de si mesmas. As características de um partido são determinadas consideravelmente mais por sua composição social, seu passado, e sua relação com classes e camadas diferentes, mais do que suas declarações orais e escritas, especialmente durantes momentos críticos de guerra civil. Se, por exemplo, começarmos a aceitar como ouro puro as inúmeras proclamações de Negrin, Companys, Garcia Oliver e companhia, teríamos que admitir que esses cavalheiros são aliados ferventes do socialismo. Mas na realidade são seus inimigos.

Em 1917–18 os trabalhadores revolucionários lideraram as massas campesinas, não apenas da frota mas de todo país. Os camponeses tomaram e dividiram as terras frequentemente sob a tutela de soldados e marinheiros chegando em seus distritos natais. As requisições de pão apenas começaram e eram majoritariamente feitas por donos de terra e kulaks. Os camponeses conciliaram com as requisições como um mal temporário. Mas a guerra civil se arrastou por mais três anos. A cidade praticamente não deu nada ao campo e pegou a maioria para si, para as necessidades da guerra. Os camponeses aprovaram os “Bolcheviques” mas tornaram-se cada vez mais hostis aos “comunistas”. Se no período anterior os trabalhadores lideravam os camponeses avante, os camponeses trouxeram os trabalhadores para trás. Apenas por conta dessa mudança que os Brancos atraíram os camponeses, e até os meio-camponeses-meio-trabalhadores do Ural, para seu lado. A hostilidade para com a cidade, semeou o movimento de Makhno, que tomou e saqueou trens destinados a fábricas, plantações e o exército vermelho, destruiu ferrovias, atirou em comunistas. É claro, Makhno chamou essa de luta anarquista contra o “estado”. Na realidade essa era a luta do dono de propriedade furioso contra a ditadura do proletariado. Movimentos similares surgiram em inúmeros outros distritos, especialmente Tambov, sobre o estandarte dos “Social-Revolucionários”. Finalmente, em diferentes partes do país estavam ativos os auto-intitulados destacamentos “Verdes” de camponeses. Estes não reconheciam os Vermelhos e Brancos e rejeitavam entidades urbanas. Os “Verdes” algumas vezes se encontraram com os Brancos e sofriam duras derrotas, mas é claro, não recebiam misericórdia dos Vermelhos. Assim como a pequena-burguesia se encontra economicamente presa entre o grande capital e o proletariado, os partisanos camponeses eram pulverizados entre os Exércitos Vermelho e Branco.

Apenas uma pessoa inteiramente superficial pode ver em Makhno ou Kronstadt uma revolta entre os princípios abstratos do anarquismo e o “socialismo de estado.” Esses movimentos nada mais foram que convulsões da pequena-burguesia camponesa que desejava, é claro, se liberar do capital e ao mesmo tempo não queria se subordinar à ditadura do proletariado. A pequena-burguesia não sabe concretamente o que quer, e por isso sua posição é geralmente misteriosa. Por isso prontamente a confusão de suas demandas e esperanças se transfere para os anarquistas, depois para os populistas e agora para os “Verdes”. Se prostrando contra o proletariado, tentou balançar todos esses estandartes, para atrasar a revolução.

O caráter contrarrevolucionário do motim de Kronstadt

Não existiam, é claro, barreiras intransponíveis entre as diferentes camadas sociais e políticas de Kronstadt. Ainda existiam na cidade uma quantidade significativa de trabalhadores e técnicos qualificados operando o maquinário. Mas mesmo esses foram identificados como politicamente não confiáveis e de pouco uso na guerra civil. Alguns “líderes” da revolta surgiram desses elementos. Entretanto, essa circunstância natural e inevitável, que alguns acusadores triunfantemente destacam, não mudam em um iota o caráter anti-proletário da revolta. Se não deixarmos nos enganar com slogans pretensiosos, falsos rótulos, etc., veremos que a revolta em Kronstadt não foi nada além de uma reação da pequena-burguesia contra as dificuldades da revolução social e a severidade da ditadura do proletariado.

Esse foi exatamente o significado do slogan de Kronstadt: “Sovietes sem comunistas,” que foi imediatamente tomado, não apenas pelos SRs mas pelos liberais burgueses. Como um representante astuto do capital, o professor Miliukov entendeu que liberar os sovietes da liderança Bolchevique significava demolir os sovietes por completo e a curto prazo. A experiência dos sovietes russos durante o controle SR e Menchevique, e mais claramente, a experiência dos sovietes alemães e austríacos sob a liderança dos Sociais Democratas, provam isso. Os sovietes Social–Revolucionário e Anarquistas serviam apenas como ponte entre a ditadura do proletariado e a restauração do capitalismo. Não podiam desempenhar outro papel, independente dos “ideais” dos participantes. A revolta de Kronstadt possuía caráter contra-revolucionário.

De um ponto de vista classista, que — sem ofender os honoráveis ecléticos — permanece o critério básico não apenas para política como para a história, é extremamente importante contrastar o comportamento de Kronstadt com o de Petrogrado nesses dias críticos. Toda camada de liderança de Petrogrado havia também sido removida da cidade. Fome e frio reinavam na capital deserta, provavelmente mais do que Moscou, um período trágico e heróico! Todos estavam famintos e irritados. Todos insatisfeitos. As fábricas estavam entediadas e polvorosas. Organizadores clandestinos dos SRs e oficiais Brancos tentaram conectar a revolta militar com os trabalhadores descontentes.

O jornal de Kronstadt escreveu sobre barricadas em Petrogrado, e sobre milhares de mortos. A imprensa de todo mundo afirmou a mesma coisa. Na verdade, o oposto aconteceu. A revolta de Kronstadt não atraiu os trabalhadores de Petrogrado, os repeliu. A estratificação seguiu linhas de classe. Os trabalhadores imediatamente sentiram que os amotinados em Kronstadt estavam do lado oposto das barricadas — contra o poder soviético. A isolação política de Kronstadt foi a causa de sua incerteza interna e sua derrota militar.

A NEP e a revolta

Victor Serge, que pelo que parece, tentavam fabricar uma síntese de anarquismo, POUMismo e Marxismo, interveio de maneira infeliz na polêmica de Kronstadt. Sua opinião é de que a introdução da NEP um ano antes poderia ter impedido a revolta. Vamos admitir isso. Mas conselhos são fáceis de serem dados após o evento. É verdade, como Victor Serge se lembra, que eu propus a transição para NEP ainda em 1920. Mas não tinha certeza de seu sucesso. Não era segredo para mim que esse remédio podia se tornar mais perigoso para a doença. Quando me encontrei com oposição no partido, não apelei, para evitar a mobilização da pequena-burguesia contra os trabalhadores. A experiência nos doze meses seguintes foi necessária para convencer o partido deste novo curso. Mas uma coisa marcante era a acusação anarquista ao olhar para NEP pela primeira vez como uma traição do comunismo. Mas agora os anarquistas nos denunciam por não ter introduzido a NEP um ano antes.

Em 1921 Lenin mais de uma vez reconheceu publicamente que as defensas obstinadas do partido pelo Comunismo de Guerra eram um grande erro. Mas isso muda os fatos? Quaisquer sejam as causas imediatas ou remotas da rebelião em Kronstadt, eram essencialmente um perigo para a ditadura do proletariado. Simplesmente porque ao ser acusada de erro político, a revolução do proletariado deveria cometer suícidio como autopunição?

Ou talvez teria sido suficiente informar os marinheiros de Kronstadt dos decretos da NEP para pacificá-los? Ilusão! Os insurgentes não possuíam um programa consciente e não podiam possuir um, pois essa se trata da natureza da pequena-burguesia. Eles não entendiam claramente que seus irmãos e pais precisavam de livre comércio. Eles estavam descontentes e confusos mas não viram uma saída. Os mais conscientes, os elementos de direita, agiam por trás dos panos, pela restauração do regime burgês. Mas eles não diziam isso em voz alta. A ala “esquerda” queria a liquidação da disciplina, “libertar os sovietes”, e melhorar as rações. O regime da NEP podia apenas gradualmente pacificar o camponês, e, depois dele, secções descontentes do exército e da frota. Mas a experiência e o tempo foram necessários.

O mais pueril dos argumentos é o que afirma que não houve revolta, que os marinheiros não fizeram ameaças, “apenas” tomaram a fortaleza e encouraçados. Parece que os bolcheviques marcharam com peito aberto através do gelo contra a cidade apenas por serem maus e sua inclinação em provocar conflitos artificiais e seu ódio contra os marinheiros de Kronstadt e as doutrinas anarquistas (as próprias, que naqueles dias, não importavam para ninguém). Não seria isso apenas choros infantis? Atrelados não a lugar ou tempo, mas sim ao criticismo diletante (dezessete anos depois!) que sugere que tudo poderia ter sido terminado com todos satisfeitos se a revolução tivesse deixado os marinheiros rebeldes em paz. Infelizmente, a contrarrevolução mundial não teria os deixado em paz. A lógica da luta teria sido transferida aos elementos mais contrarrevolucionários. A necessidade de suprimentos teria tornado a fortaleza diretamente dependente da burguesia estrangeira e seus agentes, os Brancos. Todos os preparativos para esse fim já estavam sendo feitos. Sob circunstâncias similares apenas anarquistas espanhóis ou POUMistas aguardaram passivamente, esperando por um final feliz. Os Bolcheviques, felizmente, eram de uma escola diferente. Eles consideravam seu dever extinguir incêndios assim que começassem, reduzindo o número de vítimas ao máximo.

Os “Kronstadinos” sem fortaleza

Essencialmente, os veneráveis críticos e oponentes da ditadura do proletariado e de sobra inimigos da revolução. Aqui repousa o segredo. É verdade que alguns reconhecem a revolução e a ditadura — em palavras. Isso não ajuda em nada. Desejam uma revolução que não leva à ditadura ou por uma ditadura que irá se desenvolver sem o uso da força. É claro, isso seria uma ditadura muito “agradável”. Isso precisaria de alguns fatores, como o desenvolvimento igual e extremamente alto da consciência popular geral, mas nesse cenário a ditadura se tornaria desnecessária. Alguns anarquistas, que não passam de pedagogos liberais, esperam que em cem ou mil anos os trabalhadores estejam num nível tão alto de desenvolvimento que a coerção se tornará obsoleta; Naturalmente, se o capitalismo levasse a tal desenvolvimento, não existiriam razões para destruí-lo. Não existiria nenhum motivo para a revolução violenta ou a ditadura que é uma consequência inevitável da vitória revolucionária. Entretanto, a decadência capitalista de nosso tempo deixa pouco espaço para ilusões humanitárias e pacíficas.

A classe trabalhadora, sem mencionar as massas semi proletarização, não é homogênea, tanto socialmente quanto politicamente. A luta de classes produz a vanguarda que absorve os melhores elementos da classe. A revolução é possível quando a vanguarda é capaz de liderar a maioria do proletariado. Mas isso não faz com que as contradições internas dos trabalhadores desapareçam. No momento mais agudo da revolução elas são atenuadas, mas apenas em estágios avançados aparecem mais afiadas. Esse é o curso da revolução como um todo. E esse foi o destino de Kronstadt. Quando rosados de salão tentam mostrar caminhos diferentes da Revolução de Outubro, depois do ocorrido, podemos apenas perguntar respeitosamente exatamente quando e onde seus grandes princípios foram confirmados pela prática, pelo menos parcialmente, ou pelo menos em tendência? Onde estão os sinais de que esses princípios triunfem no futuro? Obviamente nunca teremos uma resposta.

Uma revolução possui as próprias leis. Anos atrás formulamos as “lições de Outubro”, que possuem não apenas significância na Rússia mas também internacionalmente. Ninguém até hoje tentou sugerir novas “lições”. A revolução espanhola é uma confirmação negativa das “lições de Outubro”. E as críticas severas são silenciosas e equivocadas. O governo espanhol da “Frente Popular” trava a revolução socialista e fuzila revolucionários. Os anarquistas fazem parte do governo, ou, quando são expulsos, continuam a apoiar os executores. E seus aliados externos e advogados ocupam-se em costurar uma defesa e a encontram no mutim de Kronstadt contra os cruéis Bolcheviques, uma vergonha!

As disputas presentes em torno de Kronstadt giram em torno do mesmo eixo de classes que a revolta em si, onde as seções reacionárias de marinheiros tentou derrubar a ditadura do proletariado. Conscientes de sua impotência na atual política revolucionária, os pequeno-burgueses e ecléticos tentam usar o episódio de Kronstadt na sua luta contra a Quarta Internacional, isso é, contra o partido da revolução proletária (sic). Esses “Kronstadinos” serão igualmente esmagados — é fato, mas dessa vez sem armas, pois não possuem uma fortaleza.

15 de Janeiro, 1938.

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