Generosidade cristã e o nosso próximo

Raíssa Martins
Mitocôndria
Published in
7 min readOct 4, 2018

A pobreza, a fome e as privações dos necessitados não são questões meramente econômicas. A tentativa de atribuir esse rótulo faz parte de uma estratégia — percebida ou não — de lavar as mãos diante de demandas que Jesus nos chamou a assumir enquanto cristãos.

O rótulo de “pauta econômica” faz com que, por um lado, alguns atribuam ao Estado o dever de assistir o pobre. É como se nós, cristãos, não tivéssemos um papel diante disso tudo. Por outro lado, há quem afaste do Estado essa função. Até aí, tudo bem. Trazem, então, seus argumentos teológicos para justificar a conduta estatal limitada ao porte da espada. Não tenho problema com isso. Que o Estado porte a espada! Que o Estado seja mínimo! Que seja! Vamos partir desse pressuposto. Mas, quando o Estado recuar, quem se levantará para alimentar o faminto, cuidar do órfão e da viúva e abrigar o estrangeiro?

Diante do que temos visto em nosso país, infelizmente, não me parece lógico responder a esse questionamento citando os cristãos. Com isso, não quero dizer que a nossa insensibilidade deva justificar a ascensão e manutenção de um Estado que asfixia todas as áreas da vida humana. Não é isso. Não é uma pergunta com pegadinhas nas entrelinhas. É uma pergunta-convocação. Quem irá aos necessitados? Se não temos ido até hoje (há pessoas que têm se disponibilizado, mas ainda são poucas), que possamos fazer das palavras do profeta Isaías as nossas: “eis-me aqui, envia-me a mim!”.

Ressalte-se que o nosso envio aos necessitados não é para suprir suas necessidades físicas e deixá-los mergulhados no pecado. Se há pessoas da Teologia da Libertação e da Missão Integral que agiram dessa forma, que a correção seja feita a partir da pregação do Evangelho genuíno. Que a nossa conduta, no entanto, não seja a de tão somente condenar quem parte de pressupostos errados para assistir o necessitado enquanto estamos confortavelmente enclausurados em nossos seminários e eventos teológicos. Que a nossa atitude rompa os limites da abstração e chegue às periferias, aos orfanatos, aos presídios e aos hospitais proclamando um Evangelho vivo e prático, que apresenta Cristo, aponta o pecado, convoca ao arrependimento e produz transformação.

A existência de pobres em nosso meio não aponta unicamente para problemas econômicos concernentes ao Estado. Antes, refere-se a um problema religioso: a queda. Desde o ocorrido em Gênesis, o coração humano foi corrompido de todo modo que possamos imaginar. Nossas afeições, que deveriam estar voltadas totalmente para o único que é digno, direcionaram-se para todo tipo de ídolo: nós mesmos, outras pessoas, objetos, riquezas, teorias e outras coisas. Dessas paixões, surgiram várias formas de pecado: o orgulho, a cobiça, a mentira, o aborto, a homossexualidade, o ódio e a indiferença diante do próximo (essa lista de pecados é exemplificativa).

Uma vez que o cuidado para com o próximo é visto como mera questão econômica, poucos enxergam a conduta omissiva nessa área como pecado, mas é assim que deve ser vista, se temos algum temor à Palavra do Senhor. A negligência diante do que tem fome e sede pode nos conduzir ao fogo do inferno:

“Então ele dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Malditos, apartem-se de mim para o fogo eterno, preparado para o diabo e os seus anjos.
Pois eu tive fome, e vocês não me deram de comer; tive sede, e nada me deram para beber;
fui estrangeiro, e vocês não me acolheram; necessitei de roupas, e vocês não me vestiram; estive enfermo e preso, e vocês não me visitaram’.
“Eles também responderão: ‘Senhor, quando te vimos com fome ou com sede ou estrangeiro ou necessitado de roupas ou enfermo ou preso, e não te ajudamos? ’
“Ele responderá: ‘Digo-lhes a verdade: o que vocês deixaram de fazer a alguns destes mais pequeninos, também a mim deixaram de fazê-lo’.
“E estes irão para o castigo eterno, mas os justos para a vida eterna”.
Mateus 25:41–46

Ter sensibilidade com o próximo não é orientação de menor escalão no rol de princípios bíblicos. Pelo contrário, Cristo, ao nos ensinar os dois maiores mandamentos, disse: “Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: Ame o seu próximo como a si mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas”. (Mateus 22:37–40).

Como nos amamos? Diante da necessidade financeira, o que clamamos a Deus: provisão ou teorias elaboradas sobre economia e o papel do Estado? Em meio à fome, o que queremos: alimento ou palavras? Aquilo que desejamos para nós mesmos pode nos dar valiosos parâmetros para a nossa conduta diante do necessitado.

Mas não é só isso. A queda corrompeu, sim, nossos corações, mas ainda somos portadores da imagem e semelhança de Deus. A imago Dei, afetada anteriormente pela queda, está em processo de restauração em todos os que receberam a mensagem da salvação e creram. Enquanto somos restaurados, pouco a pouco nos tornamos mais parecidos com Cristo e se há algo que indubitavelmente caracteriza a Trindade isto é a generosidade!

O Deus soberano, dono e criador de tudo, não poupou o seu próprio Filho para salvar pecadores. Ao elaborar seu plano de redenção, Deus não se questionou se merecíamos ou se tínhamos “feito por onde” receber tamanha graça. Deus não nos ensinou a andar de forma santa para, então, nos conceder a salvação. Antes que pudéssemos fazer qualquer coisa, Cristo disse: “está consumado!”.

Esta é uma marca da generosidade cristã: age sem exigir nada em troca, prévia ou posteriormente. E que bom que é assim, pois o que daríamos em troca dos benefícios que o Senhor tem nos concedido, se Ele é o dono do ouro, da prata e de tudo que há?

Deus não espera barganha. O que Ele quer de nós é uma transformação de essência. Melhor do que fazer o que Ele faria é que sejamos como Ele é. E este é o seu propósito ao nos ensinar a generosidade: não o de que façamos o que Ele faz, mas de que sejamos generosos como Ele é, pois, assim, agiremos como Ele age. Ainda não somos quem deveríamos ser, mas o processo de santificação está em curso.

Abro margem para uma observação: quando falo a respeito de generosidade e tomo a relação de Deus conosco como parâmetro (que outra referência seria possível?!) não quero dizer, com isso, que devemos estabelecer uma relação de paternalismo entre nós e o nosso próximo. Afinal, o próprio Deus não estabelece uma conexão conosco nesses moldes. Somos dependentes Dele, mas isso não nos exime de exercer aquilo que nos compete, de modo a não sobrecarregarmos ninguém: “se alguém não quiser trabalhar, não coma também” (2 Tessalonicenses 3:10). Nessa linha, não devemos nos tornar ídolos para as pessoas, mas ajudá-las em suas necessidades ao mesmo tempo em que as conduzimos à compreensão de que é Deus o único de quem elas devem depender. Em suma, que os necessitados alcancem a autonomia diante de outros indivíduos e reconheçam sua dependência diante de Deus, assumindo as responsabilidades que lhes competem.

Vale destacar, ainda, que suprir a necessidade do pobre não é estratégia de evangelismo. Estratégia de evangelismo é pregar Cristo crucificado para arrependimento e perdão de pecados. Aqueles, contudo, que foram alcançados por essa graça imerecida e que buscam proclamá-la precisam dar sinais, que extrapolem o discurso, de terem sido resgatados de suas pobrezas.

Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia e um de vocês lhe disser: “Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se”, sem porém lhe dar nada, de que adianta isso?
Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta.
Mas alguém dirá: “Você tem fé; eu tenho obras”. Mostre-me a sua fé sem obras, e eu lhe mostrarei a minha fé pelas obras.
Você crê que existe um só Deus? Muito bem! Até mesmo os demônios crêem — e tremem! (Tiago 2:15–19)

A obediência à missão que Jesus nos confiou, de amar o nosso próximo como a nós mesmos, nos levará a ficarmos mais próximos de quem sofre, seja pobre ou rico, nacional ou estrangeiro, enfermo ou sadio, preso ou livre. Assim, retomaremos bandeiras cristãs que nunca deveriam ter sido negligenciadas. Ações de compaixão e de serviço ao próximo deixarão de ser associadas automaticamente ao Estado e a determinados espectros políticos para serem vistas como aspecto identitário dos seguidores de Cristo.

Chegando a esse ponto do texto, talvez, você tenha se convencido da necessidade de demonstrar compaixão ao seu próximo e agora possa estar se perguntando: “e como eu faço isso?”. Essa é uma boa pergunta e eu também me faço esse questionamento. Creio que o surgimento da preocupação é o primeiro passo. Nosso papel não é sermos autores dos milagres, mas trazer os pães e peixes para que o Senhor multiplique. Os pães e peixes podem ser os nossos talentos, nosso tempo, nosso dinheiro… Estamos dispostos?

Podemos dar o passo seguinte indo à periferia, aos abrigos, às ruas, às prisões e a tantos outros locais para conversar com pessoas e conhecer suas histórias. É fácil trazer acusação sem sentir a dor do outro. Nosso maior referencial se despiu de sua glória e veio em carne e osso experimentar nossas misérias — mas em nada pecou. Acredito que podemos sair da nossa zona de conforto para ter contato com outras realidades. Que a pobreza (espiritual e material) do outro nos deixe inconformados até que encontremos um meio de servi-los, pela graça de Deus. Talvez, isso aconteça por meio da nossa profissão, de um ministério iniciado na igreja, de associações cristãs, de um “bom dia, qual o seu nome?”, de perceber o outro… Quem sabe?! Traga os pães e peixes!

Para encerrar, gostaria de disponibilizar uma oração para você que foi tocado por esse texto:

Senhor Deus, reconheço a minha insuficiência diante de tantas necessidades do meu próximo. Não pretendo trazer uma solução definitiva para todos os problemas do mundo, porque isso já aconteceu na cruz, mas também não quero ser vencido pela inércia, pois fui criado para boas obras. Não tenho muito em mãos, mas o que tenho quero deixar à Tua disposição para que o Senhor utilize para a Tua glória. Tenha misericórdia de mim, pelas vezes em que fui negligente com o meu próximo, perdido em meus subterfúgios. Que o Senhor encha o meu coração de amor por Ti e que, assim, eu ame o meu próximo como o Senhor me amou ao me resgatar do reino das trevas.

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